Mestre em Estudos Internacionais, rapper conhecido como LBC Soldjah. Integrante do coletivo Mbongi 67. Trabalhador do Moinho da Juventude na Cova da Moura. Porta-voz do movimento Vida Justa.

Nascido em Praga, Checoslováquia. Jornalista, esteve na SIC, TVI, ocupou cargos de direcção no , Focus, i, e no grupo luxemburguês Contacto. Participou na direção do Fórum Social Europeu, e das manifestações globais contra a guerra, foi do Que se Lixe a Troika e é da coordenação do Vida Justa. 

Construir o poder popular nos bairros

Há menos de um ano nasceu o movimento Vida Justa, no próximo sábado faz a sua segunda manifestação em Lisboa. Dois elementos da coordenação do movimento escrevem sobre a importância da construção de um sujeito político organizado nos bairros.

Ensaio
17 Outubro 2023

Em Janeiro de 2019, centenas de jovens, a maioria negros, ousaram “ir” à cidade e protestar na Avenida da Liberdade. Fixem o nome da principal artéria de Lisboa. Rapidamente, mostrando que liga pouco a toponímia, surgiu a polícia que disparou balas de borracha e carregou sobre os manifestantes que protestavam contra a forma violenta como a polícia tinha actuado no Bairro da Jamaica.

Bairros como o da Jamaica são normalmente definidos como ZUS: zona urbana sensível. A directiva da PSP de 2006 tem a "composição étnico-social" de um bairro como um dos critérios para avaliar o seu grau de risco. Aí, o policiamento é especial e todo o habitante é criminoso para o Estado até prova em contrário. Até os apoios sociais nestas zonas parecem fazer mais parte de um processo de policiamento e controlo do que elementos para ajudar as pessoas a resolverem os seus problemas. Memorizem este número: nos bairros pobres dos subúrbios são precisas, pelo menos, cinco gerações para tirar as pessoas da pobreza.

Dias antes da manifestação na Avenida da Liberdade, a polícia entrou no Bairro do Jamaica, alegadamente para resolver uma desavença entre duas mulheres, numa intervenção que incluiu espancamento de moradores e detenções.

Toda a manifestação é uma forma de demonstrar força, de protestar contra determinadas situações, e de mostrar a existência de algumas camadas sociais. Em democracia, o direito de manifestação é universal, para todos. Mas parece que, na actual sociedade portuguesa, é para todos menos para as populações trabalhadoras e racializadas dos bairros. Estas são pressionadas para não poderem ir para as ruas da capital protestar. Os dispositivos desta repressão são ilegais mas parecem estar “normalizados”. 

Depois do refluxo revolucionário, no final dos anos 70 e 80 do século passado, as forças da ordem disparavam “para o ar” e podiam matar assalariados rurais e sindicalistas da CGTP. Actualmente, a sua impunidade está limitada: apenas podem actuar sem controlo sobre as populações racializadas dos subúrbios.  

É também por isso que as manifestações da Vida Justa, a de 25 de Fevereiro passado e a que se vai realizar no próximo dia 21 de Outubro, são tão importantes. Ir para a rua, para além das reivindicações que são mostradas, é uma afirmação de existência das populações dos bairros trabalhadores. Pobres e racializadas, são muitas as pessoas (só em Lisboa, mais de 20% da população vive em bairros camarários e sociais) que têm o direito a quebrar os muros da invisibilidade em que as querem confinar e exigir participar na definição do seu próprio futuro. 

A Constituição portuguesa, no seu artigo 54.º, garante que o direito de manifestação não carece de autorização e que todos têm direito a manifestar-se. Todos? Só se não forem negros e pobres. Esses não são cidadãos, e os territórios onde vivem fazem parte das Zonas Urbanas Sensíveis que são, como dissemos, permanentemente policiados com forças da ordem, que actuam como tropa de ocupação, e nas quais os investimentos públicos na educação, cultura, saúde e transportes são completamente mitigados para muito perto do zero.

Meses depois da carga policial na Avenida da Liberdade, os tribunais mostraram que estamos perante uma justiça de classe, muito longe da letra e espírito da Constituição aprovada depois da revolução.

Em democracia, o direito de manifestação é universal, para todos. Mas parece que, na actual sociedade portuguesa, é para todos menos para as populações trabalhadoras e racializadas dos bairros. Estas são pressionadas para não poderem ir para as ruas da capital protestar. Os dispositivos desta repressão são ilegais mas parecem estar “normalizados”. 

Em Março de 2019, uma juíza decidiu que todas as duas centenas de pessoas que, de acordo os testemunhos e a própria PSP, estiveram na manifestação de 21 de Janeiro, convocada por afrodescendentes para protestar contra a intervenção policial no Bairro da Jamaica, cometeram “o crime de participação em motim”. A juíza deu como provado, com base nos testemunhos dos polícias, que os manifestantes eram violentos.

