Professor universitário, coautor do blogue Ladrões de Bicicletas e membro do Conselho Editorial do Le Monde diplomatique – edição portuguesa.

Em defesa de um populismo

Ao contrário do defendido pela abordagem hegemónica, existem populismos e não apenas ‘o’ populismo. Precisamos de um populismo de esquerda enraizado no Estado nacional, democrático e com capacidade de libertar o país das instituições supranacionais. Só com a recuperação dos instrumentos de política pública é que os Estados podem escolher um populismo desenvolmentista.

Ensaio
11 Janeiro 2024

Em 1990, o historiador Eric Hobsbawm assinalava: “o capitalismo e os ricos deixaram, até ver, de estar amedrontados”. Não só deixaram de ter medo, como passaram a ter uma muito maior confiança no futuro: afinal de contas, as dinâmicas de modernização convergiriam num último estádio da história – o capitalismo demoliberal; e sem alternativas sistémicas potencialmente universalizáveis, a história teria terminado, tal como asseverou, com estrépito, um dos seus intelectuais orgânicos norte-americanos, Francis Fukuyama.

Neste contexto, não é de admirar que, em 1989, Jacques Delors capitaneasse o plano para instituir uma União Económica e Monetária (UEM), através do chamado Relatório Delors. Este documento aceitava a transformação do salário direto e indireto, dos Estados sociais construídos à escala nacional, nas variáveis de ajustamento, ou seja, nas variáveis que seriam passíveis de compressão em caso de crise, real ou imaginária. Isto viria a confirmar-se, primeiro, no caminho para o euro e, depois, sobretudo no contexto da sua grande crise a partir de 2009, uma sequela mais intensa e prolongada da crise financeira internacional de 2007-2008, e decorreria da indisponibilidade de outros instrumentos, de que a política cambial seria exemplo, na escala nacional dos Estados sociais europeus.

Se tinha sido, em parte, o medo do socialismo a alimentar a reforma social e democrática do capitalismo a seguir à Segunda Guerra Mundial, sem este medo, também o capitalismo, de novo sem freios e contrapesos sistémicos, tenderia para um padrão economicamente financeirizado, prenhe de crises, socialmente oligárquico, ambientalmente insustentável e politicamente esvaziador da democracia. Seria capitalismo, seria neoliberal e seria cada vez mais desigual e cada vez menos democrático. Sem o chamado reformismo do medo, a social-democracia tornar-se-ia irrelevante. As transformações institucionais registadas na economia política no fundo passariam a transferir os rendimentos e a riqueza de baixo para cima e o medo de cima para baixo.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Mais de um quarto de século depois, é preciso assinalar a presciência da análise histórica de Hobsbawm, de resto tributária de uma certa economia política marxista, mas também a subestimada validade, pelo menos europeia, da previsão de Fukuyama, colocando neste contexto duas questões relacionadas.

O que é que pode hoje meter medo à elite económica e política ainda dominante, que beneficiou de uma globalização entretanto acelerada também pelas instituições supranacionais, onde se destaca precisamente a mais bem oleada máquina pós-democrática de liberalização chamada União Europeia (UE), centrada no projecto de uma moeda com alcance quase mundial, o euro? Qual é a via política para reintroduzir nos países da UE o espectro das alternativas sistémicas, do socialismo, no fundo, reiniciando uma história de progresso interrompida pela regressão registada da década de oitenta em diante?

A resposta a estas duas questões é comum e passa pela defesa de um populismo. Partindo das periferias europeias, eventualmente os elos mais fracos do mais parecido que há com uma cadeia imperialista na atualidade, este populismo tem de ter uma declinação eurocética, ou seja, uma declinação soberanista e democrática.

