Com percurso profissional na consultoria de atores políticos, participou em campanhas políticas do PSD. É militante do PSD.

A eterna tentação pelo poder pode custar a alma ao PSD

A aliança do centro-direita com a extrema-direita é pouco natural e pouco aconselhável. Como todas as relações tóxicas, resulta de um histórico de codependência e desejo de adrenalina. O centro-direita tem uma tentação eterna pelo abismo do populismo e uma longa história de brincar com o fogo.

Ensaio
20 Abril 2023

O centro-direita é um espaço com muitos aderentes, mas pouca energia. As suas origens elitistas deram lugar a um movimento de “senso comum” interclassista na defesa da democracia liberal, da propriedade privada, do capitalismo, dos mercados livres e da intervenção estatal limitada. É um movimento orgânico dos individualistas e dos pessimistas antropológicos. É o espaço dos pequenos e dos grandes empresários, proprietários e agricultores por defeito. A casa natural dos tradicionalistas, religiosos e conservadores que não adoram a ideia de progresso, mas que preferem ser a areia na engrenagem do que a pessoa que se atira para a frente do carro imparável do progresso. 

A todas estas pessoas se consegue associar a ideia de calma, moderação e parcimónia. O povo do centro-direita é pacato, pouco dado a revoluções e apreciador de reformas graduais. Mas com essa pacatez vem a tentação eterna para combater o fogo com o fogo, para subcontratar a alguma turba de radicais reacionários as despesas de fazerem frente a uma esquerda mais militante e ativista. A aliança do centro-direita com a extrema-direita é pouco natural e pouco aconselhável, mas como todas as relações tóxicas resulta de um histórico de codependência e de desejo de adrenalina. 

O centro-direita tem uma tentação eterna pelo abismo do populismo. Como não compreende a militância e esta não lhe interessa, entretém a ideia de subcontratar o ânimo aos reacionários, que, apesar de estarem nos seus antípodas no que toca à forma de fazer política, acabam por defender muitas das ideias essenciais que referi no início. E em alturas de desespero, em que o centro-direita sente uma ameaça existencial vinda do centro-esquerda ou mesmo da esquerda radical, alguns valores (tolerância, compaixão e mesmo a democracia liberal) podem ser sacrificados para proteger os outros (se forem ver, estão todas ligadas com a economia e a redistribuição de riqueza). Posto de forma simples, o eleitor de centro-direita vota com o bolso, que às vezes não se interessa muito por liberdades civis. Portanto, no limite, pode coligar-se com a extrema-direita se isso lhe proteger o bolso, mesmo que lhe venda a alma. 

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Para quem, como eu, pertence à família do centro-direita apesar de ser progressista e otimista antropológico (juro que somos mais do que parecemos), importa articular porque é inaceitável vender assim a alma. A pertença à grande casa do centro-direita depende não só das questões de bolso, mas também de valores. É um eleitorado convencido da sua superioridade moral enquanto garante de que o progresso é o mais consensual e sustentado possível. Para este eleitorado, a ausência da paixão revolucionária é o garante de um projeto ideológico consolidado e que não assusta os moderados. 

O eleitorado moderado é que decide se a direita tem derrotas estrondosas ou vitórias espetaculares. E os moderados não gostam das reformas mais radicais dos teóricos neoliberais, da desumanização dos desfavorecidos feita pelos paladinos do Estado mínimo e principalmente da associação com movimentos que fazem do ódio e do medo as suas armas de arremesso. Dá jeito prestar-lhes mais atenção do que aos radicais já garantidos na direita.

A origem dos movimentos de centro-direita é, normalmente, confessional e portanto natural que no Ocidente esteja ligada à moral cristã. Quem vende a suspeição do próximo e só sabe ser forte com os fracos não pode estar mais longe desses valores. Por isso, um partido de centro-direita que queira ganhar uma eleição terá de ser tão duro com a sua esquerda como com a sua direita. É uma tática famosamente usada por Cavaco Silva, Durão Barroso e Passos Coelho contra o CDS-PP, mas levada ao máximo da eficácia por Sá Carneiro quando destruiu a extrema-direita por gerações ao excluí-la propositadamente da Aliança Democrática (AD). 

Ao fazer uma coligação de direita excluindo forças reacionárias, Sá Carneiro apelou ao voto útil para desmobilizar os reacionários e conseguiu resultados impressionantes. A AD passou duas vezes dos 45% e o melhor que as forças à sua direita fizeram foi chegar a 1,21% dos votos, através do Partido da Democracia Cristã em 1979. Como termo comparativo, em Espanha os sucessores do franquismo não foram devidamente combatidos pela direita democrática, que acabou por se fundir com eles e construir o Partido Popular. 

O caso português era, até meados dos anos 90, um exemplo na Europa Ocidental, a que se juntavam Dinamarca, Áustria e Holanda por exemplo, em que o partido de centro-direita dominante não tinha uma maioria de conservadores, mas sim de liberais, democratas cristãos e centristas sincréticos. Ou seja, um partido com mais ênfase no “centro” do que na “direita”. Esse tinha sido o modelo também em França e em Espanha até ao início dos anos 80, e até era normal no Reino Unido e nos Estados Unidos nas duas décadas anteriores, mas a revolução neoliberal e as políticas de nostalgia e populismo judicial triunfaram nesses países e iniciaram uma revolução política. 

Ao fazer uma coligação de direita excluindo forças reacionárias, Sá Carneiro apelou ao voto útil para desmobilizar os reacionários. Conseguiu resultados impressionantes.

