Cofundador da República dos Pijamas, newsletter de economia e política. Membro do conselho editorial do Shifter.

Faltam casas, a nova cassete do neoliberalismo urbano

A ideia de a falta de construção privada ter criado a crise da habitação é falsa. A direita entendeu que deve bloquear qualquer medida que reduza a procura estrangeira ou que vá na direção de se criar um parque público habitacional de grande envergadura.

Ensaio
30 Março 2023

A crise da habitação, que neste momento é um dos principais problemas em Portugal, tem feito com que o debate económico e político se tenha deslocado para este e outros temas urbanos. O governo de António Costa anunciou um pacote de medidas para combater esta crise, que rapidamente foi apelidado de ‘Bolivariano’ pela direita e de insuficiente pela esquerda.

Para a esquerda, não é uma novidade analisar a economia política através do espaço urbano: Friedrich Engels escreveu A situação da classe trabalhadora na Inglaterra; Joan Robinson desenvolveu a teoria do monopsônio (monopólios empresariais locais); e David Harvey conceptualizou a ideia de transição de administrativismo para empreendedorismo urbano. Assim, as principais propostas da esquerda têm em conta a distribuição de poder dentro da sociedade e focam-se na construção de um parque público, na regulação do espaço público (quer sejam alojamentos turísticos ou benefícios fiscais) e até mesmo no controlo de rendas.

Portugal é um dos países da Europa com mais casas por habitante, demograficamente estagnado, envelhecido e com franco crescimento económico nos últimos 20 anos, mas para a direita o problema é um e único: a falta de construção. Um diagnóstico que não dá grandes detalhes sobre os motivos pelos quais o país tem uma recente escassez de casas. As mais recentes explicações passam, entre outras, pela demonização das regulações, como a obrigatoriedade dos bidés.

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As origens do neoliberalismo urbano

O diagnóstico simplista da direita brota do pensamento dominante da “economia urbana”. Uma área de estudo dominada por teorias neoliberais - como grande parte das áreas da Economia nas universidade - e que pode ser resumida na obra de dois dos principais urbanistas neoliberais: Ed Glaeser e Enrico Moretti. Ambos escreveram “livros de aeroporto” sobre o tema (O Triunfo da Cidade e The New Geography of Jobs [A Nova Geografia do Trabalho], respectivamente). 

A síntese destas obras pode ser resumida em quatro pontos:

  • As cidades são, economicamente, mercados de trabalho;
  • As cidades são boas do ponto de vista económico. Somos mais produtivos nelas, através de algo que os economistas chamam de “economias de aglomeração";
  • O crescimento económico das últimas décadas concentra-se em grandes cidades, onde empregos altamente qualificados (tech na California ou Seattle) criam indiretamente inúmeros empregos em serviços como cafés e restaurantes (multiplicador do emprego).
  • O sucesso económico traz alguns problemas (externalidades em economês): em especial escassez de habitação, poluição e trânsito. Construir mais casas e taxar o uso do carro são as formas de resolver o problema. 

Se a primeira ideia é útil e relativamente inofensiva, as restantes devem ser analisadas com detalhe, desconstruídas e combatidas. 

As “economias de aglomeração” são o pilar do neoliberalismo urbano. Não há dúvida que a aglomeração de pessoas e troca de ideias podem promover novas invenções e melhorias económicas, como a literatura mostra. No entanto, a sua análise ignora por completo as dinâmicas entre classes e uso de bens públicos, algo facilmente identificado com umas lentes menos ortodoxas. 

O aumento dos salários e da produtividade causada pela urbanização pode ser explicado por outros fatores, como: i) maior poder negocial por parte dos trabalhadores ii) o uso de bens públicos, como o transporte público, reduz o consumo de bens importados. Um subsegmento da “economia urbana” tem caminhado lentamente nessa direção. 

Lisboa tem mais habitações e menos alojamento residencial que em 2011. Esta aparente contradição mostra que o défice de oferta não é maioritariamente explicado por uma repentina quebra na construção num país de baixo crescimento económico e populacional.

