Professor universitário, coautor do blogue Ladrões de Bicicletas e membro do Conselho Editorial do Le Monde diplomatique – edição portuguesa.

Professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia, no Brasil.

E já só há o Estado a que isto chegou

A pandemia revelou que o Estado nacional é incontornável nas respostas que contam durante a emergência e nas mudanças que têm de ocorrer para lá dela. No entanto, o Estado português foi reconfigurado por processos de neoliberalização que tornam muito difícil a mobilização política de respostas públicas à altura dos múltiplos desafios.

Ensaio
14 Dezembro 2023

A pandemia trouxe consigo uma crise socioeconómica sem precedentes. Têm sido, assim, expostas as vulnerabilidades de um país que estava a recuperar lentamente da última crise, através de um pouco produtivo nexo turismo-imobiliário- finança, com uma percentagem relevante da força de trabalho precária e mal paga. Não por acaso, Portugal é, conjuntamente com outros destinos turísticos – da Espanha à Grécia, passando pela Croácia –, um dos países europeus mais atingidos por esta crise. O modelo de capitalismo consolidado desde a intervenção da Troika não passou o teste do tempo.

Parece ser hoje consensual, mesmo entre muitos dos que colaboraram na sua institucionalização política, que é preciso uma mudança: da recuperação da retórica da reindustrialização até a uma certa ênfase nas virtudes dos serviços públicos, como o Serviço Nacional de Saúde ou a escola pública, nos quais seria necessário investir.

No entanto, e este é o argumento central deste artigo, qualquer mudança pressupõe a superação da forma neoliberal de Estado, indissociável daquele modelo de capitalismo e da integração europeia, sem a qual, de resto, ambos são incompreensíveis. Esta forma neoliberal é, simplesmente, incompatível com a mudança de modelo, quer por falta de instrumentos de política, quer pelos enviesamentos de classe que tal situação gera. Uma nova forma de Estado exigirá, certamente, um investimento na capacitação técnica para o planeamento, deliberadamente desmantelada nas últimas décadas, mas não poderá ficar refém da ilusão tecnocrática de que o Estado e as suas políticas, qual caixa negra de ferramentas, pairam acima das forças sociais em presença na formação portuguesa. Na realidade, temos a obrigação de saber que o Estado é em simultâneo um campo central do conflito social e um seu árbitro sempre parcial.

No entanto, o discurso à esquerda com mais impacto mediático parece muitas vezes ter sido capturado pelo enquadramento político promovido pelas forças do neoliberalismo, nomeadamente pela oposição entre as esferas nacional e global, onde só a primeira é objeto de real intervenção política, aceitando-se (criticamente) o enquadramento externo como dado, e pela oposição entre privado e público. Face à abdicação, de facto, dos projetos populares de mudança sistémica nos seus diferentes matizes – do socialismo revolucionário ao pleno-emprego e progressiva desmercadorização social-democrata, passando pela rutura com o imperialismo e colonialismo do desenvolvimentismo terceiro-mundista –, o pensamento à esquerda coloca-se, pois, numa posição defensiva de serviços públicos, rendimentos e assistência social, pouco ou nada articulada com objetivos macroeconómicos que qualquer mudança sistémica implica.

Paradoxalmente, ou talvez não, este entrincheiramento no (reduzido) Estado nacional é acompanhado por um transnacionalismo voluntarista, onde o esvaziamento da esfera nacional seria contrabalançado por um futuro reforço democrático das instituições supranacionais que nos constrangem, numa atitude política que esquece décadas de experiência de solidariedade internacionalista, colocada sempre nos espaços políticos que contam, os nacionais. Os resultados políticos desta atitude não são famosos.

Para entendermos as transformações institucionais profundas temos de recuar três décadas e identificar as diferentes forças que foram esvaziando e reconfigurando o Estado como instrumento de política.

