Existem em Portugal centenas de sites que promovem o alojamento de voluntários em troca de algumas horas de trabalho por dia. Por vezes, experiências de voluntariado internacional revelam-se armadilhas de exploração laboral. Trabalham mais do que o legalmente permitido por dia, não recebem salário e pagam a sua própria alimentação.
Com meio fato de surf suspenso na cintura, senta-se para conversar e pede desculpa pelo atraso. São oito horas em ponto quando encontramos Julita Pietrasiuk pela primeira vez, depois de dar mais uma aula na escola de surf em que trabalha. Como instrutora de surf, as suas responsabilidades são agora outras numa escola diferente.
Meses antes ocupava aquele horário com “voluntariado”. As suas funções eram praticamente as mesmas, só a escola é que mudava. Tratava-se da Surf School Good Feeling, na Raposeira, no Algarve.
Mudou-se para a costa oeste do Algarve, em maio de 2021, depois de receber uma proposta após chegar ao Algarve. Naquela altura não conseguia encontrar oportunidades de emprego em Portugal. O objetivo era arranjar uma opção remunerada, mas, no entretanto, um voluntariado pareceu-lhe o mais indicado: pelo menos teria um lugar onde viver. Passou a depender de um horário de trabalho que ultrapassava o acordado com a gerência. “É até curioso, porque, aquando da minha chegada à escola [Good Feeling], a primeira coisa que me disseram foi ‘aqui terás uma experiência que mudará a tua vida”, conta ao Setenta e Quatro. De facto, mudou-lhe a vida.
Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.
Guiada nos primeiros tempos por Hugo Taipa e Miguel Ferreira, gerentes da escola, a polaca de 30 anos trabalhava cinco horas por dia. Organizava e carregava material, trabalhava na receção e ajudava no transporte de alunos (o que acontecia frequentemente).
Em alguns casos que partilhou com o Setenta e Quatro as cinco horas diárias - com direito a um dia de descanso por semana - passavam a 12, trabalhando três dias seguidos e parando outros três. "Conheci algumas voluntárias que no hostel [Good Feeling] o faziam", conta.
Se se fizerem as contas, o horário que Pietrasiuk indica não é permitido pela lei portuguesa de voluntariado. Isto porque o total por dia era superior a sete horas diárias e, de acordo com o regime de voluntário “aceitável”, o máximo são cinco.
Sem seguro ou acordo assinado entre a Good Feeling e Julita Pietrasiuk, os termos e condições do trabalho voluntário funcionavam a partir de uma comunicação de cima para baixo: era informada do que tinha de fazer, “sem que houvesse muita margem para o debater”, reconhece.
Se estas condições de voluntariado já levantam suspeitas, quando a jovem polaca descreve a casa em que o staff residia - e do qual fazia parte - percebeu-se estar “num beco sem saída”. “Quando nos oferecem alojamento, não sabes as condições da estadia antes de lá chegares e começares o teu tempo de voluntariado”, começa por explicar.
Partilhava o quarto com mais duas voluntárias, no qual dormiam em beliches, sem que houvesse portas nas divisões de dormitório. “Era só um pano, uma cortina que punhamos, e tornava-se muito desconfortável, pois de outra forma não tínhamos qualquer privacidade”, conta. A cozinha costumava estar limpa “dentro do possível”.
A partir das informações que partilhou com o Setenta e Quatro, é possível percorrer os corredores da casa, contando-se três quartos ocupados. Além do quarto de Julita Pietrasiuk, um casal dividia um quarto e dois rapazes ocupavam o outro, com “dimensões muito pequenas, o que impossibilitava qualquer conforto”, dizem os dois jovens.
Contam-se quatro camas, divididas em dois beliches, um espaço com dimensões muito reduzidas para guardar roupas e bens essenciais e um pano solto que serve de porta, tal como no antigo quarto de Pietrasiuk.
Havia ainda um outro espaço inabitável. Seria normalmente um quarto, mas estava fechado por causa de uma praga de percevejos. “O gerente da escola de surf, que estava encarregue do alojamento, não fez nada em relação a isso [percevejos] durante muito tempo. Pedíamos-lhe constantemente”, afirma Pietrasiuk indignada. Nos meses em que lá viveu, não viu ninguém tratar da situação, assegura.
As casas de banho dividiam-se entre rapazes e raparigas. Na das raparigas, o bolor era visível por todo o lado. A banheira estava degradada. A água infiltrava-se por uma fenda, fazendo com que “a banheira entupisse regularmente com água suja e mau cheiro”, contam três voluntários.
Aos trabalhadores remunerados e que precisassem de alojamento era-lhes cobrado um valor que rondava os 177 euros. “As condições eram de facto lastimáveis. Tive oportunidade de ter uma casa e, portanto, este valor não me era descontado, mas ouvi muitas vezes os outros voluntários comentarem. Além disso, tinha colegas na mesma situação”, recorda uma ex-voluntária que pediu anonimato por medo de represálias.
