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Comboios Portugal
Joana Ramiro
Joana Ramiro

Um comboio descendente: A “revolução na ferrovia” portuguesa está longe de ser o elixir ambientalista

Há vontade política para implementar uma rede ferroviária em Portugal, mas as condicionantes são muitas. Se por um lado temos uma forte engrenagem de incentivo a transportes mais poluentes, por outro a perspetiva ecológica e socialmente justa não está a ser contemplada.

11 Fevereiro 2022
Joana Ramiro

A União Europeia apelidou 2021 como o “Ano da Ferrovia”. Não foram poucos os que partiram de Portugal como parte da iniciativa, prontos a demonstrar como a Europa está já em transferência modal – dos transportes super poluentes como o carro e o avião, para a ferrovia amiga do ambiente. Mas se a intenção dos viajantes é boa, a idealização e execução por toda a Europa deixam algo a desejar. E em caso algum é este facto tão evidente como em Portugal, onde anos de desativação e desinvestimento são agora milagrosamente corrigidos por projetos de dimensões internacionais. Em jogo estão a sustentabilidade, dinheiros públicos e a democracia. 

“Não podemos ser ingénuos a pensar que depois de 30 anos de uma investida neoliberal no desmantelamento da ferrovia europeia, que num ano íamos mudar isso”, salientou Daniela Subtil.

No famoso Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) a ferrovia toma um lugar de destaque como meio de descarbonização da mobilidade e de equalizador social. O governo atribuiu-lhe um montante de mil milhões de euros de investimento. Um passo lógico já que se trata da “bazuca europeia” e o Acordo Verde Europeu de 2019 quer reduzir as emissões dos transportes em 90%. A ferrovia é responsável por 1,5 a 2% das emissões por transportes​​. Os transportes rodoviários de passageiros e de carga contam para 71% das emissões. Para a agenda ambientalista a matemática é clara.

Mas tanto o PRR como outros programas por toda a Europa têm deixado dúvidas no que toca ao objetivo de chegarmos em 2050 à neutralidade carbónica. Como a cooperativa jornalística Investigate Europe desvendou no fim do ano passado, há um desfasamento abissal entre a retórica política e a realidade no terreno. Mas mais maligna que o otimismo será talvez a continuação da lógica que permeia o planeamento da recuperação e expansão da ferrovia. 

Pela Europa rege hegemonicamente a ideia de que a ferrovia tem que ser competitiva contra os outros meios de transporte, em vez de ser encarada como a pedra basilar de uma mudança de paradigma económico e social. Ou seja, se para as estruturas governamentais europeias a ferrovia é a solução verde dos transportes, pouco se tem feito para que a sua re-adopção faça parte de um programa holisticamente verde. 

Para a porta-voz da rede Stay Grounded, Daniela Subtil, o problema está na ausência de uma “abordagem estrutural” da transição modal e numa certa “ingenuidade”. “Nós até começamos a brincar um pouco, que não devia ser só o ano da ferrovia, devia ser a década ou até mais que isso,” disse ao Setenta e Quatro a porta-voz referindo-se à campanha acima mencionada. “Nós não podemos olhar para aquilo que tem sido a decadência nas últimas décadas do sector ferroviário sem olhar para aquilo que tem sido a promoção da União Europeia da mobilidade rodoviária e da mobilidade aérea.”

“Não podemos ser ingénuos a pensar que depois de 30 anos de uma investida neoliberal no desmantelamento da ferrovia europeia, que num ano íamos mudar isso”, salientou Daniela Subtil. E acrescenta que isso “acaba por ser já um pouco aquilo que é a ingenuidade da própria União Europeia, de ‘é o ano do comboio e agora vai mudar tudo”.

Para a Stay Grounded, que engloba campanhas ambientalistas por todo o mundo, o resgate tem que passar por uma transição rápida, mas também justa. Num relatório publicado recentemente em parceria com o sindicato britânico PCS, a organização descreve a transição justa enquanto “diálogo crítico” e o “planeamento conjunto de transição”. Os envolvidos nesta transição justa devem ser, segundo o documento, “sindicatos, trabalhadores, cientistas, defensores da justiça climática, comunidades dependentes do turismo, bem como governos nacionais e locais”. 

Para a porta-voz do grupo, com a pandemia de coronavírus “os Estados perderam uma oportunidade histórica, no sentido em que, em vez de terem injetado dinheiros públicos para salvar companhias aéreas, poderiam ter implementado programas de transição e de requalificação dos trabalhadores para que fossem integrados noutras áreas de mobilidade, como por exemplo o sector ferroviário”. 

A “revolução na ferrovia” em Portugal

A poucos dias das eleições legislativas de 30 de janeiro, a empresa pública Infraestruturas de Portugal (IP) tornou oficial a reabilitação da Linha do Vouga, abrindo concurso para a empreitada com um preço base de 4,95 milhões de euros. O troço histórico, que um dia ligou os 140 quilómetros entre Viseu e Espinho, está encerrado ao serviço de passageiros desde 2013 por causa da degradação do percurso. 

