Doutoranda em Economia na Universidade de Massachusetts, Amherst, nos Estados Unidos, Trabalhou em supervisão bancária no Banco de Portugal.

Ai aqui-d’el-rei: assim que a crise chega, o Estado volta a salvar os bancos

Quase duas décadas desde a última grande crise financeira, o sistema bancário permanece instável, demasiado arriscado para a própria sobrevivência. Os Estados norte-americano e suíço salvaram cinco bancos em duas semanas. Um deles era um gigante europeu: o Credit Suisse. A ganância e o apetite pelo risco de uns poucos são os custos da maioria.

Ensaio
6 Abril 2023

Assistimos no último mês ao colapso de várias instituições bancárias, entre as quais o gigante europeu Credit Suisse. Os sinais de fragilidade surgiram nos Estados Unidos com o encerramento do Silvergate Bank e do Sillicon Valley Bank (SVB). No seguimento de uma corrida aos depósitos, ambos deixaram de ter liquidez suficiente para cobrir as responsabilidades e entraram em insolvência. 

Depois de considerarem que o risco de contágio era elevado, os reguladores norte-americanos encerraram ainda um outro banco, o Signature Bank. Já o First Republic Bank só sobreviveu depois de uma injeção de capital num montante de 30 mil milhões de dólares por parte de onze bancos privados, entre os quais o JP Morgan Chase, Citigroup e Bank of America, os três maiores nos Estados Unidos. 

O medo dos investidores sentiu-se por todo o sistema bancário, com o preço das respetivas ações dos bancos a diminuírem não só nos Estados Unidos mas também na Europa. Este clima de incerteza potenciou a queda do Credit Suisse, cuja viabilidade já era questionada desde pelo menos 2022, altura em que os investidores retiraram cerca de 133 mil milhões de dólares em financiamento. Quase duas décadas desde a última grande crise financeira, o sistema bancário permanece instável, demasiado arriscado para a própria sobrevivência.

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O Silvergate foi o primeiro a cair, anunciando que iria voluntariamente liquidar os seus ativos e fechar operações. O banco, um dos pilares da indústria das criptomoedas, já havia relatado sinais de crise em janeiro, após o levantamento de cerca de oito mil milhões de dólares em depósitos. Com a contínua desvalorização do mercado de criptomoedas (só a Bitcoin perdeu 60% do seu valor em 2022) e a queda de grandes clientes como a FTX ou a Genesis, o banco precisou de liquidar ativos para dar resposta à perda de depósitos que então se fazia sentir. 

Num cenário de aumento de taxas de juro pela Reserva Federal norte-americana e pelo Banco Central Europeu, a venda de obrigações detidas resultou numa perda de 718 milhões de dólares, o que deixou o banco na incerteza de cumprimento das suas obrigações futuras, tanto a nível de capitalização como de cumprimento com os requisitos regulatórios (nomeadamente o de entregar atempadamente os resultados financeiros devidamente auditados). 

No seguimento desta divulgação, mais empresas ligadas à indústria, incluindo a multimilionária Coinbase, cortaram ligações com a instituição bancária, determinando assim o seu destino. Foi a primeira instância em que o risco de se investir em criptomoedas – um produto especulativo, altamente volátil e sem nenhum valor intrínseco – se materializou no setor financeiro “real”.

Poucos dias depois da queda do Silvergate, os reguladores fecharam o Silicon Valley Bank. Entre os principais clientes encontramos muitos investidores de capital de risco e start-ups na área de tecnologia, cujo investimento, a par com o que aconteceu com o mercado de criptomoedas, aumentou significativamente durante o período da pandemia de covid-19. A instituição era vista como o “banco da economia de inovação” e preferido pelas inúmeras start-ups de Silicon Valley e respetivos investidores. 

O medo dos investidores sentiu-se por todo o sistema bancário, com o preço das ações dos bancos a diminuírem não só nos Estados Unidos mas também na Europa. Este clima de incerteza potenciou a queda do Credit Suisse.

Num período de taxas de juro historicamente baixas e com injeções de dinheiro na economia por parte da Reserva Federal, muitos investidores viram também nestes projetos investimentos promissores, aumentando o financiamento de start-ups tecnológicas e, portanto, a quantidade de depósitos junto da instituição. Entre 2019 e 2022, o ativo do banco triplicou: passou de cerca de 70 mil milhões para mais de 210 mil milhões de dólares. 