Um novo espectro

Num intervalo entre privatizações maciças, alterações regressivas da legislação laboral e austeridade sem fim, impostas pelas instituições europeias e aceites e implementadas pela esquerda dita radical, o Ministro das Finanças grego, Euclid Tsakalotos, escreveu um artigo para o Financial Times sobre a arquitetura da zona euro, tomando de forma sempre ideologicamente reveladora os EUA como referência para “completar a zona euro e banir o espectro do populismo”, esquecendo entretanto que estes são precisamente um dos berços históricos de um populismo hoje, de novo, aí potente.

Um dos líderes de uma das promessas do populismo de esquerda europeu, o Syriza, e isto a fazer fé em Chantal Mouffe, a sua principal teórica, estaria afinal apostado em convocá-lo, mas apenas para apelar a um reforço da integração de natureza federal que fosse supostamente capaz de o esconjurar; um europeísmo de resto partilhado com Mouffe, sendo que esta última é da opinião que reclamar o populismo para a esquerda, roubando-o à direita, é a melhor forma de democratizar e salvar o que apoda de projecto europeu. Diferentes meios para o mesmo fim?

A pergunta é desinteressante, porque, felizmente, há cada vez mais vida política e intelectual para lá do europeísmo. Aliás, só há “momento populista” para lá do europeísmo, apostando-se na hegemonia a partir do Estado nacional, cuja soberania foi furtivamente transferida, sobretudo desde a década de noventa, para instâncias supranacionais bem menos democráticas, numa lógica geopolítica e de classe que é indissociável da UE realmente existente.

Em democracia, o medo não pode estar concentrado em baixo para sempre. E já vai sendo tempo de o transferir de baixo para cima.

Convém, entretanto, sublinhar como é absolutamente ilustrativo da cooptação da elite do Syriza, o facto de Tsakalotos juntar a sua voz ao coro euroliberal, aquele que diariamente brada contra o populismo, sempre referido no singular, reduzindo-o a uma patologia. O populismo tem uma dupla utilidade neste contexto. Para a elite do poder europeu dominante é o nome do inimigo interno, capaz de conferir uma aura de legitimidade ao seu liberalismo do medo, evitando viragens à esquerda por parte do que resta da social-democracia, presa às armadilhas da integração supranacional – Merkel, Schulz e Macron, no fundo.

O insuspeito Francis Fukuyama tem uma fórmula que vale a pena repescar neste contexto: “populismo é o termo que as elites usam para as políticas de que não gostam, mas que a gente comum apoia”. Para os europeístas da esquerda dita radical, populismo é o nome do argumento que resta quando o que resta é apelar à razoabilidade de quem realmente manda: vá lá, façam concessões euro-keynesianas, ainda que mitigadas, se não vêm lá os maus.

O descontentamento só cresce à medida que se tornarem de novo claras as consequências de um sistema preso por fios monetários e que está por reformar nas suas estruturas.Só um crescimento do populismo de esquerda pode alterar os dados da dependência no nosso país.

A ciência política convencional nunca anda muito longe das elites. Mesmo reconhecendo, algo timidamente, que a União Europeia foi desde sempre dominada por uma “tecnocracia” desconfiada da soberania popular, ficando também por isso de alguma forma exposta à crítica populista, Jan-Werner Müller acusa o populismo de ser intrinsecamente antipluralista e de constituir uma “sombra permanente sobre a democracia representativa e um perigo constante”.

Alinhando pelo mesmo diapasão político e sugerindo que o populismo “por si só” procura soluções simples para problemas complexos, Cas Mudde e Cristóbal Kaltwasser afiançam que se caracteriza por ser “uma ideologia de baixa densidade”, que considera que “a sociedade está (...) dividida em dois campos homogéneos e antagónicos – ‘o povo puro’ versus a ‘elite corrupta’”. Esta simplicidade só é eventual e parcialmente superada quando o populismo surge, o que de alguma forma tende funcionalmente a ocorrer, ligado a ideologias “densas” e “totais”, tais como o fascismo, o liberalismo ou o socialismo. Apesar de tudo, logo por aqui se vê que, na realidade, populismos, de resto tal como acontece, por exemplo, com os igualmente denegridos nacionalismos, houve, há e haverá sempre muitos, antagónicos nas suas justificações e nas suas consequências.

