Professora Associada com Agregação no Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC) e Investigadora Associada do Centro de Estudos Sociais.

Novas Cartas Portuguesas: quando a literatura é política

A publicação de Novas Cartas Portuguesas, seguida da sua apreensão e de um processo judicial desencadeou um fenómeno internacional de solidariedade com as autoras e de contestação do regime salazarista. Em vésperas dos 50 anos da Revolução de Abril, qual o lugar da literatura nas dinâmicas sociais?

Ensaio
2 Novembro 2023

O que pode a literatura?” Pergunta recorrente em Novas Cartas Portuguesas (NCP), indicia a inquietação sobre a (suposta) inutilidade da literatura quando confrontada com uma realidade social marcada pela injustiça e pelo sofrimento. Talvez não possa nada, ou possa pouco. No entanto, basta lembrar as listas de livros proibidos por regimes ditatoriais – pelos fascismos e estalinismos; pelos regimes islamitas; pelas Inquisições e fatwas de diversas cores – e mesmo por regimes apenas conservadores, como o da República da Irlanda, entre 1922 e a década de 1970. Se a literatura fosse apenas um produto meramente estéticologo inócuo do ponto de vista das dinâmicas sociais), não haveria livros proibidos, nem queimados, nem autores e autoras proscritos, exilados e perseguidos, ao longo da história humana. 

“O que pode a literatura?” é, portanto, uma pergunta retórica, que inclui, subliminarmente, a liminar resposta: pode muito. O maior fenómeno feminista português do século XX foi a publicação de um livro: Novas Cartas Portuguesas, de Maria Teresa Hora, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, ou as “Três Marias”, como ficaram conhecidas. Importa sublinhar, porém, que, tendo sido um fenómeno principalmente feminista não o fui exclusivamente, tendo-se alargado a uma contestação mais abrangente, ao regime do Estado Novo. 

Obra de grande intervenção transformadora no campo dos costumes, Novas Cartas Portuguesas foi publicada em abril de 1972, e é hoje um livro simultaneamente muito lembrado, num contexto maioritariamente académico – vinculado à literatura portuguesa e aos Estudos Feministas – e muito esquecido em todas as outras áreas. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Basta lembrar que em Portugal não consta, nem sob a forma de excertos, do currículo dos ensinos básico e secundário. Mesmo a nível universitário apenas o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, lhe dedica atenção, o que acontece muito por influência de Ana Luísa Amaral. 

A poeta e professora coordenou dois grandes projetos de investigação sobre a obra, de que resultaram, entre outras publicações, uma edição anotada das Novas Cartas, saída em 2010.  Todos os anos, quando pergunto às minhas alunas e alunos da cadeira de licenciatura “Temas dos Feminismos Contemporâneos” – centenas de jovens, nos últimos dez anos – se alguém já ouviu falar de Novas Cartas Portuguesas, muito raramente há alguém que diga sim. 

Tenho de começar, por isso, por falar dos aspetos mais básicos, sobejamente conhecidos de quem trabalha em literatura portuguesa de autoria feminina, mas desconhecidos de quase todas as outras pessoas. 

É um livro feito de fragmentos: cartas, poemas, curtos nacos de ficção. Este seu caráter experimental do ponto de vista formal explica, até certo ponto, o seu esquecimento fora do espaço académico, cinquenta anos depois da publicação: não tem uma trama, o que lhe dá um grande grau de opacidade e torna a sua leitura, se não difícil, menos fácil.  

São fragmentos a várias vozes: Anas, Marianas, Maria Anas diversas, entre os séculos dezassete e vinte, vão falando das suas vidas, do quotidiano difícil de mulheres, pobres, ricas, enclausuradas, abandonadas, violadas, por vezes apaixonadas. Daqui resulta uma polifonia de queixas e lamentos, mas também de celebrações, que deixam a leitora atordoada. 

Em maio de 1971, Maria Teresa Horta (n. 1937), Maria Isabel Barreno (1939-2016) e Maria Velho da Costa (1938-2020), decidiram embarcar num projeto a que chamaram inicialmente “a coisa”, que tinha por mote Lettres Portugaises (1659), romance epistolar publicado anonimamente em Paris em 1669: cinco cartas da suposta autoria de Mariana Alcoforado, freira no convento de Beja, endereçadas a um oficial francês, o Cavaleiro de Chamilly, com quem teria tido uma relação amorosa e que a teria abandonado. 

