Nascido em Praga, Checoslováquia. Jornalista, esteve na SIC, TVI, ocupou cargos de direcção no , Focus, i, e no grupo luxemburguês Contacto. Participou na direção do Fórum Social Europeu, e das manifestações globais contra a guerra, foi do Que se Lixe a Troika e é da coordenação do Vida Justa. 

Não construam monumentos que não possam derrubar

Desde a vitória da hegemonia neoliberal que a esquerda se tem mostrado incapaz de organizar a maioria da população. Uma alternativa ao capitalismo passa por uma ideia complexa que explique a época em que vivemos, mas que também possa ser incorporada pelas “massas”, como se dizia durante a revolução portuguesa.

Ensaio
11 Maio 2023

Há uma ideia muito interessante do filósofo Walter Benjamin segundo a qual na história coexistem vários rios e que o futuro pode produzir passados contraditórios. A história que conhecemos é em grande parte a narrativa dos vencedores e poderosos. No dia em que os vencidos da história triunfarem, eles conseguirão a redenção de todos aqueles que lutaram por um mundo melhor. É como se, nesse dia de juízo final, todos aqueles que construíram o mundo, mas que foram silenciados, vão aparecer aos nossos olhos com o seu verdadeiro destaque. Vamos ouvir a sua voz que foi silenciada e ganhar consciência do que lutaram.

Algo complementar ao que escrevia o mais célebre filósofo nascido em Trier, Karl Marx: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.

Este texto é um conjunto dessas memórias, passadas em letra de forma em diversas reportagens e textos, com uma interrogação final.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

O deserto a que chegamos

A aldeia - cujo ruas e nome tento lembrar com recurso a uma Internet que tem uma espécie de muro que barra o passado, um tempo invisível antes de ela se ter massificado -, creio que era a de Alfundão, parecia estranhamente abandonada com o sol abrasador e as suas casas brancas.

Estávamos no ano do Senhor de 1994, a sede do grupo desportivo era no edifício que tinha sido igreja. A arquitectura é uma espécie de mijo dos poderosos e assinala em pedra ou betão as relações de poder. O edifício mais imponente da aldeia já foi tudo: igreja; sede do sindicato dos assalariados rurais depois da Revolução dos Cravos; e, no início dos anos 1990, sede do clube de futebol. A coletividade era dirigida por um homem rico, dirigente do PSD, deputado, que tinha ido do clube da terra directamente para a presidência do clube desportivo da capital do distrito.

A filha do putativo homem providencial, que tinha na altura cerca de 20 anos, já era presidente da junta de freguesia. Ganhou as eleições, creio que em 1992, com 54,29% e quase 400 votos, com uma campanha que tinha metido concertos pimba, paraquedistas e almoçaradas. A revolução já parecia uma sombra e as febras oferecidas sabiam bem. Em 2021, passadas cerca de três décadas, o candidato da extrema-direita obteve 16,8% dos votos na União das Freguesias de Alfundão e Peroguarda, um segundo lugar depois de Marcelo Rebelo de Sousa.

O crescimento dos populismos de sabor neofascista não se mede, apenas, por votos e pelo seu reforço orgânico e de massas, mas principalmente pela sua capacidade de conseguir espalhar os seus conceitos no Estado, nas instituições, na política e nos aparelhos mediáticos.

Folheando o livro de fotografias Portugal 1974-1975: Regarde sur une tentative de pouvoir populaire, em que estão impressas nas folhas uma série de momentos da revolução portuguesa pela lente de conhecidos fotógrafos de todo o mundo, as imagens do Alentejo e dos campos impressionam pela quantidade de jovens, sorridentes, a trabalhar nas terras. Hoje, os campos estão vazios e as populações envelhecidas foram expulsas pelo revanchismo dos latifundiários que se seguiu ao fim da Reforma Agrária e ao triunfo da contra-revolução. Nas estufas que cresceram há anos que só trabalham imigrantes asiáticos que vivem em contentores ou em casas sobrelotadas. Uma nova parte da classe operária invisível aos olhos de quase todos. 