Um a um, os partidos do centro-direita ocidentais abandonaram os consensos internacionalistas do pós-II Guerra Mundial e iniciaram uma “race to the bottom” na fiscalidade que beneficiou as grandes empresas em prejuízo da coesão social, da valorização do trabalho, da competitividade dos mercados e da saúde das contas públicas. 

Outrora forças de apelo à moderação e à responsabilidade, que procuravam fazer amainar os ventos do progresso, o Partido Republicano (EUA) e o Partido Conservador (Reino Unido) transformaram-se, no fim dos anos 70, em forças revolucionárias focadas numa agenda dogmática de desmantelamento do Estado Social e de defesa de uma cultura de egoísmo militante. 

A atomização das sociedades promovida pelo neoliberalismo desfez a confiança que tinha alicerçado 30 anos de prosperidade no pós-guerra, construídos em consenso entre liberais, social-democratas e democratas-cristãos, mas excluindo ostensivamente comunistas e conservadores. Reagan e Thatcher procuraram dinamitar este consenso aproveitando as crises petrolíferas dos anos 70 para mentir sobre a eficácia de políticas centristas e criar um confronto artificial entre o “socialismo” (que a partir daí se confundiria com a ação do Estado) e a “liberdade” (das grandes multinacionais pagarem impostos). 

Em contexto de Guerra Fria, esta cartilha desonesta foi vingando, apesar da enorme desonestidade intelectual necessária para chamar comunistas a Lyndon Johnson ou a Harold Wilson, ou mesmo a moderados de direita como Edward Heath ou Nelson Rockefeller. Apesar de terem produzido reformas importantes para aumentar a produtividade e combater alguns excessos do movimento sindical, Reagan e Thatcher não estavam ali para correções pontuais da antiga política de consensos, mas sim para obliterar as suas fundações.

Líderes sindicais demasiado poderosos ou ligados ao crime organizado foram derrotados (como aconteceu nos Estados Unidos com a recolha do lixo), mas não houve problema em que fosse arrasado conjuntamente o movimento sindical e a sua contribuição para o equilíbrio das relações laborais (uma coisa que aquele comunista do Papa Leão XIII achava de valor). As barreiras protecionistas foram caindo, aumentando a justiça nas trocas com os países em desenvolvimento, mas caíram com uma displicência tal que passámos a subcontratar escravatura para destruir trabalhos dignos nos países desenvolvidos.

A opção pelo reformismo e a oposição a revoluções (exceto em casos extremos), fazia parte da natureza do centro-direita pré-neoliberalismo. À direita de temperamento calmo e consensual sucedeu uma direita tendencialmente sectária e revolucionária. Os que reclamavam a superioridade moral de não se exaltarem no debate político tornaram-se tão histriónicos como os “comunas” que criticavam. Joe McCarthy, o violento anti-comunista que morrera ostracizado pela direita americana nos anos 50, seria mainstream se vivesse nos anos 80.

Primeiro caíram os norte-americanos e os britânicos, depois os espanhóis com José Maria Aznar, os franceses com Chirac e os portugueses com Cavaco Silva, entre outros que adotaram o discurso e as ideias dos pioneiros da nova direita “aguerrida”. O mais interessante é que o centro político se moveu de tal forma para a direita desde os anos 60, que as pessoas que puxavam os seus partidos bem à direita há 30 anos, são hoje vistos como centristas se comparados com Ayuso, Pécresse ou Luís Montenegro.

Assim chegamos ao atual PSD, que há 30 anos dominava o centro político, puxava o PS de Guterres para o centro-direita e era o partido óbvio de poder em Portugal. Três décadas e duas coligações depois com o Partido Popular (força política que importou dos anglo-saxónicos o estilo da direita pugilista), o PSD perdeu o eleitorado moderado que ganha eleições e equaciona coligar-se com uma força populista à sua direita. Volta a procurar subcontratar entusiasmo eleitoral a quem explora a desconfiança de minorias étnicas e o sensacionalismo penal. E se é verdade que as coligações tornaram os 45% da AD uma miragem, também o é que a viragem à direita de Cavaco (em comparação com João Salgueiro) conseguiu 50% pela primeira vez. 

O PSD perdeu o eleitorado moderado que ganha eleições e pondera coligar-se com o Chega. O partido de centro-direita volta a procurar subcontratar quem explora a desconfiança de minorias étnicas e sensacionalismo pena. 

Chego a uma conclusão inusitada e até indesejada. Gostava de dizer que virar à direita traz problemas eleitorais para a direita moderada. Mas dizer que isso tem custos eleitorais não é líquido. Será mais justo dizer que uma viragem à direita funciona se o estilo do líder for apelativo num momento de apatia (Reagan) ou tranquilizador num momento de grande tensão social e política (Cavaco). Acima de tudo, a solução apresentada deve ser credível e não parecer apenas uma tentativa cínica de chegar ao poder. As coligações do PSD com o PP sofreram com a animosidade evidente entre as partes. Nada me leva a crer que uma solução governativa em que o PSD inclua o Chega não seja ainda mais caótica. 

A direita, tal como a esquerda, tem uma longa história de brincar com o fogo. Aos poucos ou de modo precipitado, tentam alcançar o máximo para o seu lado sem dar nada ao outro, o que pode resultar em grandes vitórias que mudam o curso da história a nosso favor, como na eleição de Reagan ou de Mitterrand, onde o risco de apostar num candidato visto como radical foi compensado com uma vitória curta. Ou pode resultar num exagero que deita tudo a perder como a Revolução Cultural de Mao ou os votos a favor do centro-direita à tomada de poder por Hitler. 

O fruto proibido da transformação social e da conquista do poder a todo o custo é tentador, mas, como tenho o temperamento do velho centro-direita, tenho demasiado respeitinho para me arriscar a dar uma trinca.