Qual é a força da inquietação que os compositores colocam nas suas letras? Qual é o retrato que fazem de Portugal? E de que forma se projeta a sua voz? O Setenta e Quatro foi ouvir alguns dos artistas que usam a sua arte em nome de uma ou várias causas.
É um fenómeno mundial com uma longa história. A música pode ser o registo de um momento fraturante ou a consequência do contexto de uma era. Em Portugal, o pós-25 de Abril foi prolífero na música de intervenção. Ela estava lá, escondida nos anos de ditadura, e saiu com toda a força pela voz de músicos como José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Zeca Afonso.
Temos por isso essa herança, a ligação entre emoção e mensagem, afirmação e sentido de união, o Homem Novo, o sonho que comanda a vida. E se naquele tempo a celebração estava sempre presente, as letras nunca deixaram de referir o passado que se deixou para trás e a mágoa do fascismo.
Quando olhamos para a música de intervenção que se faz hoje em Portugal, ela é fruto também dessa história, assim como dos movimentos sociais que se criam hoje em dia um pouco por todo o lado. Os artistas portugueses olham, naturalmente, para o que se passa no resto do mundo e para acontecimentos como o Black Lives Matter.
Acontecimentos que não só reavivaram temas antigos, como We shall Overcome, canção-bandeira da luta pelos direitos civis composta por Pete Seeger (editada em 1947), como foram tema de músicas como This is America, de Childish Gambino (2018) e das letras da atual banda inglesa Sault. A cantiga como veículo de expressão, como símbolo de um movimento ou como estímulo de uma mudança foi, é e sempre será uma forma de luta.
Em Março de 2021, Dino d'Santiago saltava para o palco criado pelo artista Francisco Vidal e pela jornalista Namalimba Coelho em nome do projeto MAKA (Momento de Arte e Kultura Africana). A Dino juntaram-se Chullage, NGA, Vírgul, Sam The Kid ou Kady, num espectáculo transmitido em streaming pelo jornal Público, na noite do 31º aniversário da publicação. Nas paredes e no chão, notícias sobre crimes ou injustiças raciais e várias fotografias de vítimas, entre eles Alcindo Monteiro e Bruno Candé.
As músicas dessa noite foram assumidamente interventivas. Dino cantava: "Dizem preto vai para a tua terra / Sai daqui que não és ninguém", versos do tema Flan Pamodi, a penúltima faixa do mais recente álbum, Kriola (2020).
Foi sempre entre o crioulo e o português que esta noite decorreu, numa fusão natural da música afro-portuguesa. No espaço também se encontrava Mamadou Ba, e o espectáculo dava-se em nome dele, no seguimento do abaixo-assinado a pedir a sua deportação. “Cantámos aquelas canções como nunca o tínhamos feito antes, porque estavam, finalmente, no seu contexto", explica-nos Dino d'Santiago. “Sinto que foi a primeira vez que cumpri de facto a missão de fazer da música um manifesto. Fi-lo, acima de tudo, pelos ‘Mamadous’ que teremos daqui para a frente."
Em quase duas décadas de carreira, o músico já usou muitas vezes o palco da arte para espelhar o seu olhar sobre o que o circunda. Nos últimos anos, tem feito da sua obra uma espécie de ode à renovação e à mistura, falando apaixonadamente de um Mundo Nôbu, de uma Nova Lisboa ou de um Caminho nôbu. A chave desse processo é, de acordo com o músico, aquilo a que chama de “crioulização do mundo”.
“A base lexical do crioulo é entre 70% a 80% língua portuguesa. É um fruto da mistura. E é precisamente aí que vejo o futuro da humanidade, nessa mestiçagem”, explica o músico. Na canção Krioulo (2020), gravada com o rapper Julinho KSD, esta visão é sintetizada num verso repetido múltiplas vezes: “Branco com preto, geração de ouro”.
Foi em Quarteira, onde nasceu e cresceu, que começou por sentir a violência policial, quando entravam pela casa da família, no Bairro dos Pescadores. “Ao longo do tempo fui-me apercebendo de que as intervenções policiais são muito mais violentas com as pessoas negras", conta Dino d’Santiago. "A polícia tem muitas pessoas que são racistas. Não é suposto sentires que essa entidade representa uma ameaça: deveria transmitir-nos segurança”.