Com o abrandamento da economia e o aumento das taxas de juro, o financiamento por parte de investidores de capital de risco diminuiu e muitas destas start-ups precisaram de aceder aos seus depósitos para pagarem as suas  despesas. O banco onde depositaram os respectivos depósitos necessitava então de liquidez para responder a todos os pedidos, liquidez essa que não estava disponível. 

É que o SVB investira, numa lógica conservadora, grande parte dos seus depósitos em obrigações do tesouro, um dos instrumentos financeiros mais estáveis. Fê-lo numa altura em que o financiamento abundava e as taxas de juro se mantinham perto do zero. Mas o aumento das taxas de juro ao longo do último ano reduziu o valor das obrigações de tesouro adquiridas pelo SVB, que, por falta de mais liquidez para responder ao levantamento de depósitos, se viu obrigado a vender ativos num montante de aproximadamente 21 mil milhões de dólares. 

No início de Março, o SVB relatava uma perda de valor de cerca de dois mil milhões de dólares no decorrer dessa venda e anunciava planos para angariar um pouco mais desse montante através da venda de ações próprias. A agência de rating Moody’s diminuiu a classificação da SVB Financial, grupo ao qual pertence o SVB, e o valor das respetivas ações caiu 60%.

As últimas notícias causaram o pânico entre os clientes do SVB, um pequeno mas abastado círculo de investidores de capital de risco: no final do dia, houve tentativas para se levantar um total de 42 mil milhões de dólares. O SVB não conseguia cobrir as suas responsabilidades e entrou em insolvência.

Nesta história o SVB não investiu em produtos financeiramente arriscados ou complexos como vimos no caso da crise financeira de 2008, nem mantinha o seu negócio à volta de um ativo ainda menos compreendido como as criptomoedas. Mas apostou no crescimento exponencial dos seus depósitos junto de um setor específico e arriscado e investiu tudo em ativos de longa duração, não cobrindo o risco de desvalorização num cenário de aumento de taxas de juro. 

Quando este cenário se materializou, o valor dos seus ativos diminuiu como consequência. É que a maioria das obrigações pagam uma taxa de juro fixa e torna-se mais atrativa quando as taxas diminuem ou se mantêm baixas – o que faz aumentar o preço da obrigação. Quando as taxas de juro aumentam, o custo de pedir emprestado, de investir em obrigações que rendam um valor fixo, mas inferior ao preço atual, torna-se menos apelativo, fazendo diminuir o preço das obrigações. 

Ao mesmo tempo, o SVB perdia igualmente a sua base de financiamento, já que o mesmo aumento das taxas de juro fez com que grande parte dos seus clientes enfrentasse dificuldades em angariar tanto dinheiro como anteriormente. Investimentos antes alvo de especulação – start-ups do setor tecnológico, ações, ou até criptomoedas e NFTs – deixaram de oferecer tanto retorno em comparação com o risco que apresentavam e o respectivo financiamento entrou em declínio.

De igual forma estava em risco o Signature Bank, outro banco ligado aos investidores de criptomoedas e que no final de 2022 detinha um ativo de cerca de 110 mil milhões de dólares. Não era exclusivamente um cripto banco, já que detinha investimentos no setor imobiliário e serviços de advocacia, mas foi durante a pandemia que aumentou a sua presença nesta nova forma de especulação financeira: em janeiro de 2021 detinha dez mil milhões em depósitos de criptomoedas. Em setembro de 2022, quase um quarto dos seus depósitos vinham deste setor.

Alegadas incertezas sobre a exposição do Signature Bank a estas criptomoedas induziram o medo nos clientes, em particular do setor imobiliário, que prontamente procederam ao levantamento dos seus depósitos. A falta de informações adequadas sobre este levantamento, a par das incertezas de risco de contágio após a queda do SVB, fizeram com que os reguladores fechassem também o Signature Bank, assegurando todos os depositantes da instituição. Tal como no SVB, grande parte dos depositantes não estavam maioritariamente cobertos pelo seguro federal – cobre até 250 mil dólares em caso de fecho da instituição – e, portanto, representavam um maior risco de “fuga”. Podiam retirar o dinheiro do banco na esperança de o depositar numa outra instituição mais segura.