“Com a Reforma Agrária, isto estava tudo cheio de arroz, de tabaco e de gente a trabalhar”, diz, contristada, uma antiga trabalhadora rural do Couço à antropóloga Paula Godinho, enquanto olha para os campos abandonados em redor. A Reforma Agrária chegou a abranger cerca de 40% do território nacional. Ela foi fruto da vontade e da participação dos assalariados rurais na revolução. A sua derrota e entrega das terras aos agrários sucederam-se à derrota da revolução. Não foi um processo pacífico. Foi uma revanche violenta com uso da GNR e de violência de Estado, como no Escoural, em que o roubo de um rebanho da cooperativa pelos agrários resultou no assassinato, pela GNR, de dois assalariados rurais, Caravela e Casquinha, um deles com apenas 17 anos.

O crime deu directamente origem à anedota que os alentejanos eram os homens mais altos do mundo: a GNR “atirava para o ar”, como garantia sempre que tinha feito, e matava sempre dois.

Décadas depois do acontecido, vou a Santiago do Escoural fazer uma reportagem para a SIC. Encontro apenas a tristeza e o desespero, pela injustiça e por esse crime convenientemente arquivado pela Justiça com a participação dos procuradores locais, mas sobretudo por um deserto sem futuro. O Ministério Público, segundo afirmou, não conseguiu apurar quais os militares que dispararam e justificaram os assassínios por uma alegada violência dos trabalhadores durante a entrega dos rebanhos da cooperativa aos agrários. Violência que as fotos do dia, tiradas por um repórter estrangeiro, e os testemunhos não registam. 

“Depois de um processo efémero mas marcante, outros caminhos tiveram de ser encontrados pelos que a fizeram [à Reforma Agrária], para escapar aos proprietários revanchistas que regressaram. Muitas mulheres que trabalharam nas unidades colectivas de produção estão hoje em casa, sem trabalho. A casa é a sua burka, dizia uma entrevistada à antropóloga Vera de Castro Abreu, numa herdade perto de Alcácer do Sal, e as suas memórias foram privatizadas e domesticadas”, assinala Paula Godinho, no seu livro O Futuro É Para Sempre.

As terras estão abandonadas, parecem um monumento ao fim de um futuro. Esta situação concreta deve-se, como assinala Paula Godinho, “à conjugação de três factores: o ressentimento dos proprietários, devido ao poder que os subalternos ganharam com a Reforma Agrária, há mais de três décadas; a Política Agrícola Comum, nos 20 anos seguintes; a situação de afundamento económico da última década”.

Cinzas

“Ao filho de uma minha amiga quase o mataram pelas suas ideias socialistas. A palavra 'comunistas' era uma ofensa. Os rapazes do nosso pátio quase mataram um miúdo”, narra uma mulher à escritora bielorrussa Sveletana Aleksievitch, nas páginas do seu livro O Fim do Homem Soviético

A obra da escritora é um enorme fresco de vidas de uma espécie de continente engolido pela história. Aqui falam vítimas do terror, das guerras, das catástrofes económicas, mas também gente herdeira da primeira revolução operária da história.

A mulher, do testemunho que citamos, conta que um grupo de jovens conhecidos estava sentado com uma guitarra e a conversar num pavilhão. De repente um deles diz: “Bora encostar os comunistas à parede, pendurá-los nos candeeiros. O Micha Slutser – filho de um funcionário do nosso Comité Distrital, um rapaz muito lido – citou-lhes o escritor inglês Chesterton: 'Um homem sem uma utopia é muito mais horrível do que um homem sem nariz'. E por causa disso agrediram-no ao pontapé”.

E a mulher continua a desfiar estas memórias nos anos finais da União Soviética. “Lembro-me daquele brilho dos olhos nas pessoas no início da perestroika, nunca o esquecerei. Estavam prontas a linchar os comunistas, a enviá-los para o desterro sob escolta. (…) Atiraram para os contentores livros de Maiakovski, de Gorki, entregavam as obras de Lenine para reciclagem. Eu apanhava os livros, sim! Não me arrependo de nada! Não mudei de pelagem, nem passei da cor vermelha para a cinzenta. Há pessoas assim: chegam os 'vermelhos' , recebem alegremente os 'vermelhos'; chegam os 'brancos', recebem alegremente os 'brancos'. Faziam-se reviravoltas impressionantes: ontem comunista, hoje ultra-democrata. Diante dos meus olhos comunistas 'honestos' transformaram-se em crentes e liberais. Pois eu gosto e nunca deixarei de gostar da palavra 'camarada'. É uma boa palavra! Sovok [calão de homem soviético]? Mordam a língua! O homem soviético era muito boa pessoa, podia ir para lá dos montes Urales, para o deserto – por uma ideia e não por dólares. Não pelas notas verdes alheias. A hidroelétrica do Dniepre, a batalha de Estalinegrado, as viagens ao cosmos – tudo isso ele conseguiu. O grande sovok!”.