Em 2020, um relatório publicado pelo Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa alertou para este facto, comprovando que as pessoas afrodescendentes, portuguesas e estrangeiras, estão sujeitas a um maior risco de abuso por parte das forças de segurança.
É sobre isto que a banda Fado Bicha fala na canção Lisboa, não sejas racista (2019), em que ouvimos: “Lisboa, com ecos de PIDE/ A vir de Alfragide/ Segurança para quem?/ Lisboa, não sejas racista/ Cassetete fascista/ É bosta e bem". E é sobre isto que também canta Luca Argel, músico carioca radicado no Porto desde 2012, no recém-lançado álbum Samba de Guerrilha (2021), o quarto do artista.
Neste disco, o compositor propõe uma incursão à história política do samba, que é também a história do colonialismo, da escravatura e do racismo no Brasil. Uma nova roupagem a sambas clássicos, trazendo para primeiro plano o caráter interventivo e politizado das suas letras. Em entrevista, defende ser urgente encetar uma discussão profunda sobre o racismo estrutural, estruturante e institucional que existe no país: "a forma como Portugal entende a sua história colonial é um problema muito sério. É sistematicamente minimizada e escamoteada. O próprio debate é boicotado, é um tabu falar sobre racismo”.
Para este artista, é importante assumir o objetivo de desconstruir o “estereótipo redutor que existe no imaginário das pessoas sobre este tipo de música”, muitas vezes visto, tanto no Brasil como em Portugal, como sendo “alienante, alienado, de diversão escapista”. O álbum conceptual abre com Samba do Operário, da autoria de Nelson Sargento, Cartola e Alfredo Português. Ouve-se: “Se o operário soubesse/ Reconhecer o valor que tem seu dia/ Por certo que valeria/ Duas vezes mais o seu salário/ (...) Abafa-se a voz do oprimido/ Com a dor e o gemido”.
Também a herança de autores brasileiros faz parte da inspiração de Luca. Lembra-nos Cartola (1908-1980), Batatinha (1924-1997) ou Aldir Blanc (1946-2020). “Os problemas que eles identificaram na sociedade do seu tempo ainda não foram resolvidos”, lamenta. “Quando Aldir Blanc fala das lutas inglórias, pensa certamente no combate contra a ditadura que vivia nesse momento. Mas, quando ouvimos esses versos, podemos pensar nas nossas lutas inglórias, na eleição de Bolsonaro ou de Trump. Os personagens vão mudando, mas a luta é a mesma.”
A dada altura, num dos monólogos escritos por Luca para contextualizar historicamente as faixas do álbum, é dito que “a abolição pode ter acabado com a escravatura, mas nem sequer arranhou o racismo”. O cantor explica-nos que todo esse processo decorreu “numa sociedade moldada segundo a ideia de que existe um conjunto de pessoas que deve servir e outro grupo que deve ser servido — uma hierarquização que está, ainda, profundamente arreigada”.
"A forma como Portugal entende a sua história colonial é um problema muito sério. É sistematicamente minimizada e escamoteada. O próprio debate é boicotado, é um tabu falar sobre racismo”, garantiu Luca Argel
Neste contexto, o samba emerge como bastião de resistência, e não apenas pela contestação antirracista presente nas suas letras. Na canção Ninguém Faz Festa, do álbum Bandeira (2017), o compositor e poeta diz: “Um samba, uma gelada, e o suor da nossa testa/ Ainda são as armas que nos restam”.
Este é, pois, um instrumento de agregação coletiva. Isto porque as tradicionais rodas de samba sempre se assumiram como lugares de encontro e partilha das comunidades segregadas.
Luca Argel diz mesmo que “todo o discurso colocado no mundo pelo artista tem um viés político, esteja ele ciente disso ou não”. No seu prisma, o artista, cujo trabalho está “sempre sujeito a escrutínio público”, não tem a “opção de não participar do fórum de discussão política”. Mesmo quando abordam temas aparentemente mais frívolos, os discursos artísticos têm, por isso, existência ideológica.
"Quem é que diz que as mulheres não podem cantar rap?", pergunta Mynda Guevara numa das suas músicas. Sempre foi uma área artística dominada por homens e por vezes colada a um discurso misógino, mas o jogo está a mudar, e para isso têm contribuído vozes como a desta jovem rapper cheia de garra e vocação.