Em contracorrente com uma literatura de caça política ao populismo, o ensaísta John B. Judis, no melhor livro recentemente editado entre nós sobre este tema, começa sensatamente por distinguir entre populismo das direitas, “triádico”, e populismo das esquerdas, “diádico”. O populismo dito triádico, de Trump a Le Pen, alimenta uma clivagem, sobretudo cultural e política, entre povo e elite, sendo que esta última é acusada de proteger um terceiro grupo, minoritário, que serve então de bode expiatório para problemas reais. O populismo das direitas, como Trump ilustra, não mete grande medo às elites do poder, porque deixa intacto a lógica do presente sistema socioeconómico, canalizando a justificada raiva e angústia populares para os que estão ainda mais em baixo.

E neste processo corre o risco de dar um novo fôlego ao chamado “neoliberalismo progressista”, com responsabilidades na eleição de Trump: típico dos democratas norte-americanos, de Clinton a Obama, e de uma parte não despicienda das elites europeias, acomoda selectivamente as questões do reconhecimento e da inclusão, de género ou racial, mas num quadro de economia política, tomado como se fosse natural e imutável, onde as injustiças e injúrias de classe (“os deploráveis”), de resto com reflexos negativos nas desigualdades de género e nas descriminações raciais, permanecem.

O populismo diádico, por sua vez, de Bernie Sanders a Jean-Luc Mélenchon, expõe uma clivagem material, bem real, entre povo, concebido de forma inclusiva – da classe operária a vastos sectores empobrecidos das classes médias, e uma elite económica cada vez mais rica e com cada vez maior capacidade de transformar riqueza em poder político. Esta clivagem foi radicalmente aprofundada ao longo das últimas décadas por regras neoliberais, as que transferem recursos de baixo para cima, decisivamente favorecidas pela globalização, de que a UE é o outro nome no continente europeu.

A força dos populismos é totalmente incompreensível sem as crises recorrentes da globalização, no quadro de um capitalismo cada vez mais financeirizado, em sociedades economicamente cada vez mais desiguais. Até os economistas convencionais já diagnosticaram que a difusão do que consideram ser uma espécie vírus populista é causada pela “insegurança económica”, sentida por amplos segmentos das classes populares europeias, distinguindo neste contexto entre causas, fundamentalmente económicas, para a mudança nas crenças políticas numa direção populista e “canais culturais” para a decisão de votar em partidos populistas, ao invés, por exemplo, de se absterem, como faziam cada vez mais para descanso de quem manda.

Nunca houve e nunca haverá desenvolvimento sem o controlo nacional de instrumentos de política pública que garantam alguma margem de manobra aos Estados nacionais.

Obviamente, reduzir a insegurança económica para debelar o tal vírus, implica uma mudança de política económica, passo que só alguns prescrevem timidamente, no sentido de encarar um eventual reforço da redistribuição de cima para baixo, como uma medida de precaução política e não de justiça social. Obviamente, a União Europeia e a Zona Euro, geralmente consideradas sacrossantas por esses mesmos economistas, bloqueiam qualquer mudança consequente nesta área, mudanças na margem dos Estados sociais que sobram depois da austeridade, o que pode ser compatível com o que existe. Entretanto, confia-se que a recuperação económica e a correspondente criação de emprego possam ajudar a debelar o vírus.

Se atentarmos na análise do economista igualmente convencional Dani Rodrik, temos um contributo um pouco mais ousado politicamente, ao considerar que o populismo das direitas seria favorecido pela saliência dos fluxos migratórios, enquanto que o das esquerdas seria favorecido pela saliência dos fluxos comerciais e financeiros internacionais. Tal como há diferentes fluxos, poderá haver diferentes formas de desglobalização, já que os populismos tendem a ser críticos da globalização.