A recuperação verá “a substituição integral de carril, travessas e fixações, a balastragem de via e ataque mecânico pesado, bem como a automatização de passagens de nível”, mas não incluirá quaisquer modernizações do serviço. Os comboios não andarão mais depressa do que andavam há 30 anos, que é a idade da frota a restaurar. 

A eletrificação da linha também não está prevista e, segundo declarações da IP ao jornal Público, a alteração de motores a diesel por outros de hidrogénio, “ficará dependente da demonstração de viabilidade técnica e económica”. Esta mera reposição do serviço de Aveiro a Espinho espera-se pronta em 2025. Até lá, como o ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, tantas vezes sublinhou na campanha eleitoral enquanto cabeça de lista do PS por Aveiro, a viagem continuará a ser feita de carro. 

A reabilitação da Linha do Vouga é um dos ex-libris da “revolução na ferrovia” ostensivamente divulgada pelo governo, e por Nuno Santos em particular. Mas a sua execução – bem como o investimento de 819 milhões de euros em novo “material circulante” (comboios) para a Comboios de Portugal (CP) – vem levantar questões sobre a utilidade, viabilidade e eficiência das propostas. 

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Pedro Nuno Santos num comboio
O ministro Pedro Nuno Santos ladeado pela Ministra da Coesão Territorial, pelo presidente da Câmara da Covilhã e pelo Presidente da Câmara da Guarda numa viagem entre a Guarda e a Covilhã | Miguel Pereira da Silva/LUSA

“O que se está a passar hoje também é resultado do que se tem vindo a acumular ao longo destas três últimas décadas,” disse ao Setenta e Quatro o ex-director de planeamento na Autoridade Mobilidade e Transportes de Lisboa, o engenheiro Carlos Gaivoto. “Quando Portugal aderiu à União Europeia nos meados da década de 1980 houve toda uma política em vários sectores, mas em particular na parte dos transportes, que acabou por se traduzir no chamado hollowing-out, portanto um certo esvaziamento do aparelho de Estado e das estruturas técnicas.” 

A década que se seguiu viu sucessivos governos portugueses criarem uma “inflação de infraestruturas rodoviárias que tornou o país muito dependente do automóvel”. O resultado é Portugal ter hoje uma média de mais de 680 automóveis por cada 1000 habitantes. Segundo a Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (ACEA), na UE a média de veículos de passageiros privados por 1000 habitantes é de 569. 

Os valores da Eurostat sobre a taxa de motorização em Portugal são menores que os do INE, mas, mesmo pelas estimativas europeias, Portugal continua a ser um dos países com maior crescimento na compra de automóveis. O número de carros registados entre 2015 e 2019 subiu 15%.

A este problema soma-se o desequilíbrio na densidade populacional no país, que vê no interior cerca de 0,28 habitantes por quilómetro quadrado. No litoral o valor é 372 vezes maior, chegando a concentrarem-se 104 habitantes por cada quilómetro quadrado. As áreas metropolitanas de Lisboa e Porto albergam entre si 45% da toda a população de Portugal continental. 

O problema continuará a agravar-se se, como apurou um inquérito do Gerador feito em meados do ano passado, os cerca de 60% de jovens a viver no interior mas a equacionar mudar-se para o litoral o fizerem. Avista-se um interior de Portugal totalmente desertificado – de recursos e pessoas – e um litoral sobre-explorado e sem capacidade de responder às necessidades populacionais. 

Carlos Gaivoto, que é o representante da Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente no Conselho Superior de Obras Públicas, adiantou que, se os governos socialistas desde 2015 têm de facto tentado “recuperar algum atraso”, este esforço tem sido feito de uma forma “muito top-down”. Começando pela falta de consulta das populações e dos trabalhadores no sector. 

Igor Constantino é mecânico na CP. Como o próprio descreve, passou “dos aviões para os comboios” depois de trabalhar na empresa de construção aeronáutica OGMA, hoje privatizada. É uma mudança com a qual está particularmente satisfeito porque os direitos e as condições de trabalho são significativamente melhores. Além disso, há uma cultura dentro da CP, uma “história da organização, de cultura sindical, de cultura de auto-organização, de solidariedade, de sentimento de pertença”. Mas o orgulho de ser um trabalhador na CP não paga as contas de supermercado ou a renda.

“Talvez desde este segundo mandato do PS, o panorama mudou bastante na CP, para melhor, sem dúvida”, admite o mecânico ao Setenta e Quatro. “No entanto, a crítica que a maioria dos trabalhadores do sector, da estrutura dos sindicatos e comissões de trabalhadores – seja na CP seja na IP – fazem é que a CP, em reuniões com estruturas sindicais, literalmente responde muitas vezes às reivindicações salariais dos trabalhadores com ‘ah mas nós já estamos a investir muito dinheiro em comboios.’”

Igor Constantino descreve o investimento dos últimos anos na CP como “uma grande operação de cosmética”. Mas o que fica de fora das parangonas e das injeções de capital “são as condições reais de quem é que põe isto tudo verdadeiramente a mexer”.