Vê-la em palco é ver um furacão, com palavras que lhe saem num disparo da alma. "Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, já dizia Angela Davis. Prova disso é, por exemplo, o apelido que escolheu para o seu nome artístico, ‘Guevara’. Segundo afirma, trata-se de um espelho do seu “espírito revolucionário” e da sua sede por “marcar a diferença”. Na canção Na Nossa Língua (2020), por exemplo, a mensagem é forte: “Preta que veio do gueto, do nada/ E quer estar na boca do povo”.
A vivência na Cova da Moura, onde cresceu, marca presença constante na sua obra. A este respeito, explica que, “vinda de um bairro social e sendo negra”, desde sempre sofreu de “discriminação a todos os níveis”, o que se repercute necessariamente na sua visão do mundo. “A nossa luta, os nossos medos e a forma como encaramos a vida é diferente”, garante.
Foi aí que arriscou, também, os primeiros passos na música. Aos 13 anos, começou a frequentar o já renomado Kova M Estúdio, integrado na Associação Cultural Moinho da Juventude. Pouco depois, escreveu a sua primeira canção – ou declaração de intenções –Mudjer na Rap (2016).
“Quando comecei a cantar em crioulo reconheci a minha tez. Ao reconhecer a minha cor, deixei de ter medo de dizer as coisas. Libertou-me”, disse Dino d'Santiago
O rap assume-se como instrumento imprescindível de expressão contestatária e esta presença feminina só veio reforçar a vontade cada vez maior de intervir e denunciar, de exprimir que são "a voz do povo, dos oprimidos", como diz Mynda. "Se estamos numa posição de destaque, é importante que tenhamos um papel ativo na nossa comunidade”, reforça, e assim o tem feito.
Nos últimos anos, apesar de jovem e de manter um trabalho diário num restaurante, tem sido incansável na sua mensagem e na produção de várias músicas, algumas com colaboração de outros artistas. Nas letras, predomina o crioulo. Trata-se, também, de uma opção política.
A artista, filha de cabo-verdianos, saúda o facto de o crioulo estar a ganhar um crescente protagonismo no contexto artístico português. “Essa criação de pontes entre as duas culturas é importante e enriquecedora”, manifesta.
Este impulso para usar o crioulo como voz maior é partilhado por Dino d’Santiago, que afirma que só descobriu o seu lugar na arte quando começou a compor na “língua de Cesária”. “Enquanto escrevia em português, era mais cerebral”, começa por explicar o músico. “Quando comecei a cantar em crioulo reconheci a minha tez. E, ao reconhecer a minha cor, deixei de ter medo de dizer as coisas. Libertou-me”. Conta-nos que foi precisamente nesse momento que descobriu o tom mais autêntico da sua voz, “a tal alma que procurava na soul americana ou na pop britânica”.
Essa libertação de que nos fala o cantor com raízes na Ilha de Santiago está, ainda, relacionada com a própria estrutura gramatical da língua de Cabo Verde, menos opressora. “A Grada Kilomba inicia o livro Memórias da Plantação com uma grande explicação em que relata que, ao tentar fazer a tradução da obra para português, sofreu horrores porque não via a inclusão que encontrou nas expressões inglesas. No crioulo também não existe essa predominância do género”, relata Dino.
As questões relacionadas com a desigualdade de género são, aliás, primordiais na agenda política do cantor. Chega mesmo a dizer: “Descobri finalmente qual é o meu ismo. Considero-me plenamente feminista”. Evidentemente, também Mynda posiciona esta luta no topo das suas prioridades, dentro e fora do meio artístico.
Embora admita que o percurso no movimento hip-hop é mais trabalhoso e penoso para as mulheres, isso não a demove. Antes pelo contrário: “Dá-me mais garra. Estou na luta todos os dias para que mais irmãs tenham vontade e força para se manterem e entrarem no game, sem medo”.
Estávamos ainda em 1974, no rescaldo quente da Revolução de Abril, quando o general Galvão de Melo, membro da Junta de Salvação Nacional, foi à televisão proferir: “A Revolução não foi feita para prostitutas e homossexuais”. A declaração tornou bastante claro quem teria acesso dificultado às portas que Abril abriu.
Este depoimento abre o vídeo que acompanha a canção Marcha do Orgulho (2019), da banda Fado Bicha. Numa tela pintada com as cores do arco-íris, contrapõem: “Filha, nós somos a Revolução”. São-no, de facto — trazem a dissidência nos corpos e a rebelião nas palavras.