O Setenta e Quatro tentou visitar a casa, mas o pedido foi negado. Questionado sobre o estado da casa, Pedro Marinho, um dos funcionários que ajuda na gerência, limitou-se a dizer, de forma sucinta e rápida, que “sempre que têm uma queixa tentam resolvê-la de imediato”.
“Porque é mais conveniente e barato ter alguém que trabalhe de graça [camuflado de voluntariado]", diz Pietrasiuk indignada.
Todos os voluntários e voluntárias com quem o Setenta e Quatro falou negaram ter assinado qualquer documento que os protegesse. No entanto, as diferentes plataformas a partir do qual se candidataram têm um guia e partilham dicas de boas práticas. O objetivo é preservar o bem-estar dos “anfitriões” e dos "voluntários", mas todas se excluem de quaisquer responsabilidades. Na sua maioria, nenhuma das boas práticas estava a ser respeitada pela escola de surf, acusam os ex-voluntários.
No caso da escola, a plataforma que usa com maior frequência, apesar de não receber muitos voluntários nos últimos anos, é a WorldPackers. “É feita uma análise dos possíveis candidatos, através da plataforma. Verificamos se querem ajudar e quais as suas competências. Depois acordamos tudo. Desde idas e vindas a horários que se estabelecem de 15 em 15 dias”, continua Pedro Marinho, depois de nos contactar por chamada telefónica. Durante a conversa, o funcionário chega a mencionar que ultimamente recebem poucos voluntários, dados "os constrangimentos nos últimos anos". Referia-se a horários que, em determinadas alturas, cumpridos e algumas ausências dos voluntários.
Sobre a casa do staff, o empregado esclareceu que a casa, que está muito próxima de uma quinta com animais, era um lugar “vasto”, “limpo” e “habitável”. Marinho reiterou que “é sempre complicado colocar 12 pessoas numa casa. Poucas vezes a frequentamos se eles não se queixarem das situações”.
Existem em Portugal centenas de estabelecimentos dispostos a alojar viajantes ou voluntários em troca de algumas horas de trabalho por dia. No Algarve e nas grandes zonas metropolitanas, são diversos os promotores que disponibilizam estas ações e condições de voluntariado. Recebem ajuda nas tarefas, enquanto quem chega pode encontrar uma forma mais barata de viajar. Mas nem tudo é um mar de rosas.
Se os números são vastos no que toca às propostas, os relatos negativos são cada vez maiores. As dúvidas sobre se as empresas e instituições que recebem estes voluntários estão a mascarar uma situação de trabalho efetiva declarando-a como voluntariado, o que é ilegal, amontoam-se.
A este cenário aliam-se os números de desemprego. De acordo com os números do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Eurostat, o desemprego atingiu no verão deste ano cerca de 2,5 milhões de jovens (menores de 25 anos) a nível europeu, sendo mais de 300 mil portugueses. Muitos voluntários reconhecem e lamentam estarem “eventualmente a tirar o trabalho a várias pessoas”, uma vez que o fazem sem qualquer custo para os estabelecimentos com fins lucrativos.
Em alguns casos que a jovem partilhou, as cinco horas diárias - com direito a um dia de descanso por semana - passavam a 12, trabalhando três dias seguidos e parando outros três.
No caso de Julita Pietrasiuk, a oferta de voluntariado que encontrou estava num site de trabalho comunitário, no qual não seria suposto encontrar ofertas de empresas privadas. Não é um caso isolado.
Partindo do caso do surf camp Good Feeling, que se replica por dezenas de locais no Algarve, são vários os exemplos de falta de alternativa para quem quer fazer”voluntariado”. Só no Workaway, um dos sites internacionais que fazem a ponte entre anfitriões, escolas e “voluntários”, existem mais de 900 anúncios de estabelecimentos em Portugal, publicados por “hosts” de todas as regiões do país, incluindo nos Açores e na Madeira.
Desde junho, foram publicados mais de 500 anúncios novos para o território nacional. É uma das plataformas do género mais usadas a nível mundial. A informação desta página refere mais de 33 mil anfitriões espalhados por 170 países. Já o HelpX, uma das plataformas mais antigas, tem cerca de 600 anfitriões listados em Portugal.
Pressuposto ao conceito por detrás de todas estas plataformas está uma troca em que as duas partes devem sair igualmente beneficiadas: o anfitrião recebe uma ajuda nas tarefas, enquanto o “voluntário” viaja de forma mais económica e adquire novas competências. Em teoria, ambos beneficiariam com a partilha de experiências e o intercâmbio cultural entre pessoas de diferentes partes do mundo.
De forma mais sucinta ou bastante pormenorizada, os termos do acordo — número de horas, condições ou tipo de trabalho — devem ser estabelecidos a priori entre as duas partes. O sucesso da experiência, defendem, depende apenas das duas partes.