Sondagens sem fim

Em 2002, numa sondagem chinesa, pediu-se a estudantes de Pequim que indicassem o seu maior herói, mas a pergunta não era aberta, havia apenas duas opções: Bill Gates ou o herói do romance autobiográfico soviético Assim Foi Temperado o Aço, de Nikolai Ostrovski. Pavel Korchagin de seu nome é um proletário que se torna soldado do exército vermelho e acaba por morrer cego e paralítico. 

A sua popularidade na China deve-se a uma série televisiva exibida por uma televisão chinesa, paga por um milionário da mesma nacionalidade e interpretada e rodada na Ucrânia, muito antes da invasão russa e dos elogios oficiais do regime de Kiev a combatentes das unidades nazis SS na II Guerra Mundial, como Stepan Bandera.

O capitalismo vive das crises ecológicas, económicas, pandémicas e da guerra. A sua face política é cada vez mais autoritária, xenófoba, homofóbica, contra o direito das mulheres e dos trabalhadores.

Na sondagem, os estudantes chineses dividiram-se em partes iguais: 45% escolheu o milionário e outros tantos escolheram o bolchevique. Mas quando perguntaram aos mesmos jovens quem escolheriam para modelo: 44% apontou Bill Gates, 27% respondeu ambos e apenas 13% optou só pelo combatente comunista.

Uma divisão significativa no país nominalmente comunista, num país com aspectos de um feroz capitalismo de Estado. Isto apesar da série ter algumas liberdades criativas em relação ao livro em que se baseia. É, segundo garante Davis Priestleland, contra a violência do Exército Vermelho e acaba por casar com a sua namorada, a burguesa Tonia, um desfecho diferente do livro em que o amor não resiste às diferenças de classe de ambos. Como explica o realizador da série: “Diluímos a consciência de classe e fizemos dele mais uma figura dos direitos humanos com que todos se podem solidarizar”.

Apenas um eterno presente

Dizia o poeta francês Charles Baudelaire que o maior feito do Diabo era ter-nos convencido da sua inexistência. O maior feito do capitalismo é precisamente o contrário: é ter-nos convencido da sua eternidade. Nesse sentido, o capital foi erigido em divindade com a sua poderosa teodiceia. Afiançam-nos que goza da omnipresença, está em todo o lado; de omnipotência, é superior a qualquer forma pensada alternativa; e omnisciência, o mercado tudo compreende e tudo faz.

Escrevia Frederik Jameson, numa passagem muito citada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, que a esmagadora maioria das pessoas não considera seriamente alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões de futuro, “colapso da natureza”, da eliminação de toda a vida na Terra. Parece mais fácil imaginar “o fim do mundo” que uma mera mudança muito mais modesta do modo de produção, “como se o capitalismo liberal fosse o 'real' que de algum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global. Assim pode-se afirmar categoricamente a existência da ideologia como uma matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como nas mudanças nessa relação”, escreve o filósofo esloveno.

Hoje, a rutura revolucionária é uma simples hipótese, ditada pela necessidade de reintroduzir aquilo que o neoliberalismo conseguiu apagar da memória: a acção e a teoria das forças que se batem contra o capitalismo. É mesmo essa a vitória mais importante do neoliberalismo.

Vivemos tempos de apocalipse, literalmente de recomeço, fazem-nos ver o que os novos fascismos estão prestes a reactivar – apesar do comunismo ser um espectro que atualmente parece longe de ameaçar o capitalismo, não deixando de ser algo que suscita o maior ódio dos poderosos do mundo e que precisa de ser convocado –, a relação entre instituição e violência, entre guerra e “governância”. Vivemos uma época em que cada vez mais o Estado de Direito se mistura com o Estado de Exceção. O crescimento dos populismos de sabor neofascista não se mede, apenas, por votos e pelo seu reforço orgânico e de massas, mas principalmente pela sua capacidade de conseguir espalhar os seus conceitos no Estado, nas instituições, na política e nos aparelhos mediáticos.

O capitalismo vive das crises ecológicas, económicas, pandémicas e da guerra. A sua face política é cada vez mais autoritária, xenófoba, homofóbica, contra o direito das mulheres e dos trabalhadores.