Tudo começou pela progressiva privatização de empresas públicas em sectores estratégicos, da grande indústria aos serviços de rede, passando pelo crucial sistema financeiro. Ao privatizar empresas públicas, o Estado perdeu o controlo direto de sectores vitais, alavancas para um investimento público coordenado eficaz, ao mesmo tempo que estas empresas públicas também eram baluartes relevantes da classe trabalhadora organizada. As relações de propriedade nunca são neutras socialmente, até porque só com propriedade pública pode o Estado conquistar alguma autonomia em relação aos interesses privados.

O pensamento à esquerda coloca-se, pois, numa posição defensiva de serviços públicos, rendimentos e assistência social, pouco ou nada articulada com objetivos macroeconómicos que qualquer mudança sistémica implica.

Esta transformação traduziu-se numa visão estreita de investimento público, subsumido a investimentos horizontais em infraestruturas e qualificação de recursos humanos. O Estado foi deixando de produzir diretamente bens e serviços, o que, hoje, impede qualquer plano articulado de relançamento da economia que debele diretamente os estrangulamentos na produção decorrentes da pandemia e forneça bens e serviços essenciais à reestruturação do tecido económico, da energia às telecomunicações, passando pelo papel central do crédito.

Se é certo que esta retirada do Estado sempre encontrou, e encontra, resistência à esquerda, os argumentos a favor das empresas públicas, com honrosas exceções nos transportes e correios, passaram a centrar-se na perda para os cofres públicos dos lucros destas empresas. Em segundo plano passou a estar o papel que tais empresas (energia, telecomunicações, banca, cimenteiras, etc) poderiam desempenhar como instrumentos de política económica e de organização de trabalhadores. Tal reconfiguração política deve ser entendida como consequência de transformações no campo macroeconómico. Ao colocar a concorrência de mercado no altar da modernização económica, o sentido político da intervenção do Estado na economia, enquanto produtor, ficou esvaziado. Esta transformação, no caso português, teve o processo de integração europeia no mercado único como eixo primordial.

A adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e a sua transformação posterior em União Europeia (UE) foram passos decisivos para bloquear de forma irreversível um Estado desenvolvimentista digno desse nome. Para lá da total liberalização das relações económicas com o exterior, incluindo a abolição dos controlos à entrada e saída de capitais no início dos anos noventa, a proibição das ajudas de Estado, em linha com as regras do mercado interno policiadas pela Comissão Europeia, esvaziou qualquer possibilidade de a democracia ter uma política nacional seletiva de desenvolvimento industrial, para a qual as empresas públicas eram, de resto, um esteio vital. O liberalismo económico sempre foi o protecionismo dos Estados mais fortes. O aprisionamento do Estado português pela lógica neoliberal da integração europeia reforçou, então, o seu carácter de classe em outras áreas, como a fiscal, de resto, uma onde se registou uma notável modernização. Se, formalmente, a fiscalidade é um atributo dos Estado nacionais na UE, a liberdade acrescida para o capital reforçou a tendência para a erosão da progressividade fiscal, quer por via da redução da progressividade do IRS, quer por via do aumento do peso dos regressivos impostos indiretos.

Os Estados têm sido compelidos, pela lógica da concorrência fiscal, a seguir uma corrida para o fundo, tentando seduzir empresas e os capitalistas, de resto cada vez mais especializados em arbitrar diferentes jurisdições, obtendo benefícios e outros privilégios fiscais. Sem instrumentos decentes de política económica, não é só a política fiscal que se torna numa enviesada variável de ajustamento, já que o mesmo acontece com o salário direto e indireto, tanto por via da redução de direitos laborais, como por via da redução dos relacionados direitos sociais.

Para lá da sacrossanta concorrência de mercado, o movimento de neoliberalização refletiu-se também de forma profunda na política económica, orçamental e monetária, em larga medida furtada à esfera da democracia pela separação entre Tesouro nacional e Banco Central, agora dito independente e proibido de financiar um Estado colocado na dependência primeira dos mercados financeiros e do Banco Central Europeu. O país passou a estar endividado numa moeda sob a qual não tem qualquer controlo político, perdendo toda a soberania democrática numa área que incluía também a decisiva política cambial.