A autoria de Lettres Portugaises é agora atribuída por uma maioria de críticos a Gabriel de Guilleragues, diplomata e jornalista francês, mas “Mariana Alcoforado” continua a ter um lugar central no imaginário português.  Cartas Portuguesas, na versão de Eugénio de Andrade, de 1969, seria o texto usado como mote para o que veio a chamar-se Novas Cartas Portuguesas e que nos apresenta configurações do feminino radicalmente diversas do texto usado como pretexto e intertexto. 

As três autoras combinaram que, durante a semana, cada uma escreveria um texto – poema, ficção, carta – que depois trocariam e comentariam entre si em reunião semanal.  Dos fragmentos emergiu algo inclassificável do ponto de vista do género literário, assinado coletivamente: a nenhum dos fragmentos era atribuída uma autoria específica. Muitas das cartas são microficções que expressavam realidades materiais específicas de mulheres: Mariana Alcoforado enclausurada em convento; Joana de Vasconcelos enclausurada em casamento; Maria Ana enviada pelos pais para servir em casa da madrinha; Mariana, menina violada pelo pai; uma mulher chamada Maria, criada de servir em Lisboa; Maria Ana, a cuidar dos filhos na terra, enquanto marido está emigrado no Canadá, na década de 1960; outra Maria preocupada com o marido na guerra colonial. 

E muitas outras variantes e variações da subalternidade feminina, ao longo dos séculos. Note-se que há ainda algumas vozes masculinas – a carta de um soldado chamado António para uma rapariga chamada Maria a servir em Lisboa; a carta de um homem chamado António emigrado no Canadá –, e, ainda, poemas, líricos e eróticos nos quais se pressupõe uma voz feminina. 

Três grandes temas emergem destes fragmentos: amores e sexualidades (do ponto de vista das mulheres); emigração, com a sua raiz numa pobreza extrema; Guerra Colonial. Três temas sensíveis no contexto do Estado Novo, sujeitos ao escrutínio do público, das instituições e da comissão de censura. 

Não espanta, portanto, que quando o livro foi proposto às editoras D. Quixote e Europa-América, ambas tenham recusado avançar com a sua produção. A publicação acabou por acontecer, em grande parte, por via da combatividade de Natália Correia – figura controversa, mas de coragem inegável – que, na posição de editora literária da Estúdios Cor, assumiu o risco de publicar a obra. 

Note-se que Natália Correia tinha sido já alvo de inquérito judicial e julgamento seis anos antes, por via da organização e publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1966). Já na tipografia, um tipógrafo terá detetado conteúdos de teor “pornográfico”, pelo que suspendeu a composição. 

Natália Correia terá prometido retirar os passos em causa, assim desbloqueando o processo, mas mais tarde tê-los-á reintroduzido. Em abril, são produzidos três mil exemplares, dos quais a maioria é apreendida logo em maio. No entanto, por essa altura já vários exemplares tinham sido enviados a pessoas amigas fora do país, o que seria crucial para o processo que se seguiu. 

Em Portugal, foram instaurados processos às autoras e editores de Novas Cartas Portuguesas por “conteúdo pornográfico” e “atentatório da moral pública”. As autoras foram interrogadas pela Polícia dos Costumes – no mesmo espaço onde eram interrogadas as prostitutas, note-se – e foi instruído um processo judicial. 

Como fundamento para a acusação de obscenidade, usadaram-se apenas 12 páginas do livro. Durante o interrogatório, foi perguntado a cada uma delas quem era a autora deste e daquele fragmento. Todas continuaram a assumir a autoria coletiva. Quem escreveu o quê? Não sabemos. Cada um e cada uma de nós terá as suas teorias sobre a autoria disto e daquilo; pessoalmente, não creio que este tipo de crítica textual seja útil além dos muros de círculos académicos. 

