Historiador, investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade de Lisboa e professor associado na Universidade Autónoma de Barcelona. Coautor de Patriotas indignados. Sobre la nueva ultraderecha en la Posguerra Fría [Patriotas Indignados. Sobre a Nova Ultradireita no pós-Guerra Fria], de 2019. 

 

A Direita acaba de ser derrotada em Espanha

Antes das eleições deste domingo, Espanha parecia destinada a ser o próximo país com a extrema-direita no poder. Mas as advertências dos partidos de esquerda sobre a ameaça reacionária funcionaram, mobilizando os eleitores a defenderem as suas conquistas para a classe trabalhadora espanhola.

Ensaio
27 Julho 2023

Os resultados das eleições na noite de domingo passado trouxeram um suspiro de alívio. Os partidos de direita não conseguiram a maioria absoluta e o Vox, partido de extrema-direita de Santiago Abascal, não vai entrar no governo nacional. Não é pouca coisa, considerando a derrota dos partidos de esquerda nas eleições municipais de há apenas oito semanas e o clima criado por sondagens que previam um tsunami de direita.

O resultado em Espanha pode ser visto como uma grande vitória numa Europa hoje engolida por uma sombria onda reacionária. Depois de Roma, Estocolmo e Hensínquia, a conquista de Madrid era para ser a próxima etapa de uma operação promovida pela primeira-ministra italiana de extrema-direita, Giorgia Meloni, e pelo líder do Partido Popular Europeu, Manfred Weber, que procurava criar as condições para uma aliança estável entre as suas alas de direita no Parlamento Europeu. O silêncio destas duas figuras no dia seguinte à votação foi sintomático, assim como os sorrisos satisfeitos de muitos nos corredores do poder em Bruxelas.

O resultado espanhol marca um revés importante, talvez decisivo, para esta operação antes das eleições europeias do próximo ano.

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Sucessos da Esquerda

O verdadeiro vencedor das eleições espanholas é, sem dúvida, Pedro Sánchez. Quase toda a gente tinha assumido que o líder socialista, e primeiro-ministro nos últimos cinco anos, estava politicamente morto. No entanto, a decisão de convocar eleições antecipadas em meados deste verão mostrou-se bem sucedida. Perante uma direita que pensava já ter vencido as eleições, Sánchez conseguiu mobilizar o eleitorado de esquerda preocupado com a perspetiva de a extrema-direita entrar no governo nacional pela primeira vez desde o fim da ditadura de Francisco Franco.

Os acordos assinados nas últimas semanas pelo Partido Popular (PP) e pelo Vox nas regiões autónomas e em mais de 100 municípios mostraram aos espanhóis que a extrema-direita não era apenas um bicho-papão de campanha eleitoral, mas um perigo real. As primeiras medidas tomadas por estes novos governos ultraconservadores marcaram um claro retrocesso em relação às conquistas dos últimos anos: da negação da violência de género e das consequências das alterações climáticas, passando por pôr em causa o direito ao aborto, até ao ataque ao pluralismo linguístico do país e à censura de peças e filmes. Mesmo a obra Orlando, de Virginia Woolf, e o filme Lightyear, da Disney, foram considerados ofensivos à moralidade tradicional.

Os principais temas da campanha eleitoral não foram, de facto, a economia ou a guerra na Ucrânia, mas os acordos de Sánchez com os partidos independentistas catalão e basco e a clássica guerra cultural, tão cara à extrema-direita por todo o mundo.

Ao contrário de todas as expetativas, o Partido Socialista Obrero Español (PSOE) de Sánchez ganhou um milhão de votos e dois deputados em relação às legislativas de 2019, conquistando 31,7% (ou 7,7 milhões de votos) e 122 deputados. O sucesso de Sánchez não teria sido possível sem o apoio da coligação liderada pela ministra do Trabalho, Yolanda Díaz, que conseguiu, depois de meses de tensões e desentendimentos, unir o espaço político representado pelo Unidas Podemos e pelas forças municipais de esquerda radical. Apesar de ter perdido cerca de 600 mil votos e sete eleitos, a Sumar conquistou 12% dos votos e elegeu 31 deputados, consolidando-se como um campo político que reúne mais de três milhões de eleitores.