Isto apesar de vários testemunhos em tribunal, citados numa peça do Diário de Notícias, contarem outra história: “Em audiência, [o realizador João] Salaviza descreveu a manifestação como tendo 'muitas mulheres, até uma com um carrinho de bebé', referiu 'a atitude racista da polícia' e insultos dirigidos por esta a manifestantes - por exemplo quando um agente se dirigiu a duas raparigas como 'suas filhas da puta vão para o passeio'", relata o jornal Diário de Notícias, numa peça da jornalista Fernanda Câncio.

Na mesma peça, lê-se: “também o professor universitário Miguel Batista, que assistiu ao final da manifestação, contou a forma imprópria e insultuosa como foi abordado pela PSP: ‘O que é que estás aqui a fazer? Pertences a esta manifestação?’ Terá respondido ‘não, não pertenço. Estava só a observar’, posto o que o agente lhe disse: ‘Então sai já daqui antes que te parta os cornos’. Ambos, Salaviza e Batista, são "brancos", uma informação que no contexto de uma manifestação maioritariamente negra pode ter importância. Será que se o professor fosse negro o agente lhe perguntaria se ‘fazia parte’, ou passava diretamente ao ‘partir os cornos?’.”

Como chegamos a esta situação social em que a pertença a um determinado território e a cor da pele se torna um instrumento de discriminação social, exploração acrescida e falta de direitos de cidadania?

A periferia como quarto de despejo

A partir dos anos 1950, as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto começaram a sofrer uma transformação demográfica devido ao início da migração interna, a importação de mão de obra da colónia de Cabo Verde, para a construção do Metro de Lisboa e da atual Ponte 25 de Abril, a que se soma a aceleração da migração interna e o regresso dos colonos “retornados” de África, estes a partir dos anos 1970, e ainda a chegada de migrantes oriundo dos países africanos que conquistaram a independênciam também a partir dos anos 1970.

O aumento da população significou o incremento da procura de habitação, que não foi satisfeita pelo mercado de habitação pública e privada, e a expansão urbana através da autoconstrução de  bairros informais. Isto resultante de políticas que, na altura, excluíram os imigrantes negros de acesso à habitação pública, somado às práticas racistas de senhorios no bloqueio ao acesso ao mercado de arrendamento, e a vulnerabilidade económica. Fatores esses que concorreram em simultâneo para empurrar as classes mais proletarizadas para as periferias da cidade de Lisboa. 

No fim dos anos 1980, por exemplo, viviam mais de 200 mil pessoas em assentamentos informais em Portugal, principalmente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, grafando de forma nítida e violenta a paisagem urbana com as construções precárias em contraste com os centros e arredores ricos. 

Carolina Maria de Jesus, autora do livro “O Quarto de Despejo”, presenteia-nos com um excerto que retrata a compartimentação onde a paisagem urbana não esconde as realidades económicas: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de sitim. E quando estou na (...) [periferia] tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.  

Em 1993 foi criado Plano Especial de Realojamento (PER), promulgado pelo Decreto-Lei 163/93, de 7 de maio, direcionado às áreas metropolitanas de Lisboa e Porto que sofriam de mais carências habitacionais visando a "erradicação das barracas” e o “realojamento daqueles que nelas residem”. No preâmbulo do texto legislativo está assente “um discurso de corte higienista” que associa as “barracas ou “chagas” à “criminalidade, prostituição e toxicodependência”. 

A racialização do crime e do espaço, a criminalização da pobreza e da imigração foram montados por longos e repetitivos discursos mediáticos de forma a servir campanhas modernas de “pacificação” e perseguição aos pobres, no geral, que desde cedo tiveram resultados catastróficos.

O concelho da Amadora, um dos municípios com mais pessoas a viver nos bairros cujo texto apelida de “chaga” e “barracas”, era em 1990 aquele que precisava de maior financiamento para cumprir o programa. À época, o sociólogo Nardi Sousa afirmava que a Câmara Municipal da Amadora (CMA) tratava os moradores destes bairros e os dirigentes associativos por “coitadinhos” e que, por essa razão, o PER estava “longe de cumprir os objetivos e terminar a tempo certo”. 

Vinte anos mais tarde, o PER, além de não cumprir o total dos seus objetivos, foi transformado pela CMA num instrumento de despejo e demolição violentos, havendo casos em que as pessoas foram trabalhar e quando voltaram já não tinha lar. 

Para a historiadora Sónia Vaz Borges, que trabalhou por muito tempo no Bairro de Santa Filomena, “em meados de 2012, e debaixo de um clima de contestação, a Câmara Municipal da Amadora (CMA) deu início ao processo de demolição do bairro de Santa Filomena, sem que fosse feita uma atualização rigorosa dos dados recolhidos em 1993. O processo realizado sob forte presença policial, quase de sobreaviso, optando por um realojamento disperso, tem separado famílias e importantes redes sociais e de amizade, deixando algumas famílias sem qualquer outra alternativa habitacional”.  