Carlos Gaivoto acrescenta que “o que nós assistimos são projetos megalómanos, muitos deles sem qualquer avaliação socioeconómica.” A “revolução na ferrovia” vem continuar, e até mesmo em certos pontos reforçar, a organização neoliberal do planeamento e administração geográfica do país. A assinatura do mencionado contrato de serviço público entre o Estado e a CP no verão passado prevê a compra de 117 novos comboios que vêm substituir frotas que chegam a ter 70 anos. 

De fora fica o serviço mais verde e mais lucrativo para a CP: o Alfa Pendular que liga Lisboa ao Porto, bem como a capital a Braga e a Guimarães, e a Invicta a Faro. Qualquer investimento necessário nestas rotas elétricas e de velocidades até aos 200km/h ficarão a cargo da CP. Mas a empresa pública vive sob o peso de uma dívida histórica, sobrevivendo até 2019 de Orçamento de Estado em Orçamento de Estado e suspendendo ou encerrando linhas sempre que o dinheiro aperta. Foi o caso da Linha de Leixões em 2011, de um troço da Linha do Alentejo no mesmo ano, e dos dois serviços internacionais que ligavam Portugal a Espanha e França em 2020. 

E aqui se nota mais uma vez como a lógica da acumulação e não a da sustentabilidade predomina ainda no planeamento da ferrovia em Portugal. Estudos para a construção de uma linha de alta velocidade ligando Lisboa ao Porto começam este ano e a obra é para iniciar já em 2023. Em 2030 prevê-se que a viagem dure pouco mais de 1h10. Mas quem vai explorar o serviço e contar com um dos serviços mais lucrativos do sector não é certo. Se a CP não tiver o capital para o fazer, é provável que a rota seja entregue a uma operadora privada. 

A presente situação agrava-se. Se, por um lado, o próprio secretário de Estado das Infraestruturas, Jorge Delgado, assume que o governo poderá vir a depender de iniciativas público-privadas no que toca ao investimento na ferrovia, por outro é difícil ver como os bolsos privados se irão abrir para quaisquer projetos cujo custo-benefício e as margens de lucro sejam pouco apelativas. 

Vontade política vs lobbies

Para muitos, são as margens de lucro que vêm transtornar as boas intenções de quem se encontra em posições de tomada de decisão. “Eu acho que existe uma vontade política,” disse Daniela Subtil, da Stay Grounded. “Acho que ela não é muito forte, mas acho que existe. O problema é que ela esbarra – especialmente se pensarmos a nível europeu – com o constante lobby de empresas ligadas a setores mais poluentes, como é o caso do sector da aviação.” 

Um outro obstáculo no bloco central europeu é a indústria automóvel, ainda um titã laboral e económico, principalmente na Alemanha. “Existem esses dois lobbies muito grandes”, continua a porta-voz. “O primeiro, da aviação, é altamente difícil de descarbonizar, que gera muitos monopólios e interesses económicos, e que esbarra depois com a questão da ferrovia que, quer queiramos quer não, precisa de um papel do Estado muito forte na sua manutenção e portanto não é tão bom para o negócio.” 

Igor Constantino descreve o investimento dos últimos anos na CP como “uma grande operação de cosmética”, referindo que as condições reais de quem põe isto tudo a mexer fica de fora das parangonas e das injeções de capital.

O engenheiro Carlos Gaivoto toma uma posição mais crítica e diz que não há sequer vontade política. “Porque se houvesse vontade política estes problemas nem sequer estavam a ser referidos.” Adianta que se em Portugal há leis com o intuito de conduzir planos intermunicipais, os processos não são tratados enquanto projetos científicos, resultantes da investigação e cooperação de especialistas de várias disciplinas importantes para a organização territorial. 

“Nós cá temos é os consultores privados, os advogados privados a fazerem políticas de contratação. Temos uns a fazerem inquéritos de uma maneira e outros de outra”, diz o especialista em Transportes. Ou seja, “a total anarquia na forma como se faz um trabalho técnico e científico de forma coerente e congruente com as necessidades que nós devíamos agora resolver”.

Em Portugal, o planeamento de obras públicas feito sob a alçada da sustentabilidade e do impacto ambiental é ainda muito recente. Os sistemas estão ainda muito “manipulados”, como diz o engenheiro Gaivoto, e há um caminho a percorrer que irá precisar de uma alteração de mentalidades, tanto a nível de consumo como a nível de execução. É uma tarefa dupla que, dadas as limitações económicas do país, será ainda mais complexa. A transformação terá que vir através da liderança política. “Tinha que se intervir, tinha que haver política para mudar isto”, disse Igor Constantino. “Não pode haver pudor de haver políticas que influenciem de certa forma as mentalidades no país.” 

Com um governo tão afeito à transferência modal e ao país enquanto exemplo europeu da transição digital e climática, não será demais exigir que seja o próprio ministro Pedro Nuno Santos a liderar-nos neste caminho. Mas a sua “revolução na ferrovia” terá que ser feita de uma forma muito diferente. 

O Setenta e Quatro contactou a Infraestruturas de Portugal e o Ministério das Infraestruturas e da Habitação, não recebendo resposta até à hora de publicação.

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