Trabalhos de investigação publicados recentemente (aqui e aqui) mostram que a concentração de empregos numa geografia aumenta o seu poder negocial, porque permite aos trabalhadores mudarem de emprego com maior facilidade. Este mecanismo foi muito discutido nos últimos anos com o fenómeno da “Grande Renúncia”. Os trabalhadores, ao terem maior poder negocial, através da possibilidade de troca de emprego, acabam a forçar os patrões a darem uma maior parte da mais-valia do seu trabalho. Esta análise confirma a teoria pós-keynesiana de monopsônio, contudo é totalmente ignorada pela ortodoxia do urbanismo económico.

A urbanização logicamente aumenta a viabilidade dos transportes públicos (mais procura num pequeno espaço) e mobilidade suave. Consequente, estas alternativas reduzem o consumo de energia importada (petróleo). Nesta linha de pensamento, os “urbanistas neoliberais” alegam que as cidades são verdes porque consumimos menos carbono. Mas, curiosamente, não reconhecem os benefícios do mecanismo de substituição de importações implícito nessa ideia para explicar os benefícios económicos das cidades.  

A ideia do “multiplicador de empregos”, em que os “urbanistas neoliberais” se focam como forma de melhorar a vida das classes populares, é simplesmente uma nova versão de trickle-down economics com uma roupagem urbana e moderna. De forma pouco surpreendente, soluções como baixos impostos e desregulação para atrair empresas de alta tecnologia são frequentemente apresentadas.

Por fim, o quarto ponto é o mais importante do debate em Portugal. Estas ideias têm sido importadas para o pensamento político português, em especial na e pela direita. Seja através da leitura dos “urbanistas neoliberais” originais, seguindo jornalistas e Youtubers (ingleses e norte-americanos) focados na área, ou até mesmo por nómadas digitais

Esta tendência tem pelo menos dois problemas evidentes. Por um lado, esta hegemonia intelectual cria um óbvio colete de forças na formulação de soluções políticas. A área da mobilidade é um bom exemplo disso. Para o neoliberalismo urbano, taxar o uso do carro é a melhor forma de reduzir trânsito e poluição porque obedece as leis de mercado (cobrar por algo escasso); melhorar a rede ou baixar os preços de transporte público (que conseguem atingir o mesmo resultado) é frequentemente ignorado. Por outro lado, a importação destas ideias ignora por completo o papel periférico da economia portuguesa (e do seu mercado de habitação) dentro do Norte Global.

Um mercado de habitação mais global e um inquilino mais periférico

Sucessivos governos promoveram ativamente políticas que tornaram o mercado imobiliário - antes estritamente nacional - num mercado global. Consequentemente, o sector da construção em Portugal não irá construir casas suficientes para alimentar uma procura internacional praticamente infinita, que procura de isenções fiscais e retornos financeiros na exploração de Airbnbs. 

Como Nuno Serra, do blogue Ladrões de Bicicletas, mostrou, Lisboa tem simultaneamente mais habitações e menos alojamento residenciais do que em 2011. Esta aparente contradição mostra que o défice de oferta não é maioritariamente explicado por uma repentina quebra na construção num país de baixo crescimento económico e populacional. 

Só em alojamentos locais (ignorando os vistos gold,  estatuto de residente não habitual, etc) a Área Metropolitana de Lisboa perdeu, 28.5 mil alojamentos (6% da oferta existente), o que está ligeiramente acima dos 26 mil fogos que o governo planeia financiar no programa primeiro direito do PRR, para o país inteiro. 

Pode parecer que 6% das casas existentes é relativamente marginal e insignificante, mas não é. Em mercados globais como o petróleo, onde os consumidores têm maior facilidade de encontrar outras alternativas do que na habitação, o cartel da OPEP consegue manipular os preços com cortes de produção bem inferiores a 6%. 

Recentemente, o governo anunciou alguns remendos para arrefecer a procura internacional, mas as isenções fiscais aos residentes não habituais e vistos para nómadas digitais mantiveram-se intocadas. Num mercado com este tipo de incentivos para capitais estrangeiros, é impossível imaginar um sector da construção que construa casas à velocidade a que os capitais internacionais se deslocam. 