Embora perpetue uma distinção pouco útil entre o económico e o político, Rodrik tem pelo menos o mérito de ousar distinguir um populismo “político”, criticável, que ameaçaria as instituições do Estado de Direito democrático, dada a promoção da polarização e as tentações de erodir os freios e contrapesos formais que protegem as minorias, de um populismo “económico”, defensável em certas circunstâncias, que aponta para as entorses institucionais pós-democráticas internas e externas à ação desse mesmo Estado democrático – dos bancos centrais independentes às regras orçamentais anti- keynesianas.

Ao dar margem de manobra aos Estados para resolverem as crises económicas que os afetam, o populismo dito económico poderia ser, segundo Rodrik, um antídoto para o populismo dito político. Se o Estado nacional e a democracia, com impactos verdadeiramente contracíclicos e distributivos, de cima para baixo, só podem ser reconciliados através de uma redução salutar da integração internacional e do poder das suas instituições de suporte, a tal desglobalização, então, é caso para dizer, que o populismo económico teria também um alcance profundamente político e potencialmente democratizador. Ao invés de ser antipluralista, uma variante do populismo poderia aumentar o pluralismo das alternativas.

A promessa do populismo de esquerda

Contra as abordagens predominantemente de combate aos populismos, devemos ao teórico político Ernesto Laclau uma das mais sofisticadas teorizações da “razão populista”, sendo que o seu trabalho não pode ser desligado de uma parceria também intelectual de décadas com Chantal Mouffe, que de alguma forma lhe deu continuidade nesta área depois do seu falecimento.

Laclau e Mouffe apostaram sempre em pensar as questões da hegemonia e do conflito político no quadro de um programa de radicalização das práticas democráticas, levando-as para as várias esferas da vida, com respostas centradas nas articulações político-discursivas, criadoras de sujeitos políticos insurgentes, eventualmente maioritários, mas desligadas de qualquer relação de dependência causal, dita essencialista, com as condições económicas objetivas que configuram as classes em si.

Em nome da recusa de qualquer determinismo económico, tratava-se de procurar uma total autonomização do político e das identidades por este geradas num contexto em que as classes sociais davam lugar a uma multiplicação e complexificação das posições sociais.

Os seus contributos são úteis, desde que sejam parte de um projeto intelectual e político mais vasto, consciente do risco de voluntarismo político extremo, inerente à subestimação dos constrangimentos e das determinações materiais do capitalismo e da correspondente desvalorização do programa capaz de as sintetizar e de dar densidade socioeconómica às exigências populares. Num certo sentido, é a questão, colocada por marxistas como Antonio Gramsci, da construção política de uma vontade geral nacional-popular, dos grupos socioeconómicos que a lideram e que terão de emergir das relações sociais que definem, em cada momento, o capitalismo e do programa, também económico, de transição, em última instância, ético-política, que temos de continuar a ter presente no contexto histórico presente.

“Populismo é o termo que as elites usam para as políticas de que não gostam, mas que a gente comum apoia”, defende Francis Fukuyama.

Entretanto, a lógica populista pode acabar a ser pensada na consolidação discursiva de uma “fronteira antagonística”, de geometria histórica e espacialmente variável, um “nós” e um “eles”, que é, em última instância, inevitável em sociedades onde as massas muito dificilmente podem ser arredadas da política, apesar de todos os esforços elitistas, ou seja, que é parte integrante da prática democrática. Mas, para começar, o sujeito popular tem de emergir, como acaba por ser reconhecido, da incapacidade do sistema político, controlado por uma elite do poder, em satisfazer um conjunto vasto de exigências democráticas, com conteúdo material, vindas de baixo.