A política orçamental foi amputada e ainda condicionada por complementares regras draconianas, orientadas para um enviesado equilíbrio orçamental. A austeridade permanente resume-se em dois dados: o mais baixo peso do investimento público no PIB da UE e uma das mais baixas percentagens de emprego público na força de trabalho total. Se a democracia é uma tradução institucional da aspiração à igualdade social numa dada comunidade e se a moeda é uma relação fundamental em qualquer economia monetária de produção, facilmente se compreende como este processo nunca poderia ser neutro, que mais não fosse pelo controlo externo por parte de entidades sem qualquer legitimidade democrática.

Infelizmente, a esquerda tem acompanhado a deslocação do debate económico para a discussão do défice orçamental como única variável de política macroeconómica. Face à imposição do equilíbrio orçamental, defende-se um relaxamento do défice enquanto estabilizador da economia, numa versão simplista do pensamento keynesiano que, pelo contrário, sempre se articulou com a política monetária e com uma política industrial de capacidade e centralização de investimento público para o equilíbrio económico que importa, o do pleno emprego, variável aliás decisiva no conflito social. Com as possibilidades políticas de intervenção pública na economia reduzidas, as políticas industrial, comercial, monetária, orçamental e fiscal são, pois, esquecidas ou disputadas no quadro de imposições europeias.

Ora, esta última disputa tem-se revelado mera postura política, oscilando entre a crítica contundente, sem se admitirem as necessárias consequências programáticas, e a proposta, mais confortável, mas contraditória, de maior integração europeia, que abrisse o campo para a construção de um Estado supra-nacional com todos os instrumentos ao seu dispôr, numa fuga para a frente que permite sempre a crítica e o lamento à posteriori. As repetidas propostas de euro-obrigações são um bom exemplo. Depois de décadas como reivindicação da esquerda europeísta, agora tornada realidade, são consideradas insuficientes num quadro em que a União Europeia não tem o poder de taxação. E daí a fuga para a frente na defesa da criação de uma Autoridade Tributária europeia, ao mesmo tempo que se lamenta as passadas perdas de soberania económica. De ambas as formas, abdica-se, na prática, do papel do Estado na intervenção e planeamento da economia, evitando qualquer reflexão de mudança mais sistémica que comandou todas as tradições de esquerda ao longo do século XX.

Se é certo que esta retirada do Estado sempre encontrou, e encontra, resistência à esquerda, os argumentos a favor das empresas públicas, com honrosas exceções nos transportes e correios, passaram a centrar-se na perda para os cofres públicos dos lucros destas empresas.

Esta amnésia política de pensar o Estado e sua intervenção, do ponto de vista do planeamento macroeconómico, declina-se no abandono do planeamento democrático naquilo que continua a ser público. O enviesamento de classe da neoliberalização do Estado introduziu a lógica da chamada nova gestão pública, representando a institucionalização de uma crescente empresarialização, avaliação e contratualização das funções do Estado, tomando por referência um modelo idealizado do mercado. A esquerda, ao traçar a sua trincheira defensiva contra a ofensiva privada sobre os serviços públicos, tem descurado a retaguarda, ou seja, a forma como os serviços públicos são geridos, através de mimetismos de mercado, conduzindo à precarização das relações laborais e ao esvaziamento dos mecanismos de controlo democrático nascidos do 25 de Abril, o que, mais cedo ou mais tarde, permite a entrada de capital privado.

O ritmo destas transformações não é uniforme, refletindo forças sociais díspares em confronto por detrás da produção de diferentes bens e serviços. Se na educação básica as escolas foram esvaziadas dos seus mecanismos de deliberação democrática, ao mesmo tempo que foram introduzidos modelos empresarializados de gestão do parque escolar (com rendas pagas entre diferentes organismos de Estado) e começaram a surgir formas extremas de precarização de professores nas atividades extracurriculares, o ensino continua a ser, genericamente, gratuito e universal.