Ao contrário daquilo que o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, pensa, a especulação não se combate com mais oferta. Especulação combate-se com medidas que controlem a entrada rápida de capitais especulativos no sector imobiliário, algo praticado no Canadá e Nova Zelândia.

Outro esquecimento conveniente dos neoliberais urbanos é o papel da composição do mercado. O mesmo nível de oferta de habitação resulta em preços diferentes, dependendo do nível de concentração dos direitos de propriedade. O total foco na construção, ignorando a composição do mercado, é a receita perfeita para seguirmos o caminho de outros países, onde os fundos de investimento começam a dominar o mercado de habitação, criando lógicas oligopolistas com técnicas de despejos forçados e cortes em serviços básicos. Infelizmente, estes problemas já não são apenas receios mas realidades em piloto automático (aqui, aqui, aqui e aqui).

Uma alternativa pública e popular

Com os constrangimentos que Portugal enfrenta, o aumento da oferta através da construção de um parque público é uma solução para a crise da habitação. Um Estado planeador permitiria que a nova oferta fosse alocada às classes trabalhadoras nos principais centros económicos do país, em vez de ser desviada para uma lógica de mercadoria-investimento. 

Este tipo de gestão da habitação está longe de ser uma novidade ou um delírio “bolivariano”. No governo trabalhista Britânico no pós-II Guerra Mundial, entre 1945 e 1951, o Estado construiu 800 mil habitações sociais (Council Housing) num só mandato. A reversão deste projecto social por parte da antiga primeira-ministra Margaret Thatcher tornou-se foi a maior privatização da história do Reino Unido: foram vendidas dois milhões de casas. 

Inspirado pelo “Fabianismo” (sociedade socialista britânica), Lee Kuan Yew, primeiro-ministro de Singapura entre 1959 a 1990, deu início a um modelo em que o Estado é o motor do mercado de habitação em Singapura. Nos primeiros anos da década de 1960, quando Singapura era mais pobre que Portugal, o Estado construiu 54 mil habitações públicas. Ao contrário do Reino Unido, Singapura não reverteu a sua política pública de habitação no período neoliberal. Nos dias de hoje, 80% da população vive em habitação pública e a agência de habitação estatal tornou-se uma veículo para a transição energética, com a instalação de painéis solares nos prédios que detém. 

Ao contrário daquilo que Carlos Moedas pensa, a especulação não se combate com mais oferta. Especulação combate-se com medidas que controlem a entrada rápida de capitais especulativos no sector imobiliário, algo praticado no Canadá e Nova Zelândia.

Este modelo de gestão e planeamento da habitação é cada vez mais popular. Viena, cidade onde as rendas são mais baixas que em Lisboa e a habitação social abrange 62% da sua população, tornou-se um consenso que vai da revista socialista Jacobin até ao jornal liberal Financial Times.  O sucesso vienense de manter as rendas baixas não foi conseguido através da redução da carga fiscal ou do papel do Estado. Este projeto transformador do município de Viena passou pela taxação de bens de luxo e de propriedade. 

No período democrático português, o Estado também teve um importante papel de colaborador no esforço colectivo de acabar com o défice habitacional (entre 500 e 700 mil fogos). Mesmo em projetos de natureza popular pós-25 de Abril, como o SAAL, o Estado desempenhou a função de financiador. No PER (Programa especial de realojamento), mesmo que ainda por concluir, o Estado conseguiu construir 45 mil casas.

A Iniciativa Liberal, um dos principais defensores políticos da ideia de que a crise da habitação é causada pela falta de construção, opõe-se a um Estado planeador que use o seu património para expandir a oferta. O partido defende uma política de inspiração “Thatcheriana” de venda do património do Estado a privados, ao mesmo tempo que o seu líder participa em manifestações em “defesa do Alojamento Local”.

As experiências mais semelhantes a esse tipo de operação financeira, no passado recente, foram as vendas de imóveis em bloco pela Fidelidade e Novo Banco. Estas operações levaram a uma concentração da propriedade por parte de fundos de investimento estrangeiro e negócios ruinosos para o Estado

Uma estratégia política de privatizar o património público e insistir na Airbnbzação da economia está condenada ao falhanço. Por um lado, não resolveria a crise habitacional e, por outro lado, tornaria a economia portuguesa ainda menos complexa

Uma tentativa de reescrever a história

A solução aparentemente simples de reduzir regulações para construir mais casas tem também como objetivo reescrever a história recente da economia política portuguesa. 