Hoje, uma vez mais, qual é a escala onde a impotência das instituições democráticas e a exigência de reconquista do controlo democrático se podem cruzar em primeiro lugar, na lógica do desenvolvimento desigual e nas variedades de capitalismo existentes numa área crescentemente heterogénea, incluindo ao nível dos Estados sociais e fiscais ou ao nível das taxas de desemprego; atentemos, em segundo lugar, na forma como os desníveis de desenvolvimento, sobretudo no quadro de um mesmo colete-de-forças monetário, deram origem a uma fratura credor-devedor; atentemos, em terceiro lugar, nas diferentes tradições políticas nacionais e no natural desfasamento dos ciclos político-eleitorais, combinados com a resiliência dos vínculos e hábitos nacionais, particularmente entre os sectores populares, contrastando com o cosmopolitismo europeu alardeado pelas frações dominantes do capital, em especial financeiro, capazes de arrastar sectores intermédios, sobretudo nas profissões intelectuais; atentemos, finalmente, no lastro institucional deixado pelas últimas décadas de integração neoliberal, incluindo numa polarização espacial mais vincada e num mais do que previsível vazio de cidadania na escala supranacional.

O poderoso Presidente da República é uma rara variante populista de direita neoliberal, aparentemente inclusivo e afetuoso na forma freneticamente mediática como o faz, mas ao serviço de um conteúdo político favorável  à integração europeia, e a tudo o que esta implica em termos de economia política, e ao parasitismo dos grupos económicos, em modo parceria público-privada, nas áreas do Estado social.

Estando atento, diria que os Estados realmente existentes são a escala de ação política que pode e deve ser privilegiada. Os populismos triádicos das direitas, no fundo, sabem isso, mas não têm programa que sirva os interesses dos grupos subalternos. Uma parte das esquerdas europeias desaprendeu isso, devido ao europeísmo, e viu-se desprovida de programa consequente, deixando vago o terreno popular da imaginação de uma comunidade política nacional densa, onde se declina uma primeira pessoa do plural.

Para lá de ser um útil contrafogo ao populismo triádico das direitas, a promessa que o populismo encerra para as esquerdas é a de as ajudar na redescoberta do potencial político que a categoria nós, o povo, encerra, bem como o entorno nacional onde esta tende a florescer politicamente, até porque é aí que estão as instituições, incluindo as do Estado social, e os hábitos, incluindo os de participação sindical e partidária, que ainda criam laço social. Só a partir daí faz sentido pensar nas articulações internacionalistas que ajudem na reconquista de margem de manobra nacional.

Na periferia europeia, onde as dinâmicas internas são sobredeterminadas externamente, a construção de uma vontade nacional-popular tem certamente um elemento diádico, contra uma elite nacional plutocrática e que pensa como se estivesse no centro, mas também tem um elemento triádico, embora modificado por contraste com o das direitas: da dívida ao controlo estrangeiro da banca, passando pelo euro, aquela elite depende objetivamente de um terceiro elemento estrangeiro que lhe dá força. Trata-se da finança do Norte e das suas expressões político-institucionais, da Comissão Europeia ao Banco Central Europeu. A finança é o ponto de partida material para construir um “nós” e logo um “eles”.

É caso para dizer que a fronteira traçada no e pelo conflito, de que fala metaforicamente Laclau, tem de passar por um programa que coloque em causa e limite realmente a política de fronteiras abertas, inerente à UE, a que alimenta toda a chantagem do capital mais móvel. Sem algum grau de fronteira económica, sem algum controlo político democrático sobre os capitais e sobre os fluxos comerciais ao nível dos Estados, as bases materiais da soberania, da autoridade política e logo da democracia, são socavadas. E é erodida a segurança, social, a que é garantida pela provisão pública de recursos essenciais. A política popular passou de resto sempre pela disputa ideológica da fronteira e da segurança a garantir, como a esquerda que conhece a sua história tem a obrigação de saber.