Não há dúvida de que terminou o ciclo iniciado com o movimento dos Indignados na Grande Recessão. Mas, ao contrário do que acontece noutros países, a esquerda em Espanha não foi vergada pela sua experiência no governo. Bem pelo contrário, a coligação progressista demonstrou a sua capacidade para governar numa conjuntura internacional altamente complexa e marcada pela pandemia, pela crise energética e pela guerra na Ucrânia.

Os dados macroeconómicos são mais do que positivos: o PIB está a crescer mais que a média europeia, a inflação voltou a ficar abaixo de 2% e o desemprego está no nível mais baixo desde 2008. As promessas feitas antes das últimas eleições, em 2019, materializaram-se na ação do governo. Vemos isso mesmo nas políticas sociais (aumento do salário mínimo e das pensões e na luta contra a precariedade) e nas pioneiras leis a nível mundial sobre feminismo, direitos LGBTQIA+, eutanásia, alterações climáticas e “memória democrática” em Espanha.  

Direita radicalizada

Mas isso não tira importância ao facto de haver uma parte de Espanha que rejeita totalmente os esforços da esquerda. O grau de polarização levantou preocupações durante algum tempo. A direita tem procurado capitalizá-la com campanhas que pretendem deslegitimar os seus adversários, campanhas repletas de fake news e de teorias da conspiração com um estilo trumpiano, ao ponto de alegarem que os votos pelo correio serviriam para roubar as eleições.

Os principais temas da campanha eleitoral não foram, de facto, a economia ou a guerra na Ucrânia, mas os acordos de Sánchez com os partidos independentistas catalão e basco e a clássica guerra cultural, tão cara à extrema-direita por todo o mundo. A Esquerda conseguiu, no entanto, enfrentá-la ao defender os seus resultados governativos e o modelo de um país plural que olha para o futuro. O slogan dos líderes do Vox, Santiago Abascal, e do PP, Alberto Núñez Feijóo, foi simplesmente “abolir o Sanchismo”. Isto significava afastar Sánchez, considerado um traidor da nação, e reverter todas as leis aprovadas pelo governo, caraterizadas como “ilegítimas” desde a sua tomada de posse no início de 2020.

Apoiado por vários meios de comunicação social próximos desses partidos, esse enquadramento criou uma forte mobilização junto dos eleitores de direita, também galvanizados pelas previsões das sondagens. Com 33% e 136 deputados, o PP foi de facto o partido mais votado, recuperando apoios que na última década tinham ido para o agora extinto Ciudadanos, partido de centro-direita. O PP ultrapassou os oito milhões de votos, ajudado em parte por uma campanha de “votação pragmática” que premiou os dois principais partidos rivais. Enquanto em 2019 as quotas de votos combinadas do PP e do PSOE eram menos de 50%, desta vez o total foi de 65%.

No entanto, o PP de Feijóo conquistou uma mera vitória de Pirro. Não só ficou muito aquém da maioria absoluta (176 assentos no Congresso dos Deputados) como nem lá chega com a ajuda do Vox. De facto, o partido de extrema-direita de Abascal saiu severamente derrotado destas eleições: manteve uma base de três milhões de eleitores, mas esperavam-se muitos mais. Conquistou 12,4% dos votos, o que significa que perdeu 600 mil, passando dos 52 para os 33 deputados.

Mas mais importante ainda é a sua irrelevância no novo parlamento, no qual os restantes assentos vão para uma mistura de partidos nacionalistas e regionais. Nenhum deles alguma vez poderia chegar a acordo com o Vox, que defende não apenas uma forte recentralização das estruturas governativas espanholas mas também a eliminação da autonomia regional, definida pela Constituição, e a proibição de partidos pró-independência.  

O puzzle catalão

Se a leitura dos resultados de 23 de julho é bastante clara, o mesmo não acontece com a formação do novo governo. O resultado permite afastar qualquer perspetiva de um governo de direita amplo e de os socialistas se absterem para deixar o PP formar um governo minoritário. Nunca existiram em Espanha grandes coligações ou “governos de unidade nacional”. Embora Feijóo ainda insista nessa possibilidade, não passa de uma estratégia para ganhar tempo e impedir que o seu partido o substitua pela presidente de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, estrela em ascensão do trumpismo ibérico. Tal como nos últimos quatro anos, a única opção é um governo minoritário progressista liderado por Sánchez e formado pelo PSOE e Sumar.