No contexto internacional, Portugal tem constrangimentos burocráticos comparáveis a outros países europeus, e teoricamente tem-los reduzido ao acabar com o licenciamento prévio, em 2013. Se o licenciamento se tornou mais demorado e ineficiente em termos práticos, foi provavelmente resultado da falta de recursos do Estado e das autarquias desde o período da intervenção da troika. 

Nunca houve uma real reversão da austeridade no investimento público; e o número de funcionários administração pública local esteve durante uma década abaixo dos níveis pré-troika. A mais recente proposta do governo, de passar responsabilidades dos municípios para privados (projetistas e arquitetos), é por si só a admissão de uma falta de recursos dentro do Estado.

O diagnóstico falso e simplista da falta de construção devido a regulações evita deliberadamente explicar as razões pelas quais Portugal tem um baixo nível de capacidade instalada no sector da construção. Nos anos da Troika, quando era bastante popular criticar a 'política do betão', o governo cancelou obras de infraestrutura fundamentais (expansão do metro para a Reboleira, a alta velocidade, várias barragens) e aumentou os impostos, o que levou a que a esmagadora maioria de empresas de construção falissem. Além disso, a emigração em massa  (causada por um desemprego jovem estratosférico) num país envelhecido, baixou a confiança do sector para que se construíssem novas casas. Mesmo com estas condicionantes, Portugal construiu mais habitações por habitante que a maioria dos países do norte global, e isso não evitou a atual crise.

Ricardo Arroja, comentador de Economia e ex-candidato da Iniciativa Liberal, resume na perfeição a repentina mudança de estado de espírito da direita portuguesa. Quando, em 2017, Ricardo Paes Mamede debatia o crescimento económico com Ricardo Arroja, alertando para os baixos níveis de investimento no sector da construção, o e economista liberal não mostrou qualquer tipo de preocupação. Os preços da habitação já estavam acima do pré-crise e cresciam muito acima da inflação

O aumento da oferta através da construção de um parque público é uma solução para a crise da habitação. Um Estado planeador permitiria que a nova oferta fosse alocada às classes trabalhadoras nos principais centros económicos do país. 

Infelizmente, estes sinais do mercado não inquietaram Ricardo Arroja. Mais de cinco anos depois, o economista liberal copia o debate britânico e responsabiliza os licenciamentos (usando como fonte a “generalidade dos operadores”)  pela atual crise da habitação. Na semana passada, tanto na sua coluna de opinião como no seu programa de debate, Arroja apresentou-se contra o pacote de medidas coercitivas para expandir a oferta de habitação, invocando que o “direito natural à propriedade” se sobrepõe ao “direito social à habitação". 

Para o economista liberal, a crise habitacional só pode ser solucionada com mais oferta mas esta não pode ter a mão do Estado (a não ser que seja a baixar regulações, claro). Ou seja, Arroja é a favor de mais construção, mas é contra um aumento da oferta promovido pelo Estado.

O período de austeridade causou danos estruturais no sector da construção e criou um modelo económico em que Portugal "exporta casas”. Estas características da economia portuguesa não podem ser simplesmente ignoradas no debate sobre a crise habitacional. Falar da obrigatoriedade dos bidés e opor-se a qualquer intervenção estatal é apenas uma tentativa de proteger interesses privados e não assumir o apoio a várias das políticas que nos levaram aqui. 

Apesar de insuficientes, as propostas do governo de António Costa são um novo modelo para a habitação em Portugal. A direita, não sendo ignorante, entendeu que deve bloquear qualquer medida que reduza a procura estrangeira ou que vá na direção de criar um parque público habitacional de grande envergadura. 

As propostas de quadros como Arroja não servem como alternativas para resolver o problema. São apenas uma forma de garantir que tudo continue inclinado a favor dos proprietários.