Em articulação com estes elementos genéricos, o programa populista das esquerdas tem de colocar o problema do desenvolvimento das capacidades socioeconómicas nacionais, em particular nas periferias devedoras. Ou seja, o populismo tem de ser desenvolvimentista. E não há desenvolvimento que não passe materialmente por articular, numa sequência causal, a reestruturação da dívida por iniciativa do devedor, os controlos nacionais de capitais, a socialização do sistema financeiro, acabando na recuperação da soberania monetária possível, com a saída do euro, idealmente no quadro do seu desmantelamento.

Só a partir daqui é que um país dispõe dos instrumentos para poder cuidar de uma política económica orientada para o pleno emprego, para uma distribuição primária mais equilibrada do rendimento, produto de relações de poder mais favoráveis à grande massa dos trabalhadores, dando os incentivos certos às frações da burguesia que teriam de ser parte de uma vasta aliança liderada politicamente pelas forças do trabalho.

No fundo, retoma-se uma intuição: nunca houve e nunca haverá desenvolvimento sem o controlo nacional de instrumentos de política pública que garantam alguma margem de manobra aos Estados nacionais. Não é por acaso que uma componente da política nacional-popular passa por nacionalizações, pelo reforço do Serviço Nacional de Saúde, etc. Políticas e instituições nacionais, note-se, que, de resto, são cada vez mais populares perante o fracasso das alternativas privadas em amplos sectores da provisão.

Então e a solução governativa?

Tudo o que acabámos de dizer não tem, aparentemente, grande conexão política com o que recentemente se tem passado em Portugal. Afinal de contas, por cá vigora uma inédita solução política em que um governo minoritário do PS conta com o apoio parlamentar dos partidos à sua esquerda, mantendo os seus compromissos de sempre com a integração europeia e as suas regras, particularmente em matéria orçamental e financeira.

Isto, num quadro conjuntural que é de razoável crescimento económico, de redução do desemprego e de tépida recuperação global de rendimentos do trabalho, ainda que com algum alcance nos segmentos mais pobres das classes trabalhadoras, graças aos aumentos registados no salário mínimo. Trata-se, ainda, do primeiro governo, em décadas, que não está comprometido com qualquer processo de privatização formal, gozando de um amplo apoio popular, num contexto de expectativas políticas ainda muito diminuídas pelos anos de alternância entre estagnação e regressão.

Afinal de contas, também não está comprometido com qualquer das muitas nacionalizações necessárias. Esta adaptação das expectativas – o profético “aguenta, aguenta” – não pode ser desligada dos constrangimentos impostos pelas estruturas europeias, incluindo as associadas ao euro, que parecem impossíveis de remover. O governo teria operado uma verdadeira quadratura do círculo político: ganhou confiança em baixo - cá dentro - e em cima - lá fora – em particular junto das elites do poder europeu que lhe eram inicialmente claramente hostis.

Para a elite do poder europeu dominante o populismo é o nome do inimigo interno, capaz de conferir uma aura de legitimidade ao seu liberalismo do medo, evitando viragens à esquerda por parte do que resta da social-democracia, presa às armadilhas da integração supranacional.

A chamada eleição do Ministro das Finanças, Mário Centeno, um economista de credenciais impecavelmente neoliberais, para a chamada Presidência do chamado Eurogrupo é sintomática neste contexto. Para tal nomeação, contribuíram, certamente, os seguintes factos: a obediência à lógica europeia da “estabilização do sistema financeiro”, em que os contribuintes portugueses pagam, mas não mandam, assistindo ao incremento do controlo estrangeiro da banca e a uma Caixa Geral de Depósitos obrigada, ainda mais, a comportar-se como se fosse um banco privado; os saldos orçamentais registados, também, à boleia da conjuntura económica favorável, mas que não deixam de ter como contrapartida a percentagem mais baixa de investimento público em percentagem do PIB ou a mais baixa percentagem de emprego público no emprego total da UE; o papel de Mário Centeno, originalmente um ortodoxo economista do trabalho no Banco de Portugal, entre outros, na manutenção da pesada herança da troika em matéria de regras laborais; e isto para já não falar de ter contribuído para que praticamente se tenha deixado de falar do problema da dívida.