O primeiro capítulo da história do Fado Bicha leva-nos até à Escola de Fado da Mouraria. Tiago Lila, que ali arriscava os passos inaugurais de um sonho ainda tenro, pretendia ensaiar Ai Mouraria.
Foi-lhe dito, no entanto, que o tema celebrizado por Amália não podia ser cantado por si. O problema prendia-se com alguns versos — “Ai, Mouraria/ Do homem do meu encanto/ Que me mentia/ Mas que eu adorava tanto” — que devem, segundo o cânone, ser interpretados pela voz de uma mulher.
Tiago desafiou a advertência. Pouco tempo depois, já longe daquela escola, fez nascer a Lila Fadista, “bicha ativista” com “rugir de leão”. A ela juntou-se João Caçador, guitarrista, para dar um pontapé no armário aristocratizado em que o fado parece continuar confinado.
“Durante muitos anos, fruto da socialização a que fui sujeito, acreditei, por exemplo, que não podia aceder ao amor”, afirmou João Caçador
Ocuparam o sagrado espaço da canção-hino portuguesa, Património Imaterial da Humanidade desde 2011, com o intento de invocar a sua génese “livre, marginal, ligada aos mais destituídos”. Lila explica que o ambiente inicial deste género musical era, na verdade, marcado pela subversão e pela denúncia da pobreza: “Sabemos que foi instrumentalizado pelo Estado Novo, para fins de propaganda nacionalista, mas essa apropriação aconteceu ao arrepio da tradição do fado anarcossindicalista e republicano que se instalou no final dos anos 1920”.
Trata-se, pois, de uma tentativa de devolver o fado à rua, mas não só. Fado Bicha traz para o palco as histórias não heteronormativas que sempre foram condenadas a ficar na sombra. “O facto de nós as duas não termos tido referências positivas LGBTQI+ no âmbito da esfera pública/artística, enquanto crescíamos, criou um sentimento de vácuo”, diz Lila. “Sentes que não há mais ninguém como tu no mundo, o que reforça toda a retórica que repete que estás estragada, que não há lugar para ti, que és uma aberração.”
Ao seu lado, João Caçador assente, acrescentando que a invisibilização das pessoas cuja identidade diverge da normatividade binária, cis e heterossexual, é nefasta e imobilizadora. “Durante muitos anos, fruto da socialização a que fui sujeito, acreditei, por exemplo, que não podia aceder ao amor”, exemplifica.
Ambas assumem, por isso, a urgência de reclamar um espaço onde possam existir em liberdade e plenitude. Na já mencionada canção dedicada à Marcha do Orgulho, que assinala o aniversário do motim de Stonewall, cantam: “Aqui e agora, pôr o pé no mundo/ Tirar a bandeira do armário/ É comunitário, num clamor rotundo/ Nem menos, nem mais/ Direitos iguais/ São muitas as cores desta minoria/ Em cada esquina, amigas”.
Apesar do carácter activista deste "fado-intervenção”, não tem dúvidas de que não poderiam fazer música que não fosse política.
“Enquanto corpos dissidentes, que albergam desejos dissidentes, somos políticas só por sairmos à rua. Qualquer música que fizéssemos, mesmo que não fosse abertamente panfletária, já seria uma forma de erguer o punho”, garante Lila.
Não é a única a assumir semelhante posição. No seu mais recente disco, Revezo (2020), Filipe Sambado propõe um exercício semelhante. Neste trabalho, revisita o folclore português, despindo-o da virilidade que tradicionalmente lhe está associada. Na sua ótica, trata-se de uma forma de inscrever a sua obra geograficamente, associando a esta “estética rica” um conjunto de “valores menos obsoleto”.
Uma apropriação que já vem de trás, explica-nos Hugo Castro, investigador do Instituto de Etnomusicologia (INET-md) e do Observatório da Canção de Protesto, ao ter sido empreendida por autores como José Afonso ou Fausto Bordalo Dias. “Em 1976/77, uma série de músicos passam a fazer canções muito ligadas àquilo que eram as expressões sonoras tradicionais”, esclarece, acrescentando que “vão às raízes do povo buscar essa base sonora, articulam-na com letras politizadas e voltam depois ao povo, como interlocutor primordial”.