Mais uma vez, Carolina Maria de Jesus, embora longe, mas perto o suficiente para captar a realidade social, afirmava: “(...) quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres, que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos a residir debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que (...) [o bairro] é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos”. 

A demolição do Bairro Santa Filomena é apenas um exemplo de um conjunto de bairros, habitados por trabalhadores, maioritariamente negros, migrantes e pobres, enviados para longe dos centros da cidade. São lugares de difícil acesso e onde os transportes públicos são escassos revelando a continuidade da guetização. Acresce que os próprios edifícios construídos para o realojamento são pintados com cores que marcam o estigma do eufemismo de “bairro social” no tecido urbano. 

Depósitos de mão de obra barata, expulsos pelos ricos das áreas com mais equipamentos sociais e infra-estruturas de comunicação (estradas, autocarros, metros) e mais próximos dos centros de decisão, as classes desfavorecidas dos bairros são relegadas apenas ao direito a servir o centro da cidade, tal como os trabalhadores que construíram hospitais privados que hoje não podem fazer lá consultas devido ao preço. 

Despejados para as periferias da periferia, seja pelas demolições ou/e aumentos das rendas, quebrando as antigas redes de solidariedade e suporte mútuo, as pessoas ficam presas porque não há transporte público permanente. A partir de certa hora os transportes públicos deixam de circular em lugares como o Casal da Mira, Talaíde (Bairros dos Navegadores) e aos fins de semana quase que não circulam. A lógica é a seguinte: “sair do bairro e entrar na cidade apenas para trabalhar”. 

Desde as décadas anteriores que os territórios da área metropolitana de Lisboa denominados de “bairros sociais”, independentemente da localização geográfica, foram sendo construídos por discurso externos, oficiais e não oficiais, de criminalização e estigmatização social e territorial passando a ser vistos como “zonas perigosas” e “no-go areas”. A racialização do crime e do espaço, a criminalização da pobreza e da imigração foram montados por longos e repetitivos discursos mediáticos de forma a servir campanhas modernas de “pacificação” e perseguição aos pobres, no geral, que desde cedo tiveram resultados catastróficos.

Em dezembro de 2007, quando se estava a indexar e catalogar os arquivos da Biblioteca António Ramos Rosa, da Associação Cultural Moinho da Juventude, deparou-se com um envelope A4 selado, quase comido pelo tempo e pela humidade, entre o amontoado de livros, revistas, jornais, artigos, cassetes de vídeo, disquetes. Quando foi aberto estavam lá três cartas.  

Da primeira, escrita em 1985 por um grupo de moradores do bairro da Cova da Moura, dirigida à Rádio Comercial e à RTP, extraiu-se o seguinte excerto: 

“No passado dia 23 de junho de 1985, cerca das oito horas da noite um grupo de jovens, do nosso bairro, resolve meter-se no comboio da Damaia e dar uma volta até Queluz (entre os quais o nosso saudoso Fernando Semedo, de 17 anos de idade, mais conhecido por Fernandinho, que por não ter bilhete é barbaramente abatido por um agente da P.S.P, que até à presente data esconde o crime que cometeu!…). Será isto humano, abater-se a tiro em plena vida pública, e pelas costas, um jovem menor, de 17 anos de idade, como quem abate um animal que depois é deitado à rua? Depois do crime, e do respetivo agente da PSP  ter-se escondido fora do local do crime, para que ninguém visse o rosto do nosso criminoso nos jornais, o corpo do nosso saudoso Fernandinho jazia esbulhado em sangue, em plena rua, das 20 horas até cerca das 24 horas da noite, segundo informações que nos foram dadas por um dos irmãos. Só depois chega ao hospital, às 01:00 da amanhã, já na agonia da morte.”

A segunda carta foi escrita em 1996, por um conjunto de moradores, também da Cova da Moura, cujo excerto passa-se a citar: 

“No dia 11 de julho de 96, perto da Praia de Carcavelos, 22 jovens africanos, no regresso para casa, foram detidos pela polícia sob acusação de terem feito roubos na praia, a qual ainda os pretendia incriminar por pertencerem a um gang de 30 pessoas, (...) foram revistados, detidos por polícias com armas de fogo, tacos de baseball e chicotes. (...) Vimos chamar a atenção a Vª Exª para o facto de a polícia considerar que, na praia, um grupo de jovens brancos é um grupo de amigos e um grupo de africanos é um gang, sujeito a repressões inqualificáveis?”

Só para reforçar, nove anos mais tarde, a presença de jovens negros e empobrecidos da periferia nessa praia levaria a comunicação social a abrir as notícias no horário nobre alegando que cerca de “400 indivíduos invadiram a Praia de Carcavelos e roubaram os banhistas” (Diário de Notícias, 2005). O famoso caso do “arrastão”, que nunca existiu fora do quadro do racismo e do preconceito.