Em contraste com o declínio significativo da social-democracia europeia, e sem fazer qualquer tipo de ruturas ideológicas, como as que estão em curso no trabalhismo britânico, o PS teria conseguido manter-se como força dominante a partir do centro-esquerda herdeiro da Terceira Via e do mais intenso europeísmo O seu governo teria travado, assim, a afirmação e o crescimento dos populismos, particularmente os de esquerda, já que não parece haver, ainda, condições e vontades para tentativas de importação das variantes europeias de populismo das direitas no nosso país.

Enquanto desempenhar esta função, e enquanto não houver alternativa política à direita ou condições para um bloco central desejado por alguns, o governo poderá contar com o beneplácito do poderoso Presidente da República. Este último é, por sua vez, uma rara variante populista de direita neoliberal, aparentemente inclusivo e afetuoso na forma freneticamente mediática como o faz, mas ao serviço de um conteúdo político favorável, entre outros, à integração europeia, e a tudo o que esta implica em termos de economia política, e ao parasitismo dos grupos económicos, em modo parceria público-privada, nas áreas do Estado social.

A força dos populismos é totalmente incompreensível sem as crises recorrentes da globalização, no quadro de um capitalismo cada vez mais financeirizado, em sociedades economicamente cada vez mais desiguais.

É claro que para esta situação política de quadratura do círculo contribuiu materialmente uma conjuntura externa temporariamente distendida: das taxas de juro historicamente baixas, garantidas pelo Banco Central Europeu, à recuperação cíclica das principais economias, passando pelos crescentes fluxos turísticos que Portugal capta, em parte, graças à instabilidade política de destinos rivais, até ao abundante capital financeiro que circula por aí e que vê no vasto património imobiliário nacional uma oportunidade para um investimento relativamente rentável. Neste contexto, o governo alardeia a abertura da sociedade portuguesa e alguns dos elementos mais direitistas ensaiam aqui e ali a replicação do velho slogan das sociedades abertas e fechadas.

Ao viabilizar um governo do PS nas circunstâncias que eram as de final de 2015, o PCP e o BE fizeram o que, convocando Walter Benjamim, tem de ser feito em tempos trágicos: usaram o travão político de emergência, parando temporariamente o comboio da história nacional que se dirigia para o abismo, que, no nosso contexto histórico, seria o dos cortes, privatizações e redução dos direitos laborais sem fim. Num contexto saído de um recuo significativo do movimento operário e popular durante a troika, numa correlação de forças a múltiplos títulos e escalas desfavorável, cada um à sua maneira apostou na obtenção de ganhos, ainda que modestos, para os de baixo.

Particularmente no início do governo, não deixaram de denunciar a ingerência externa europeia que hoje os continua a limitar, bem como a limitar a mobilização de instrumentos de política capazes de alterar a estrutura da economia portuguesa, de resto especializada cada vez mais em sectores com fracos ganhos de produtividade e ampla precariedade, como é o caso do turismo.

Ao mesmo tempo, e cada vez mais, PCP e BE insistem na necessidade de remover a herança da troika em matéria de relações laborais, confrontando o PS com as suas contradições e compromissos ideológicos, que de resto atingem áreas mais vastas ou não tivesse sido este partido também um promotor de maciças e ruinosas privatizações ou parcerias público-privadas em que recusa mexer, da energia aos correios, passando por muitos hospitais.