Em ambos os casos de encerramento das instituições bancárias por parte das autoridades norte-americanas, todos os depósitos foram garantidos; mesmo aqueles acima do limite previsto. O resgate agradou aos investidores, que então pediam a intervenção rápida do Estado, de forma a acederem aos respetivos depósitos. Os mesmos investidores que durante décadas exigiram menor intervenção governamental na banca a favor da desregulamentação financeira, agora pressionavam os reguladores para que os resgatassem. E assim foi. A Reserva Federal norte-americana anunciou um programa extraordinário de financiamento: cerca de 150 mil milhões de dólares para pagar aos depositantes dos dois bancos.

A prontidão desta resposta indica-nos que os reguladores consideraram que as instituições eram demasiado grandes para falhar, ou que apresentavam riscos sistémicos, propagando-se para o restante sistema financeiro. Seria então de esperar que existissem controlos para este tipo de instituição ou para riscos considerados sistémicos, especialmente depois da grande crise financeira de 2008. 

Os legisladores norte-americanos tentaram que esses controlos existissem, implementando em 2010 o ato Dodd-Frank, uma reforma bancária desenhada no rescaldo da crise. Bancos com ativos acima de 50 mil milhões de dólares seriam considerados sistémicos e, portanto, teriam de obedecer a critérios mais rigorosos, incluindo requerimentos de liquidez e capital. Estariam, também, sujeitos a regulação mais apertada por parte da Reserva Federal. 

O resgate dos bancos agradou aos investidores que pediam a intervenção rápida do Estado. Os mesmos investidores que durante décadas exigiram menor intervenção governamental na banca a favor da desregulamentação financeira.

Mas, em 2018, uma emenda foi aprovada no congresso norte-americano que permitiu aumentar o limite de 50 para 250 mil milhões. Eliminou-se ainda a obrigatoriedade de estes bancos de grandes dimensões estarem sujeitos a testes e requerimentos específicos para os bancos de risco sistémico. Os bancos com ativos de menos de 100 mil milhões de dólares passaram a estar isentos da regulação específica e aqueles até 250 mil milhões teriam um período de transição de 18 meses, após os quais também deixariam de estar sujeitos à legislação. 

Tanto o SVB como o Signature Bank estariam enquadrados no Dodd-Frank original, mas não pela nova emenda à lei. Esta alteração – apoiada e aplaudida por banqueiros e respetivos lobistas – é um exemplo de como a desregulação bancária não serve o interesse público. Se a verdadeira regulação vigorasse, talvez os reguladores pudessem ter evitado a queda de duas instituições bancárias. Restava saber se teriam conseguido adotar medidas suficientemente fortes para isso, ou se continuariam a seguir a lógica de regulação leve que muitas vezes falhou na missão de identificar más práticas bancárias e excessos de risco.

Terá sido esse o caso do Credit Suisse? Era um dos bancos mais importantes do mundo e estava, supostamente, sob o olhar dos reguladores, já que nos últimos anos se envolveu em vários escândalos de gestão e más práticas de risco que resultaram em avultadas coimas. Para um banco da sua dimensão, não seriam coimas regulatórias a travar ou a alterar o modelo de gestão, e muito menos a ditar o seu futuro. 

Mas a perda de confiança dos investidores sim. Desde 2018 que as ações desvalorizaram cerca de 90%, também em consequência da gestão do banco. Os seus clientes retiraram cerca de 123 mil milhões de francos suíços (ou 133 mil milhões de dólares) no ano de 2022 e o banco registou uma perda de aproximadamente oito mil milhões de dólares. No dia em que o SVB colapsou, os mercados por todo o mundo reagiram e o preço das ações bancárias diminuiu. 

O Credit Suisse não foi exceção nesse momento, mas no que viria a seguir: a admissão da falta de controlo interno adequado nos relatórios financeiros, o que levou a uma ainda maior queda do preço das ações. O maior investidor do banco, o Saudi National Bank, informou então os mercados de que não iria estender a linha de financiamento existente. E nem a injeção de 54 mil milhões de dólares do Banco Central Suíço, para travar o problema de liquidez, conseguiu amparar a perda de confiança dos investidores. O banco, fundado em 1856, acabou por ser adquirido pelo rival UBS, que se consolidou como a grande instituição financeira suíça.