Por fim, da última carta, escrita, a 9 de dezembro de 2001, reproduz-se a seguinte parte: 

“Ex.mo senhor ministro da Administração Interna, vimos solicitar o levantamento do Estado de Sítio (lamentavelmente não declarado) imposto aos moradores do alto da Cova da Moura com o descabido aparato policial que aqui se vem registando. Será que ele pretende justificar a morte de um jovem às mãos da polícia? Reafirmamos que aqui reina a ordem e tranquilidade logo que sejam tomadas medidas para que o polícia que matou o Ângelo seja afastado do seu serviço e que que os moradores do nosso bairro passem a ser tratados pelas forças policiais de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. É que o referido aparato além de causar perturbação no bairro, apenas irá dar uma imagem de incompreensão e desprezo por toda a comunidade laboriosa e ordeira que aqui pretende viver”. 

Este documento alude a morte de Ângelo Semedo “Angoi”, um jovem de 17 anos, morador da Cova da Moura, às mãos da polícia e que, segundo Godelieve Meersschaert, uma das fundadoras da Associação Cultural Moinho da Juventude, “um agente da polícia disse na altura que era mais um macaquinho que tinha morrido”, o que provocou indignação e protestos dos moradores. 

Várias ilações podem ser retiradas desses três casos. A primeira, é a impunidade que recebem os casos de violência policial contra grupos racializadas que resultaram em mortes, pois em todos eles desconhecemos que tenha havido alguma condenação a pena efetiva. A montagem e prática de perfil racial e criminal de jovens negros e pobres pela polícia, mais o racismo vulgar do quotidiano, e ainda a disciplina do trabalho de exploração, o salário de miséria, as injustiças  contribuíram para que a própria população dos bairros passasse a ter apenas uma relação instrumental com a cidade. A cidade é apenas para trabalhar, comprar coisas e tratar de questões burocráticas, ou seja, construíram um Portugal “moderno” mas não podem usufruir do trabalho realizado.  

Marcado com o carimbo da racialização, visto como símbolo de temor e habitando a geografia do terror e medo, pois foi treinada sob violência polidimensional, de que “está cá, mas não é de cá”, a "manter-se em seu lugar", a "não ultrapassar os limites”, aprendendo de forma prética que a cidade é um espaço que o/a deixa vulnerável, gerando assim a guetização, o policiamento (civil e oficial) da juventude racializada e pobre dos bairros, teve sempre como objetivo acantoná-la, confiná-la nas grades da miséria das periferias para que possam ser explorados do ponto de vista social, económico e político. 

O sociólogo Nuno Santos, conhecido pelo seu nome artístico de Xulaji, no som Nemesis, fez o seguinte retrato do “gueto”: 

“(...) 
Muitos serão envenenados pela inveja, pela cobiça,

Dizimados pela injustiça, acomodados pela preguiça 

Torturados pelo racismo e pela pobreza maciça 

Muitos morrerão, muitos outros nascerão 

Muitos sairão, muitos mais cá ficarão 

Presas as minhas correntes nesta prisão,

Sem muros de betão, nem vedação,

Eu sou o gueto, eu sou a segregação

Eu sou gueto onde muita gente cá dentro não sai 

Onde muita gente que de fora lá dentro não vai 

Isolado, mal alimentado, 

Envenenado, deseducado, 

Explorado onde do teu povo tudo cai 

Não dou-te pão, nem educação, 

Dou-te veneno, fome e um canhão 

E depois a tua ignorância lá dentro te trai

Eu sou gueto onde muita gente cá dentro não sai 

Onde muita gente que de fora lá dentro não vai 

Só bófia vai

Só bofia vai.”

Muitas coisas poderiam ser ditas a partir dos versos do Xulaji, mas a parte final de  “eu sou gueto onde muita gente cá dentro não sai/Onde muita gente que de fora lá dentro não vai/Só bófia vai/Só bofia vai” põe a nu a ausência da presença do Estado (os serviços públicos) nestas comunidades, a ausência de espaços verdes, espaços culturais e de lazer, equipamentos sociais, parques infantis, a higiene urbana é parca e/ou quase inexistente. Sem esquecer que em casos de emergência, por motivos de saúde, as ambulância demoram a chegar (quando chegam), porque o primeiro a chegar é um grande contingente da polícia, armada até aos dentes. 

Em suma, nestes territórios, a polícia é a única face do Estado ali presente. E a polícia não esta lá para proteger e servir. Vamos ser diretos, apoiando-nos nas palavras do Partido dos Panteras Negras: “o departamento de polícia como força intimidadora utilizada pelos imperialistas para reprimir o povo colonizado, aterrorizá-lo e mantê-lo sob controlo. Esse é um processo constante de brutalização, porque as pessoas estão a movimentar-se constantemente para quebrar as suas correntes. (...) os departamentos de polícia ocupam as nossas comunidades pretas do mesmo modo e com o mesmo propósito que uma tropa estrangeira ocupa o território conquistado”.  