“O Workaway não é parte de nenhum acordo celebrado entre hosts e workawayers, nem é uma agência de viagens, um programa de intercâmbio organizado, um agente ou seguradora”, lê-se, por exemplo, na página de Termos e Condições da plataforma sediada em Hong Kong. Os utilizadores usam-na “inteiramente por sua conta e risco”, uma vez que o Workaway “se exclui expressamente de toda a responsabilidade por qualquer perda ou dano […] sofrido como resultado do uso” dos serviços disponibilizados no site.
Todos os sites que o Setenta e Quatro consultou definem os voluntários como viajantes ou ajudantes, embora alguns falem de troca de trabalho, usam a expressão inglesa “work exchange”. Mas a definição é controversa e levanta questões: estas situações entram, de facto, no âmbito do voluntariado? É uma entreajuda informal? Uma troca de experiências? Ou trabalho ilegal dissimulado?
Às experiências de Julita Pietrasiuk junta-se ainda a de Letícia Gaspar. A brasileira de 28 anos fez voluntariado na Fun Ride, uma escola de surf localizada em Vila do Bispo, durante seis meses. Já tinha trabalhado com os gerentes da Good Feeling, ainda que fosse apenas no hostel e não na escola de surf.
Havia ainda um outro espaço inabitável. Seria normalmente um quarto, mas estava fechado por causa de uma praga de percevejos.
A escola de surf e o hostel Good Feeling pertencem aos mesmos proprietários, mas apresentam gerências diferentes. Por esse motivo, as condições diferem de um local para o outro. “É importante reforçar que as condições de voluntariado do hostel são muito melhores que as da escola", alerta.
A sua experiência positiva mudou quando chegou a Lagos. O seu planeamento semanal era dividido em seis horas diárias, distribuídas entre a manhã e o final da tarde, com dois dias de folga. Seguiu-se um aumento para 40 horas semanais, uma alimentação “superprecária”, por só receber o pequeno-almoço, cuja ementa era sempre a mesma, e um quarto que dividia com seis pessoas. A alimentação ficava a cargo dela, mesmo sem receber salário.
Plataformas como a Workaway não permitem anúncios com mais de 25 horas semanais, assim como a European Youth, uma iniciativa da União Europeia que permite um maior controlo sobre as políticas e condições de voluntariado entre países. Porém, são cada vez mais os relatos de cargas horárias superiores que demonstram o contrário.
Rapidamente, Pietrasiuk enumera uma lista de nomes e experiências de amigos e amigas que passaram por realidades muito idênticas à sua em diferentes estabelecimentos: hostels, campos de surf e casas de apoio. Tudo em Portugal.
Porquê? “Porque é mais conveniente e barato ter alguém que trabalhe de graça”, responde sem hesitação a jovem polaca de 30 anos.
A jovem, indignada, alerta ainda que esta realidade tornou-se comum no sul do país. “Um ano depois de cá estar [no Algarve], percebi que isto [excessos] é uma prática muito comum”, termina.
É neste sentido que Inês Tomaz alerta para conceitos como o voluntourism ou turismo-voluntariado. “Os programas que vendem uma experiência de voluntariado que é, na verdade, turismo disfarçado pode ser prejudicial para as comunidades”, explica em artigo a autora de um dos projetos solidários do Corpo Europeu de Solidariedade de formação a voluntários internacionais. “Estas organizações são movidas pelo lucro e constituem uma indústria de milhões de euros anuais.”
Plataformas como a Workaway não permitem anúncios com mais de 25 horas semanais, assim como a European Youth, uma iniciativa da União Europeia.
Além da regulamentação e da fiscalização, uma outra estratégia para se evitar experiências de voluntariado que se mostrem nada menos nada mais que armadilhas de exploração laboral é darem-se ferramentas de pesquisa e investigação, bem como apoio aos possíveis voluntários para se prevenirem. Mas também, diz a investigadora, sensibilizar os voluntários sobre o impacto que terão no terreno e junto das comunidades e das pessoas para compreenderem quem mais beneficiará com estes supostos voluntariados.
É nesta lógica que Pietrasiuk destaca ainda o facto de serem sobretudo mulheres a passar por estas situações precárias, uma vez que ficam num regime mais prolongado no tempo. Nas menos duradouras, acabam por desvalorizar as condições de alojamento, isto é, “as que deveriam garantir-nos, mas que não temos”, termina.
Por sua vez, os gerentes da escola, contra argumentam que sem o apoio dos “voluntários” não seria possível arrancar com alguns dos projetos. Daí dizem não compreender como os regimes dos seus voluntariados podem ser considerados ilegais uma vez que os próprios voluntários saem beneficiados.
Apesar da lei de voluntariado em Portugal estar em vigor, Tomaz ressalva que a legislação tem muitas zonas cinzentas, nomeadamente em contextos internacionais. Zonas cinzentas, diz, que permitem o turismo-voluntário, “o capitalismo no seu pior”, porque legitima as tais “ilegalidades que os hosts não vêem”. E, pelo meio, associa voluntariado com indústria e negócio.
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