A época em que vivemos liquidou o passado e o futuro, parece que vivemos num presente eterno. Há uma espécie de aceleração da vida e dos seus estímulos, em troca da total abdicação da ideia de projecto, de possibilidade de mudança e até de futuro. O passado é manipulado e o presente eterno.

Renascer do fogo

Num estudo coordenado por Thomas Piketty, sobre a relação entre as desigualdades sociais e os resultados eleitorais em 50 países “democráticos” (“Clivagens Políticas e Desigualdades Sociais”), verifica-se que há em muitos países desenvolvidos uma evolução: antigamente, as classes trabalhadoras tendiam a votar à esquerda e os patrões, ricos e licenciados à direita. Hoje, verifica-se que os licenciados votam à esquerda, e que parte das classes trabalhadoras já não vota, ou não o faz à esquerda. Isso coincidiria com várias circunstâncias: o abandono por parte da esquerda do terreno popular e da defesa das classes trabalhadoras; a passagem de reivindicações “materiais” para “pós-materiais”, enquanto se multiplicam novas lutas de carácter identitário, que tornam invisível o conflito de classes. Como alguém dizia: “a classe social não foi morta, ela foi enterrada viva”.

Olhando para Lisboa, podemos ver que, apesar da gentrificação que atira os menos ricos para fora da cidade e para os subúrbios, ainda existem nos bairros camarários 20% dos eleitores da cidade.

Populações invisibilizadas, em zonas com fracos equipamentos sociais, mal servidas de transportes, sujeitas a frequentes operações policiais repressivas, com uma baixa participação política, comparada com os bairros mais ricos. São os trabalhadores mais pobres, muitos deles racializados, que criam grande parte da riqueza da cidade, mas foram expulsos do quadro da cidadania e da representação política.

Corridos, também, desta cidade, com a nítida sensação de que estão a viver pior que os pais, está muita gente de camadas médias, cada vez mais precarizadas e proletarizadas. Neste caldo que a vida piora todos os dias, há muitas pessoas que se sentem sem rede social, para quem as explicações xenófobas, machistas e racistas do populismo significam uma forma de protesto.

A única forma de evitar o desastre é voltar às empresas, aos bairros e tomar as ruas afirmando a necessidade de organizar descontentes, de tornar visível e mais amplas as lutas de classes, e garantindo que nenhuma opressão é eterna. 

Não tenhamos ilusões, populismo e neoliberalismo alimentam-se mutuamente. O neoliberalismo cria a miséria em que o populismo de extrema-direita medra, e este garante que nada de mal aconteça aos privilégios dos ricos e às regras que permitem ao grande capital viver em paz. 

As classes sociais não deixaram de existir, nem as desigualdades sociais deixaram de crescer, mas qualquer luta política que combata o poder dos capitalistas tem de passar por dar mais poder e mais rendimentos às classes trabalhadoras. Isso só é possível mobilizando quem trabalha e dando-lhe consciência da sua situação social e mostrando aos trabalhadores que fazem parte da mesma classe. O lugar da fala tão propagado, nestes tempos de individualismo e em que tudo se parece reduzir a comportamentos de privilégio pessoal, não existe como se diz. Ele só existe em termos sociais e colectivos se for activado com luta e ideias.

O identitarismo é uma forma que colabora no processo que reduz todo o conflito social a questões individuais e transforma a política em biografia. Aquilo que é preciso quebrar não são os comportamentos individuais, mas as estruturas sociais que os criam.

Numa sociedade em que o capitalismo financeiro e tecnológico cria ilusões de riquezas de economia de casino e desmaterialização de muito daquilo que é humano, é preciso rematerializar as relações sociais e as suas lutas. 

É preciso ambicionar fazer uma política que tenha em conta as identidades, mas que vá além delas. Não há libertação total que se faça sem acabar com o racismo, machismo e homofobia; não há nova sociedade viável sem construir uma nova relação ecológica e sustentável no planeta, mas a libertação da humanidade está directamente ligada à superação do capitalismo e da ideia que a história não vai mais além. O desastre é possível, mas só significaria que ficaríamos por aqui.

A única forma de evitar esta armadilha é voltar às empresas, aos bairros e tomar as ruas afirmando a necessidade de organizar descontentes, de tornar visível e mais amplas as lutas de classes, e garantindo que nenhuma opressão é eterna. Todas as lutas são boas, mas apenas as lutas de classes podem derrubar o capitalismo.