Em Agosto de 2012, por exemplo, ficou evidente no bairro de Casal da Mira que lá “só bófia vai”, quando o bairro foi cercado por centenas de agentes armados, acompanhados de veículos blindados, deixando os moradores em pânico. Essas operações, amplamente veiculadas nos meios de comunicação de massas, servem de mensagens às classes mais altas dizendo-lhes que a polícia está a cumprir a função, ordenada por elas, de reprimir o que se costumou chamar de “cidades negras”, “ aldeias africanas”, “ilhas negras”.  

As escassas e minguadas políticas públicas que cá chegam são transformadas em instrumentos de vigilância e domesticação da população e apresentadas como se fossem “favores”, “ caridade”. Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno dos bairros empobrecidos? Por que razão só se fala que os bairros vivem de “subsídios”, não pagam água, electricidade, renda, impostos e nunca da contribuição a todos os níveis, sobretudo económica, da maioria que habita as periferias?  

A segurança social seria funcional sem essa massa de trabalhadores periféricos? Quantos milhões o Serviço de Emigração e Fronteiras gera todos anos na concepção de vistos, autorizações de residência?  E se todos os trabalhadores, residentes da periferia, parassem de trabalhar por uma semana, Lisboa, certamente, não funcionaria.  

Cremos que os vários confinamentos da presente pandemia na capital revelaram o que nós já sabíamos. Sob os ombros de quem cai o peso do funcionamento da cidade de Lisboa. É sob os trabalhadores das fábricas e da construção civil, profissionais de cuidados, logísticas, empregadas domésticas, estafetas de entrega de produtos de  alimentação uberizados, trabalhadores de limpeza e higiene urbanas, enfermeiros e auxiliares, uma maioria que não tem representatividade política no parlamento. 

Em suma, qual é o estatuto que os bairros empobrecidos gozam na sociedade portuguesa? O estatuto de colónia que fornece mão-de-obra barata, em que a taxa de desemprego crónica deve ser duas ou três vezes maior do que a nível nacional, em que a falta de emprego e expectativas conduz a nossa juventude a soluções desesperadas, entre as quais, inclusive, alistar-se nos comandos para servir os interesses imperialistas da Europa, combatendo, por exemplo, na República Centro Africana. 

Conseguir lugar no exército tornou-se a nova forma de escapar ao desemprego. Não vale a pena esconder, territórios cujo estatuto de “inimigo interno”, onde vigora o estado de excepção, suspensão de direitos, criminalização da pobreza estão erigidos em princípios legislativos, as chamadas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), de que já falamos. 

É de assinalar que no Relatório de Administração e Segurança Interna (RASI), de 2011, as ZUS são classificadas “como espaços que mantêm a sua forte relevância no aparelho securitário, não apenas pela concentração de grupos e de atividades criminosas, mas também por se assumirem como territórios eficazes para a mobilização de indivíduos com predisposição significativa para ações de subversão contra a autoridade do Estado, onde são executadas ações regulares de policiamento reforçado, com recurso a meios especiais de polícia, e operações especiais”, como estipula o artigo 10º do Capítulo II da Lei nº 38/2009, de 20-07-2009 , reforçada pela nova politica criminal, a Lei n.º 51/2023, de 28 de agosto.

Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno dos bairros empobrecidos? Por que razão só se fala que os bairros vivem de “subsídios”, não pagam água, electricidade, renda, impostos e nunca da contribuição a todos os níveis, sobretudo económica, da maioria que habita as periferias? A segurança social seria funcional sem essa massa de trabalhadores periféricos?

A luta de classes está gravada em pedra

Há muito que as cidades gravaram pedra e no urbanismo as desigualdades sociais, mas a situação hoje agudizou-se ainda mais.

O processo de subida estratosférica dos preços da habitação das cidades é, simultaneamente, o resultado da financeirização do imobiliário, que se torna valor de troca e de lucro especulativo, deixando de ser valor de uso habitacional; ao mesmo tempo que é um processo de expulsão das classes trabalhadoras das cidades, acompanhada dos despejos sistemáticos dos bairros de pobres que até este momento têm localizações e vistas que o mercado acha boas apenas para os mais afortunados.

É como uma pedra que entra num lago. Vai expandindo-se na superfície das águas, as ondas de choque em círculos. A gentrificação da capital vai expulsando pessoas para os subúrbios, com impacto nos bairros populares. Hoje um T1 já é arrendado por quase 1000 euros na Damaia, e já há reformados franceses que compram casas na Arrentela. Não tarda muito para que os trabalhadores que aí vivem sejam também corridos.   

Os muito ricos ocupam as áreas mais belas, impedindo o direito à cidade de outras classes. O pecado maior dos moradores pobres do Bairro das Marianas era terem vista de mar. Foram expulsos do lugar onde tinham vivido e espalhados por vários bairros longe da vista marítima, dos transportes e equipamentos sociais.

Os bairros para que foram remetidos, depósitos de gente trabalhadora sem direitos, são expoentes da arquitectura policial: isolados e com uma só saída e entrada para facilitar as operações policiais.