Aqui há que perguntar: porque foi centrada a acusação na linguagem “pornográfica”, quando o livro versava outras questões sensíveis do ponto de vista político, como a emigração e a Guerra Colonial? Claramente, o que era mais ofensivo e mais perigoso do ponto de vista político para o regime, era a figuração do corpo-fêmea, não na posição de objeto-do-desejo – com uma longa tradição na literatura ocidental – mas como sujeito do desejo. 

“Há coisas que as senhoras não deviam sequer pensar, muito menos escrever.” Esta afirmação não foi feita por nenhuma figura parda do Estado Novo, mas por Raul Rêgo, quando as Três Marias lhe foram perguntar se as apoiava, segundo conta Isabel Barreno, em entrevista dada a São José Almeida, em 2010.  

Raul Rêgo (1913-2002) foi um homem com um percurso antifascista inatacável: preso quatro vezes “pelo exercício de atividades contra a segurança do Estado”, foi ativo no Movimento de Unidade Democrática (1945), nas candidaturas presidenciais de Norton de Matos (1949) e de Humberto Delgado (1958) e, mais tarde, foi um dos fundadores e membro destacado do Partido Socialista.  

Não deixava de ser, porém, um homem “do seu tempo”. Esta sua afirmação fica aqui apenas como exemplo de como a ideia de uma feminilidade idealizada, marcada pelo pudor, não se circunscrevia ao setor mais conservador da sociedade portuguesa, mas era a ela transversal. 

De resto, a misoginia naturalizada na sociedade portuguesa foi evidente mesmo em plena Revolução: na manifestação do Movimento de Libertação das Mulheres – organização fundada também por Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno – a 13 de Janeiro de 1975, dezenas de homens, de todos os quadrantes políticos, reuniram-se no Parque Eduardo VII, em Lisboa, acicatados pela imprensa, para ridicularizar, insultar e mesmo agredir as manifestantes. Onde estavam as mulheres nos anos imediatamente anteriores e imediatamente posteriores à revolução? Muitas estavam politicamente ativas em organizações sindicais, secções de mulheres vinculadas a partidos políticos, comissões de bairro e outras organizações afins, como pode ser lido, com detalhe, no trabalho de Manuela Tavares, Feminismos em Portugal: percursos e desafios (1947-2007). 

No entanto, ao tempo, as preocupações destas mulheres organizadas centravam-se na realidade económica tout court; reivindicavam salário igual, mas acima de tudo, “equipamentos”: creches, cantinas, melhores escolas. Não se diziam feministas – essa palavra que, sendo aceite na década de 1920, se tornara de novo palavra feia. (De resto, a própria Maria Velho da Costa rejeitava o epiteto de feminista, ao que não seria alheia a sua ligação ao Partido Comunista Português.) 

À época, as que se preocupavam com questões que diziam respeito exclusivamente às mulheres eram apelidadas de “burguesas” e ostracizadas. Antes da Revolução, interessava a oposição ao regime; depois da Revolução, eram as questões de classe que adquiriam prioridade. As questões relativas ao corpo-fêmea, centrais aos feminismos ocidentais da segunda vaga, tinham pouca ressonância em Portugal, à exceção desse pequeno grupo de ditas “burguesas” – o que explica a violência na manifestação de 13 de janeiro de 1975. 

Portanto, a objeção à tomada da palavra das mulheres a partir do próprio corpo – “a geografia mais próxima”, segundo a poeta americana Adrienne Rich (1929-2012) –, não estava circunscrita às pessoas com ligações ao regime. Escolher o corpo como lugar de denúncia de exploração das mulheres, e ainda lugar de potência da sua emancipação, era, na década de 1970, algo ainda muito além do horizonte da larga maioria da sociedade portuguesa.  

São, logo, as “coisas que as senhoras não deviam sequer pensar, muito menos escrever” que levam a tribunal as Três Marias, tal como já tinham levado Maria Teresa Horta, em 1971, na sequência da publicação do seu livro de poemas Minha Senhora de Mim, ou Natália Correia, em 1966, na sequência da publicação de Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, já mencionada. 