Já as universidades públicas estão cada vez mais dependentes de receitas próprias obtidas num “mercado de ensino” e nas “parcerias” com o sector privado e, consequentemente, cada vez menos democráticas e transparentes na sua gestão (a participação estudantil e de funcionários na gestão é hoje meramente simbólica).

Neste mimetismo de mercado, o avanço foi maior na Saúde, como atesta a introdução das unidades de saúde empresarialisadas, dotadas de autonomia administrativa e financeira, com contratos por objetivos com o Estado, onde as remunerações dos profissionais são variáveis, criando um mercado interno de concorrência entre unidades que pouco ou nada tem em conta as especificidades e necessidades territoriais e sociais em que estas se localizam. Só através do escrutínio desta perversa entrada da lógica de mercado na Saúde podemos entender como tal processo desembocou na promoção da entrada do capital no controlo e gestão de bens públicos, através de parcerias público-privadas, onde o risco é assumido pelo Estado.

Se a educação e saúde assumem um papel simbólico incontornável, a lista de sectores afectados por estas transformações na gestão pública de mercado é interminável, da água às florestas, passando pela habitação. No entanto, vale a pena destacar, neste momento, a separação em muitas áreas agora socialmente decisivas, entre financiamento público e gestão privada, mesmo que muitas vezes oriunda da chamada economia social. Das creches aos lares, estas instituições onde o lucro teoricamente não existe, mas onde a apropriação privada é um facto, são largamente financiadas pela Segurança Social, conseguindo o seu excedente à custa de trabalhadores com salários baixos e vínculos precários, prestando demasiadas vezes um serviço de duvidosa qualidade.

Os Estados têm sido compelidos, pela lógica da concorrência fiscal, a seguir uma corrida para o fundo, tentando seduzir empresas e os capitalistas, de resto cada vez mais especializados em arbitrar diferentes jurisdições, obtendo benefícios e outros privilégios fiscais.

Finalmente, a redução da autonomia do Estado foi institucional e ideológica, mas também cognitiva. Crescentemente, prescindiu-se da organização do conhecimento e da competência técnica na Administração Pública, substituindo-a pela subcontratação desgarrada de serviços cruciais a empresas de consultoria e auditoria ou a escritórios de advogados. Prescindindo de instrumentos de política económica e de planeamento, o Estado prescindiu também da capacidade de pensar em trajetórias de desenvolvimento.

Todos estes processos convergem, da dependência face à UE à desorganização do pensamento acerca do planeamento, na chamada visão estratégica elaborada por António Costa Silva. Um plano sério não se prepara assim. Um plano sério pressupõe um Estado com instrumentos de política e com quadros tecnicamente capazes e inteiramente devotados a um trabalho que é necessariamente colectivo, em diálogo com as forças sociais relevantes. Ironia dos tempos que correm, ao mesmo tempo que o planeamento económico é entendido como anacrónico, relegado para um tempo passado e ultrapassado, nunca, como hoje, foram tão desenvolvidos os instrumentos tecnológicos e científicos de acesso e tratamento de informação que permitem uma coordenação e articulação da produção, distribuição e consumo. Tecnologias, aliás, usadas e desenvolvidas pelas gigantes multinacionais, da Amazon à Unilever, que vão comandando as nossas vidas.

Tais instrumentos, se combinados com a informação decorrente de uma participação democrática activa na gestão pública e privada, permitiriam construir uma economia mais racional ao serviço de todos. Portugal precisa de um plano sério. Da questão ambiental, que irá requerer um investimento público maciço para a descarbonização da economia, à questão de um perfil produtivo mais autónomo e centrado no trabalho, é hoje claro que só desafiando e pilotando as forças de mercado é possível enfrentar as catástrofes em curso.

Para isso precisamos de superar o Estado a que isto chegou com luta social informada. Já vamos tarde.

Parceria 74/Manifesto