Os condomínios privados crescem ao mesmo tempo que os pobres são largados em autênticas selvas urbanas sem direitos, onde a polícia tem permissão para atirar, como o fizeram no caso do adolescente Elson Sanches, “Kuko”, 14 anos, morto com um tiro disparado a 20 centímetros da cabeça, no Bairro de Santa Filomena, a 4 de Janeiro de 2009. O polícia que o matou foi absolvido em tribunal.

Como reza uma canção de Caetano Veloso:

“Quando você for convidado
Pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
E são quase todos pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados”.  

A exploração e a agressão aos mais pobres são normalizadas através de uma operação ideológica que torna inferiores as vítimas da violência do Estado e da exploração. A invenção da raça insere-se neste processo. Como escrevia Sílvio Almeida, actual ministro do Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro e autor do livro “Racismo Estrutural”, “não é o racismo que é produto das raças, mas as raças que são produtos do racismo”.

 E explica, “um negro é um negro por causa do racismo e não porque a sua negritude não seja valorizada ou reconhecida; da mesma forma que um branco também é um branco, por causa do racismo e não devido à sua 'brancura'. E não há racismo sem estruturas políticas e económicas que sustentem um processo contínuo de transformação de indivíduos em 'negros' e 'brancos'.”

Ao longo da história contemporânea vários grupos sociais e nacionais passaram de “não brancos”, para “brancos” ao sabor das necessidades de exploração das classes dominantes. É esse exemplo que é ilustrado pela situação de trabalhadores irlandeses na colónia britânica que veio dar origem aos EUA. Os irlandeses eram considerados sub-humanos que podiam ser mortos, como dizia uma lei da Virgínia em 1723: “não é mais pecado matar um irlandês que um cão ou uma besta qualquer”.  

Este processo de diferenciação que faz dos mais pobres, racializados e imigrantes pessoas sem direitos é base de um processo de exploração acrescido que garante que quem vive nas periferias pode ser pago abaixo do valor médio dos outros trabalhadores.

As pessoas dos bairros e imigrantes vivem situações de extrema precariedade laboral, construídas e mantidas por dificuldades de legalização dos imigrantes e pela contínua repressão e ostracização das pessoas que vivem nos bairros, que as obriga, muitas vezes, a aceitar trabalhos abaixo das normas salariais mínimas, fazendo delas um exército industrial de reserva que, ao mesmo tempo, puxa o conjunto dos salários de todos para baixo. 

O racismo, antes de ser um pensamento imbecil, é um excelente negócio para os poucos que dominam a sociedade. A repressão e a ilegalização são ferramentas de luta dos mais ricos contra os mais pobres. 

O capitalismo faz do racismo um instrumento de exploração económica, de xenofobia e da imigração clandestina um garante de baixos salários para todos e assegura a falta de direitos políticos e sociais de parte da classe operária. 

O Estado, segundo Lénine, é o comando do aparelho de exploração que garante um determinado domínio de classes. Mas em democracia, e em certas condições políticas, económicas e sociais, o Estado ganha uma certa autonomia relativa. Em Portugal, o quadro constitucional é ainda fruto dos tempos da revolução que privilegiava a ideia de transformação social igualitária. 

A revolução dos cravos vermelhos que faz 50 anos abriu as portas à esperança e à possibilidade dos trabalhadores e mais pobres concretizarem os seus sonhos de ter uma vida justa. Na altura, falando com habitantes de determinados bairros de barracas, as pessoas tinham a certeza que iam ter casas “normais”. Anos depois, a revista “Plural” questionou as pessoas dos mesmos bairros, e estas já não acreditavam nessa possibilidade, apenas queriam um pardieiro no qual pudessem viver. 

Semanas antes da aprovação do Orçamento do Estado de 2024, é preciso reafirmar que há territórios populares que não vêem rasto aos dinheiros do Estado. Estes territórios populares há muito que vivem num território vazio de investimento público.

Esses territórios têm a mesma relação que o Estado com os imigrantes: são contribuintes líquidos para a Segurança Social e para os cofres do Estado, com o seu muito trabalho, e pouco recebem em investimentos e em direitos de cidadania desse mesmo Estado.

Os bairros mais pobres são estruturalmente conduzidos para uma não participação política. Os trabalhadores não votam porque são corridos da representatividade. Talvez por isso, nos bairros mais ricos, como Estrela e Avenidas Novas, haja 67,53% e 70,48% de votação nas eleições legislativas de 2022, respectivamente; e uma participação muito mais reduzida em bairros como Marvila e Carnide, em que a participação pouco ultrapassa os 50% dos eleitores.

As contribuições dos imigrantes para a segurança social batem novo recorde no ano de 2022. Os 630 mil trabalhadores imigrantes contribuíram com 1 500 milhões de euros nesse ano. É um aumento de 19% face a 2021.