Neste aspecto, a repressão de que foram alvo as NCP difere da exercida sobre outros livros proibidos pelo Estado Novo, como Gaibéus, de Alves Redol (1939), ou Manhã Submersa (1954), de Vergílio Ferreira, ou Dinossauro Excelentíssimo (1953), de José Cardoso Pires para dar apenas três breves exemplos, de décadas diferentes, dos cerca de 900 livros – portugueses e estrangeiros – proibidos entre 1933 e 1974.

Diferente também foi o impacto político que teve, tendo este caso dado origem a um grande movimento de solidariedade internacional. Foram, portanto, as mulheres feministas que transformaram o que poderia ter sido uma proibição banal de um governo ditatorial num grande movimento insurrecional -- antirregime, , acima de tudo, feminista.  Como já referido, as autoras terão feito chegar, clandestinamente, exemplares do seu livro também a mulheres de organizações feministas fora do país, o que foi importante para todo o processo.

Há aqui uma coincidência feliz: em 1973, vive-se um ressurgimento dos movimentos feministas nos países do “Ocidente”. Em junho de 1973, na Conferência Internacional de Planeamento Feminista, em Cambridge, Massachussets, que reuniu mulheres de 28 países, organizada pela NOW (National Organization for Women), a solidariedade com as Três Marias foi eleita “a 1ª causa feminista internacional”, supostamente promovendo, e possibilitando, a “união entre as mulheres de todo o mundo”. 

Falamos aqui de “the dream of a common language” [o sonho de uma linguagem comum], nas palavras de Adrienne Rich, fantasia da qual muitos feminismos ainda não desistiram: uma linguagem e uma sororidade universais.  

Em 2023 reconhecemos, obviamente, o falso universalismo da proposta, bem como a sua fantasiosa sororiedade, vinculadas que estamos aos nossos múltiplos interesses e combates localizados; mas essa é uma discussão para outro lugar. 

Não foi, porém, em Cambridge, Massachussets, que apareceu o primeiro protesto pela censura da obra e contra a repressão sobre as suas autoras. Três meses antes, a 29 de Março, foi publicada no jornal The Times uma carta intitulada “Arrest of Portuguese Authors” e assinada por cerca de 16 escritores e artistas de língua inglesa, que denunciava a prisão das três autoras. 

A carta terá sido redigida (anonimamente) por Helder Macedo, à altura professor no King’s College, em Londres. País periférico, em 1973 Portugal não era falado na imprensa estrangeira europeia e da América do Norte. O que nos pode parecer estranho, dada a importância e a dimensão internacional da guerra colonial na Guiné, Angola e Moçambique, objeto mesmo das preocupações do Vaticano e de condenações nas Nações Unidas. 

Nesta linha de reflexão, é de notar que o massacre de Wiriyamu, perpetrado pelas tropas portuguesas no norte de Moçambique em dezembro de 1972, só é denunciado ao mesmo The Times a 10 de julho de 1973, pela mão do padre Adrian Hastings; isto é, quatro meses depois de se falar de Novas Cartas. 

Às denúncias feitas nos jornais juntam-se manifestações à porta de embaixadas – em Londres, a 16 de julho de 1973, por ocasião da visita de Marcelo Caetano – e consulados portugueses, e cartas dirigidas ao corpo diplomático português, que escreve ao ministro dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, com diferentes graus de aflição. 

A equipa do projeto Novas Cartas Portuguesas – 40 anos depois, coordenado por Ana Luísa Amaral, encontrou no arquivo dos Negócios Estrangeiros correspondência do corpo diplomático português nos Estados Unidos, Austrália, Bélgica, Canadá, Holanda, Colômbia, Bolívia, Chile, México, Venezuela, entre outros países, o que dá uma ideia da internacionalização do fenómeno. 

Note-se que este movimento internacional acontece antes de o livro ser traduzido. Circulavam, é certo, fragmentos em traduções não oficiais e fizeram-se mesmo dramatizações desses fragmentos traduzidos, nomeadamente em Nova Iorque, Paris, Londres, Estocolmo e Bruxelas. Mas as traduções completas do livro só surgem mais tarde: em França, ainda em 1974; em 1975, em Espanha, no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Suécia; 1976 na Alemanha e 1977 na Itália. O impacto público não decorre da dimensão literária da obra, mas antes da repressão exercida sobre as escritoras. 