Mas há uma diferença talvez crucial: estes dois partidos perderam cinco deputados em relação a 2019 e precisam agora do apoio externo, não apenas dos partidos basco e galego como da esquerda catalã e da abstenção da Junts per Catalunya. Esta última é uma força de direita defensora da independência catalã liderada pelo ex-presidente Carles Puigdgemont, que se refugiou na Bélgica depois de tentar declarar a independência da Catalunha no outono de 2017. O Junts per Catalunya votou sempre contra o governo de Sánchez e afirmou repetidamente que nunca iria ajudar na formação do governo.

O PSOE tornou-se o partido líder na região e o Sumar ficou em segundo lugar, enquanto as formações pró-independência sofreram um grande revés ao perderem quase metade dos votos. Este resultado seria impensável há alguns anos.

Até agora, a sua estratégia tem sido “quanto pior, melhor”, ou seja, prefere um governo de direita em Madrid, pois a sua linha intransigente teria o efeito de construir uma base de apoio social para a causa catalã. Os sete deputados dos Junts são agora decisivos: em resumo, cabe-lhes decidir se Espanha terá um governo progressista por mais quatro anos. A alternativa é a repetição das eleições nos próximos seis meses. E isso não seria assim tão incomum em Espanha: já aconteceu em 2016 e em 2019.

O partido de Puigdemont (membro do Parlamento Europeu, mas, segundo a Justiça espanhola, um fugitivo) provavelmente exigirá um referendo sobre a autodeterminação da Catalunha e a amnistia para todos os independentistas catalães que enfrentaram processos criminais. São condições inaceitáveis para Sánchez, que nos últimos anos conseguiu acalmar as fraturas entre Barcelona e Madrid defendendo o diálogo respeitando-se a lei e a Constituição.

É que, embora duramente atacado pela direita e pelos setores mais intransigentes do movimento independentista catalão, o executivo progressista de Sánchez concedeu de facto indulto a dirigentes condenados em 2019 e alterou o Código Penal, eliminando o anacrónico crime de sedição, usado pelo poder judicial para impor severas penas de prisão aos líderes catalães que tentaram a secessão unilateral.

A coragem de Sánchez e dos seus parceiros de governo foi recompensada pelos eleitores catalães: o PSOE tornou-se o partido líder na região e o Sumar ficou em segundo lugar, enquanto as formações pró-independência sofreram um grande revés ao perderem quase metade dos votos. Este resultado seria impensável há alguns anos.

Margem de manobra

Terminada a campanha eleitoral, está na hora da política. Será um mês de negociações -- e de lóbi. Alguns vão querer descartar qualquer possibilidade de acordo, outros vão tentar resolver as diferenças e dar um novo governo a Espanha. Mas teremos de esperar até 17 de agosto, quando o novo parlamento se reunirá, para ver que espaço de manobra Sánchez terá. Nos próximos dias, os líderes partidários serão recebidos pelo rei Felipe VI, pelo que a votação da formação de governo só acontecerá em setembro.

Disto isto, mesmo que Sánchez consiga formar um novo governo, a próxima legislatura será uma panela de pressão. A aprovação de cada lei exigirá grandes esforços para se reunir uma maioria. E os partidos de direita, que controlam o Senado e a maioria das regiões, vão cercar o executivo usando todos os meios, legais ou não, com o apoio de uma rede de médias que se parecem bastante com a versão espanhola da Fox News e do Breitbart.

Resumindo, não será fácil. E o risco de uma nova eleição está ao virar da esquina. Mas não nos devemos esquecer do significado do voto espanhol: a direita foi derrotada e a batalha por Madrid foi vencida. Agora será preciso inteligência e bom senso de todos os atores à esquerda para se unirem e dar a Espanha mais quatro anos de um governo de esquerda. Se o fizerem, poderão oferecer um modelo de sucesso a toda a Europa, bem como a esperança de que, sim, a direita pode ser derrotada.

Artigo originalmente publicado na Jacobin Magazine.