Os resultados disso são mais que conhecidos. Se observarmos um conjunto de escolas, do mesmo tipo que as de Lisboa, notamos que os resultados em relação ao abandono escolar e reprovações são proporcionais à falta de investimento público das populações mais desfavorecidas, de modo a conseguir contrariar o défice cultural e de acompanhamento familiar a que estão sujeitas, como explica o investigador e activista António Brito Guterres.

“No centro urbano [de Lisboa], no Liceu Filipa de Lencastre, há 1,2% de abandono e retenção, no 2º ciclo, 2 quilómetros ao lado, nas Olaias, é de 36%, e na Alta de Lisboa é de 50%. Aí percebes que o próprio sistema económico neoliberal se baseia nessa desigualdade”, afirmou. 

Os bairros mais pobres são estruturalmente conduzidos para uma não participação política. Os trabalhadores não votam porque são corridos da representatividade. Exemplo disso são os poucos parlamentares pertencentes à classe trabalhadora, e a maioria da população fica com a ideia que independentemente de em quem votam, a política do Estado será sempre neoliberal e contra ela. 

Talvez por isso, nos bairros mais ricos, como Estrela e Avenidas Novas, haja 67,53% e 70,48% de votação nas eleições legislativas de 2022, respectivamente; e uma participação muito mais reduzida, como Marvila e Carnide, em que a participação pouco ultrapassa os 50% dos eleitores.

A desertificação do investimento público nos bairros vai acompanhado de uma retórica neoliberal em que as questões de desigualdades sociais não existem e tudo se resume a questões individuais. Mais que políticas públicas, as populações dos subúrbios precisariam de coaching e auto-ajuda; mais que investimentos do Estado e direitos colectivos, como a habitação, saúde, educação e trabalho, as coisas resolvem-se com pequenos investimentos em projectos de Organizações Governamentais Locais. 

Esses planos e projectos têm, como já referimos, a vantagem acrescida de deixar na dependência das autarquias e dos partidos do governo muitos dos quadros sociais dos bairros.

Criar uma comunidade de luta

Em muitos bairros as condições de vida são más, as pessoas sabem que estão juntas nesta situação. Há uma consciência aguda dos constrangimentos externos que invisibilizam e encerram as populações nesses territórios, como se tivessem cercadas por um muro.

Há uma necessidade política para combater a injustiça e a desigualdade de transformar esta comunidade solidária, numa comunidade de luta. 

Neste quadro, as manifestações da Vida Justa surgem como um instrumento para mostrar que há uma força política e colectiva que pode transformar as coisas. 

A Vida Justa mais do que um movimento que nasce de conversas nos bairros, como a de 2 Outubro de 2022 na Cova da Moura, é um movimento de pessoas dos bairros e militantes que se propõe ver os problemas e desigualdades a partir da situação existente nos territórios mais pobres das classes trabalhadoras, onde vivem também populações imigrantes e racializadas, privadas dos direitos sociais e políticos mais elementares. 

A construção de um organização política nos bairros que dê mais voz e representação às populações trabalhadoras dos bairros faz-se por uma acção local contínua, em articulação com as comissões de moradores e outros grupos, para conseguir mudanças concretas nos bairros, mas também pela organização de um sujeito de acção mais global que consiga chegar com estas preocupações e lutas ao conjunto da sociedade. 

A organização política dos bairros é o instrumento fundamental para que as pessoas desses territórios tenham a força política que lhes é devida. 

O processo de construção faz-se militantemente como “camaradas”. O que significa que todos e todas são iguais no movimento. Ele projecta no seu presente a relação de igualdade que se pretende construir no presente e que defina o nosso futuro comum. 

Pretendemos uma maior representação de quem trabalha e está nos bairros, mas isso não significa que aceitemos que todo o conhecimento vem da situação social em que as pessoas nascem. O conhecimento para uma força militante vem da luta e da participação, só ela permite quebrar as barreiras da ideologia hegemónica e dominante que toldam a visão de todo o mundo.

Se o lugar da fala, por si, bastasse, há muito que os pobres tinham vencidoeleições, e tomado o poder. Até porque há muito mais pobres que ricos nas nossas sociedades. 

O caminho da Vida Justa faz-se na construção participada de um programa popular que permita combater as desigualdades sociais e melhorar a vida das pessoas nos territórios populares.

A construção de um organização política nos bairros que dê mais voz e representação às populações trabalhadoras dos bairros faz-se por uma acção local contínua, em articulação com as comissões de moradores e outros grupos, para conseguir mudanças concretas nos bairros.

Os pontos do caminho

A criminalização visa desumanizar os empobrecidos e ao mesmo tempo mascarar as operações violentas do estado e do capital, ignorando desta forma os fatores estruturais como o aumento do preço das habitações, das rendas, o desinvestimento do Estado nos serviços públicos essenciais, o desemprego, a precarização laboral, as condições catastróficas de saúde e ambientais, o aumento exorbitante de preços de alimentação e do gás, e a violação quotidiana dos direitos humanos.  