Entretanto, Portugal tornou-se um destino para um certo turismo político algo deslocado, dadas as especificidades das nossas circunstâncias e a impossibilidade de as replicar noutros lugares. Em contraste com observadores demasiado voluntaristas, Daniel Finn afirmou na radicalmente sóbria New Left Review o seguinte: “Ao resistirem à tentação de entrar no governo de Costa, optando por extrair concessões modestas mas tangíveis em troca do apoio parlamentar, o BE e o PCP traçaram um caminho entre o fechamento sectário e a neutralização política, mantendo a oportunidade de colocar em cima da mesa soluções mais radicais [da reestruturação da dívida à saída do Euro] para as dificuldades do país quando a próxima crise da Zona Euro chegar”.

Sem algum grau de fronteira económica, sem algum controlo político democrático sobre os capitais e sobre os fluxos comerciais ao nível dos Estados, as bases materiais da soberania, da autoridade política e logo da democracia, são socavadas.

Se é verdade que PCP e BE são, cada um à sua maneira, componentes vitais de qualquer projeto viável de construção de uma vontade coletiva nacional e popular, o facto é que são ainda muitos os obstáculos subjetivos e objetivos a tal projeto. Em primeiro lugar, o clima de acrimónia entre os dois partidos é completamente contraproducente, tanto mais que, graças à aparente rutura do BE com o europeísmo de esquerda depois da tragédia do Syriza, existe hoje uma área de sobreposição soberanista mais forte. Se é preciso não esquecer que uma comunicação hostil tem todo o interesse em sublinhar o narcisismo das pequenas diferenças, também é verdade que se deveriam evitar declarações de hostilidade mútua que só servem a hegemonia do PS.

Em segundo lugar, aquelas componentes vitais de um programa nacional-popular, como a reestruturação da dívida por iniciativa do devedor, têm sido demasiado secundarizadas, chegando a ser alvo, caso do BE, de compromissos com o PS que a remetem para um mítico nível europeu, como se viu em recente relatório sobre o tema.

Em terceiro lugar, o apoio prolongado ao governo PS corre o risco de levar a uma hipervalorização de pequenas conquistas distributivas, levando a que se deixe de fazer uma pedagogia mais ativa dos constrangimentos e dos bloqueios que pesam sobre o desenvolvimento do nosso país e das formas para os superar. A esquerda não pode ficar acantonada nos termos fixados pelo PS e pela UE, mais ainda quando esses termos estão destinados a fazer com que essa esquerda pareça “irresponsável” em matéria orçamental, sobretudo quando coloca o enfoque nos necessários aumentos da despesa.

Em quarto lugar, o facto de ambos os partidos insistirem na questão laboral e no reforço necessário da provisão pública, permite fazer demarcações necessárias, mas não basta, ainda para mais num contexto de desunião política e de força dos constrangimentos europeus, que tendem a tornar-se naturais com o passar do tempo e com superação eventualmente provisória das maiores dificuldades na zona euro. É preciso um maior enfoque em políticas de desenvolvimento e nos instrumentos de política – de crédito, industrial, cambial, etc. – que as tornam consequentes.

Conclusão

Em democracia, o medo não pode estar concentrado em baixo para sempre. E já vai sendo tempo de o transferir de baixo para cima. Falta, no entanto, a oportunidade e o sujeito político capazes de federar por cá a impaciência e frustração populares, num contexto de imensa fragmentação social.

O descontentamento só cresce à medida que se tornarem de novo claras as consequências de um sistema preso por fios monetários e que está por reformar nas suas estruturas, por um lado, e que emerja o sujeito portador de um programa que transforme o medo paralisante em esperança mobilizadora para o povo, por outro. Só um crescimento do populismo de esquerda pode alterar os dados da dependência no nosso país.

As elites do poder nacional e europeu, no fundo, sabem isso. Não nos esqueçamos também disso, secundarizando a preparação das condições intelectuais e políticas para tal transformação. A crise do que passa por social-democracia pôde ser politicamente adiada nesta periferia, mas, tal como noutros lugares, talvez não possa ser por muito mais tempo evitada.

Ensaio originalmente publicado na edição nº1 da Revista Manifesto, de 2018.

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