Nesta aquisição forçada pelos reguladores, o Credit Suisse foi adquirido por três mil milhões de dólares, um montante comparativamente pequeno perante o volume de negócios do banco, mas nem assim a venda se manteve privada. O Banco Nacional Suiço ofereceu uma linha de financiamento ao UBS de aproximadamente 100 mil milhões de francos suíços (ou 110 mil milhões de dólares) e estendeu uma garantia de dez mil milhões de dólares para cobrir quaisquer perdas no decorrer da venda dos ativos do Credit Suisse. Os respetivos acionistas receberam uma pequena porção do seu investimento, já que o preço das ações fechou em cerca de 60% do valor antes da anunciada venda. 

Mas nem todos os investidores foram ressarcidos. Em particular, os detentores de ativos AT1 - obrigações que se convertem em capital em caso de emergência - perderam um investimento de cerca de 17 mil milhões de dólares. Estes ativos foram introduzidos depois da crise financeira de 2008 como parte do capital regulatório de um banco, funcionando como uma obrigação de resgate em caso de necessidade de capital, oferecendo em contrapartida um retorno mais elevado. Embora arriscadas, teriam prioridade sobre os investimentos de capital em situação de insolvência.

Com a grande maioria dos bancos a recorrer a este tipo de obrigações para cumprir os regulamentos de capital, a súbita perda de valor destes ativos fez tremer a confiança já abalada dos investidores. E fez-se sentir no caso do Deutsche Bank: as suas obrigações AT1 desvalorizaram e a sua venda pelos investidores diminuiu o preço das suas ações em 15%. 

Os grandes bancos que compraram os que faliram tornaram-se ainda maiores e o “perigo moral” do banqueiro aumentou: se no final do dia o resgate é sempre uma opção, então o risco da atividade nunca recai sobre quem a pratica nem é tido em consideração.

Existem grandes diferenças entre os bancos norte-americanos e o Credit Suisse. A mais importante talvez seja a de que no caso dos bancos norte-americanos, ainda que com volumes de negócio consideráveis, os investidores estavam altamente concentrados nas áreas da tecnologia, incluindo no novo mercado de criptomoedas. Já o banco suíço tem ligações estruturais à economia e a outros grandes bancos por toda a Europa. As implicações da queda de um banco tão importante como o Credit Suisse não são comparáveis às que se seguirão com a do Silvergate, Signature e Silicon Valley Bank.

Mas, em ambos os casos, a intervenção dos reguladores, ora garantindo todos os depositantes, ora cobrindo eventuais perdas de valor decorrentes de uma venda, sinalizou aos bancos de maiores dimensões que os seus riscos estariam cobertos por eventuais garantias. Para os investidores, é igualmente mais apetecível manter a exposição junto a bancos de grandes dimensões, demasiado grandes para falhar, já que vêm com a garantia implícita de uma intervenção estatal. 

Como consequência, os grandes bancos tornam-se ainda maiores e o “perigo moral” do banqueiro aumenta: se no final do dia o resgate é sempre uma opção, então o risco da atividade nunca recai sobre quem a pratica nem é tido em devida consideração. Esta foi uma lição da última grande crise financeira,  em particular com o resgate de grandes instituições bancárias por todo o setor. 

É certo que agora experienciamos um cenário diferente com a inflação galopante e o consequente aumento das taxas de juro. A desvalorização de ativos e as perdas dos depositantes não serão um problema específico destes quatro bancos, podendo impactar mais instituições financeiras. Mas todos os casos apontam para um ponto mais geral: como o economista Hyman Minsky escreveu, os banqueiros vão ter sempre apetite pelo risco e seguem o modelo do mundo de Wall Street, perseguindo lucros e ignorando os crescentes riscos. Cabe apenas ao grande governo, como lhe chamou, intervir e impedir que esse apetite escale. 

Em todo o caso, cabe também a essa instituição repor a confiança no sistema bancário através de garantias e extensões de liquidez, para que um problema financeiro não se alastre para a economia real. A banca é um pilar essencial da infraestrutura pública, já que sem ela não sobreviveria, mas continua-se a insistir tratar-se de um ato de gestão de risco privado. 

O apetite pelo risco faz com que os sistemas financeiros sejam intrinsecamente instáveis. As regulações serão sempre necessárias e essenciais para conter o risco, mas só uma alteração do modo como organizamos e construímos a finança poderá ditar outro resultado. Para isso precisamos de uma banca pública cuja atividade não seja motivada pelo lucro - e portanto pelos riscos - mas que priorize a economia real e o seu setor produtivo.