Para fundamentar o contraste social existente entre a periferia e o centro, a sociedade portuguesa vai buscar o argumento no racismo e na meritocracia: a única razão pela qual os empobrecidos dos bairros continuam na miséria, a viver em bairros insalubres, é o facto de serem “inferiores”, em vez de pôr a tónica de que o contraste social é a expressão viva e mortífera das contradições de natureza económica e política deste país.

E o racismo e a xenofobia ao serviço dos interesses económicos da minoria dominante operam no sentido de ocultar o fenómeno da desigualdade, promovendo por um lado o chauvinismo entre os oprimidos e por outro a letargia propalada por um bando de desorientadores que se intitulam de “gurus” de auto-ajuda, de coaching

Porém, se há quem vem acumulando milhões, sobretudo os bancos e os supermercados, não devemos esquecer que se deve à existência de um trabalhador, em particular deste setor mais proletarizado da classe trabalhadora, forçado pela presente estrutura socioeconómica e política a renunciar a um salário digno,  uma casa digna, um edifício público, uma rede de transporte, um hospital público bem equipado e com profissionais com salários dignos nestes territórios.

O neoliberalismo e a sua ideologia de “salva-se quem puder” alojou-se e encrustou-se no nosso tecido social, dando origem a uma mentalidade de rapinagem e competição. É necessário e urgente quebrar essa cadeia alimentar e trabalhar no sentido de compreender que a nossa força reside na nossa unidade na acção e participação.

Mas a única forma de superar tudo isto é a transformação dos habitantes dos nossos bairros em sujeitos atuantes na História. Ao longo da História temos vários exemplos que comprovam que a única e a mais poderosa arma dos oprimidos para livrarem-se dos seus opressores é a organização, participação e ação. Mas a organização não é tudo, se houver ausência de ideologia, a urgência em separar amigos dos inimigos.

A malta dos bairros não vota, como dizia o outro “o que é mesmo triste é que não votamos por que não temos esperança”. E às vezes surgem discursos, refinados, que, aparentemente, antissistémicos, mobilizando a nossa indignação e seduzindo alguma da nossa malta. Mas se prestarmos atenção que, quase sempre, coloca-nos em antagonismo com pessoas que estão na mesma condição de subalternização (grupos racializados, migrantes, pobres) mediante distribuição de culpa. Eis o momento que em dizemos o seguinte: é o sistema a dizer que é antissistema.   

Ainda, é importante ter em conta que podemos aprender de todos os lados, mas ao mesmo tempo recordar que a importação de modelos fechados e predefinidos apenas resulta em erros e por essa razão o essencial é agir-pensar e pensar-agir a partir da nossa própria realidade, usando os nossos próprios termos. 

Amílcar Cabral, no texto a "Arma da Teoria", diz-nos que  “quando o povo africano afirma, na sua linguagem chã, que por mais quente que seja a água da fonte, ela não coze o teu arroz", enuncia, com chocante simplicidade, um princípio fundamental não só da física como da ciência política. Sabemos, com efeito, que a orientação (o desenvolvimento) de um fenómeno em movimento, seja qual for o seu condicionamento exterior, depende principalmente das suas características internas. Sabemos também que, no plano político, por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderá transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto e nos nossos esforços e sacrifícios próprios”. 

O neoliberalismo e a sua ideologia de “salva-se quem puder” alojou-se e encrustou-se no nosso tecido social, dando origem a uma mentalidade de rapinagem e competição. É necessário e urgente quebrar essa cadeia alimentar e trabalhar no sentido de compreender que a nossa força reside na nossa unidade na acção e participação. A transformação da nossa realidade não se dará por meios de apelos morais, apelo à consciência dos nossos opressores, mas mediante a luta política organizada e consequente. Queremos o poder para determinar as políticas que afetam diretamente o destino das nossas comunidades. 

Posto isto, com base na experiência acumulada, defendemos e exigimos o seguinte: 

  1. Extinção completa das Zonas Urbanas Sensíveis e todas as políticas de criminalização e repressão da juventude que estão atreladas às ZUS.
     
  2. Fim imediato da brutalidade policial e redireccionamento dos fundos para programas sociais de educação, emprego e infraestruturas locais. 
     
  3. Queremos direito ao lugar – ou seja, que os bairros autoconstruídos sejam qualificados no lugar onde estão localizados com a participação dos moradores. 
     
  4. Queremos habitação digna para todos e todas.
     
  5. Emprego e salários dignos para a comunidade.
     
  6. Libertação imediata de todos os membros da nossa comunidade que estão retidos nas prisões deste país, condenados por crimes económicos. Acreditamos que nenhum deles recebeu um julgamento justo. 
     
  7. Uma educação que leve em consideração a contribuição dos moradores da periferia no desenvolvimento deste país. 
     
  8. Aumento e criação de novas redes de transportes públicos e gratuitos para todos.