A pressão internacional faz-se sentir em Lisboa, para onde esteve marcado o início do julgamento, para julho de 1973. A 1ª audiência acabou por ter lugar só a 25 de outubro de 1973, faz agora 50 anos. Nesse dia, muita gente estava presente no Tribunal da Boa Hora – pessoas amigas, jornalistas, quem sabe curiosos – de tal forma que o juiz decidiu fazer a sessão à porta fechada, com o pretexto de que seria lido material de teor pornográfico. 

A segunda audiência foi marcada para janeiro de 1974, mas foi sendo sucessivamente adiada.  A Revolução de Abril mudou completamente os termos do processo, e a 7 de maio de 1974 Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno foram absolvidas Saíram do tribunal com um cravo ao peito, sinal dos novos tempos. 

O que parecia um triunfo – e foi – acabou por traduzir-se em longo esquecimento, interrompido por momentos de comemoração, como este.  Se o processo das Três Marias contribuiu para a Revolução e foi por ela solucionado, é também verdade que a sua importância acabou por se diluir noutros combates prevalecentes nos anos seguintes. 

“O que pode a literatura?” A denúncia da situação de subalternidade e, alguns casos, opressão e violência, em que vivia a população feminina em Portugal, não surge pela primeira vez em NCP. Havia consciência desta dupla opressão; dupla, todos e todas porque vivíamos sob uma ditadura; mas eram as mulheres que estavam subalternizadas tanto no espaço público como no espaço doméstico. 

Em 1970, Joaquim Silva Pinto (1935-2022), Secretário de Estado do Trabalho e Providência do governo de Marcelo Caetano, criou a “comissão para a política social relativa à mulher”, um grupo de trabalho presidido por Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004; mais tarde primeira-ministra, a única até o momento). Esta foi a primeira iniciativa institucional relativa a questões de género, e a sua criação denota a consciência da existência de um problema. 

O grupo fez estudos de caráter sociológico sobre diversas dimensões da vida das mulheres e propôs medidas várias, nomeadamente sobre a necessidade de remunerações iguais entre homens e mulheres, maior proteção à maternidade, revisão do código civil, entre outras. Grande parte das propostas não obteve qualquer resposta, e a Comissão de Revisão da Legislação Corporativa negou mesmo a existência de qualquer discriminação sexual no país. 

Isto é, as estruturas do Estado tinham conhecimento da situação de inferioridade real em que viviam as mulheres. Foi um texto literário que criou consciência coletiva, ao colocar, com estrondo, a subalternidade das mulheres sob olhar público internacional. “O que pode a literatura?”

Se as Novas Cartas Portuguesas estão hoje (relativamente) esquecidas além da academia e das datas comemorativas – como esta, que este texto assinala – importa perguntar pela sua importância, ou, pelo contrário, a sua irrelevância. Tendo uma dimensão estética importante – com um grau de experimentalismo único na literatura portuguesa – a sua dimensão política é inegável. 

Mas serão ainda politicamente relevantes nos dias de hoje? Quando as mulheres usufruem de igualdade jurídica e já não se encontram sob tutela?  Quando já não perdem os homens para a guerra ou para a emigração? Quando “menstruação”, “falo”, “vulva”, “vagina”, “orgasmo”, “sémen”, “masturbação” – palavras que sustentaram a acusação de “obscenidade” – e outras, à época escandalosas, já não são palavras proscritas na literatura de autoria feminina? Quando as “questões de género” debatidas no espaço público são agora radicalmente outras? Resulta daqui que estejamos perante uma “curiosidade histórica”? 

Ainda em 2014, Ana Luísa Amaral, com a autoridade de quem coordenou os dois mais amplos estudos sobre a obra até à data, defendia a sua relevância política para a atualidade. Distancio-me desta posição. Tendo relido as Novas Cartas nestas últimas semanas, vejo a sua inegável importância política, à época; e vejo ainda belos nacos de prosa, alguns poemas, a reler uma e outra vez. Depois de décadas de leitura e de apropriação política, talvez seja agora altura de devolver as Novas Cartas Portuguesas ao seu lugar: à literatura. 

O site das Comemorações dos 50 anos de Abril tem uma página dedicada a Novas Cartas Portuguesas, acessível aqui.