O trabalho de Filipe bebe diretamente da influência desses “mestres” que considera, “de uma perspetiva contemporânea, a geração mais importante da música portuguesa”. À luz das portas abertas pelas vozes que cantaram e contaram Abril, garante que também a sua “reclamação mais constante é a liberdade”. Os seus três álbuns de originais estão, assim, repletos de preocupações políticas.
Basta ouvir Indumentária (2018), onde atira: “Gosto de vestir saia, de pintar os olhos e a boca/ Gosto que estejas calado/ Quando não tens nada pra dizer/ Parece que a liberdade tem um catálogo por escrever”. O tema da expressão de género é, na verdade, bastante assíduo na sua obra.
Em 2016, na canção Moda, já havia dito: “Corto o cabelo, aparo a barba/ E pinto as unhas também/ A condição desta pele é saber que ninguém/ A sente como eu nem a veste tão bem”.
Este posicionamento impulsionou a criação de um laço estreito entre o artista e a comunidade queer. Mas esta está longe de ser uma questão pacífica. Em momentos de maior exposição, como aconteceu aquando da sua atuação no Festival da Canção 2020, as mensagens de ódio, “descaradas e gratuitas”, multiplicaram-se nas redes sociais e, por vezes, com “contornos mais desconcertantes” na rua.
Essa violência tem repercussões diretas na sua vivência quotidiana. “Em dias em que tenho mais receio, em que estou mais ansioso, vou mais discreto e normativo para a rua. Quando estou confortável, arrojo mais. E no âmbito profissional é o mesmo”, revela. Neste contexto, afirmando que “já chega de desculpar a falta de informação e de empatia com o outro”, reitera a urgência de exigir que não se ceda lugar à recusa da diferença — “o oposto do que aconteceu com o caso da Gisberta, portanto”.
A 10 de junho de 2020, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, as Fado Bicha deram a conhecer a canção Vou dar de beber à desventura. Simbolicamente, dedicaram-na à memória de Alcindo Monteiro, assassinado a 10 de junho de 1995, “Dia da Raça”, pela extrema-direita.
Nesta versão do fado Vou dar de beber à dor, tecem um retrato afiado do deputado da extrema-direita portuguesa, “rei da solução meada” e “capitão do racismo”. No “país dos brancos costumes”, em que “calhou ao povo cigano/ aguçar os apetites”, afirmam ser imperioso voltar à “praça de gente madura”, munidos de bravura, empatia e “água ardendo nos fascistas”.
Por sua vez, em abril de 2020, o projeto El Sur decidiu convidar LBC Soldjah para, mais de três décadas depois, reacenderem a questão de José Mário Branco: Quantos é Que Nós Somos.
Nos versos grafados pelo rapper, em crioulo, a interpelação é reinventada: “Quantos éramos quando Abril foi golpeado?/ Quantos eram eles com cânticos, com odes aos bancos?/ Privatizaram tudo, agora tornaram-se santinhos/ (...) O vírus é o capital que nos aprisiona neste inferno”.
Joana Manuel, a vocalista da banda, justifica esta abordagem: “O fascismo é um recurso do sistema. Não é um assunto de copos de três, é um assunto de três copos à mesa. O financiamento do Chega mostra que é aos grandes poderes financeiros que o André Ventura interessa”. Na sua perspetiva, “independentemente do prefixo neo que se acople ao fascismo ou ao liberalismo”, estamos no mesmo ponto da luta há décadas, visto que “a maioria das pessoas continua a ser escolhida para produzir, e não para viver”.
Talvez por isso faça tanto sentido reavivar a obra dos ícones que marcaram a música de resistência aos fascismos do século XX. O projeto El Sur, hoje um quinteto, nasceu precisamente dessa constatação. Quem o recorda é Rui Galveias, o fundador e guitarrista. Depois de ter explorado meticulosamente o património dos cantores de Abril, decidiu encetar uma investigação sobre a música de intervenção da América Latina.
“Nessa pesquisa, rapidamente percebi a transversalidade de referências como Víctor Jara, Violeta Parra ou Daniel Viglietti”, relembra o músico, completando: “Além da dimensão panfletária das canções, muito ligadas aos processos revolucionários, são verdadeiras obras de arte”. A partir dessa aprofundada incursão, montaram então um repertório que homenageia e reinterpreta este cancioneiro universal.
Ainda que em coordenadas geográficas muito distintas, facilmente se percebe que os ícones da canção de protesto do século XX partilham os mesmos azimutes. A título de exemplo, enquanto Violeta Parra canta, em La Carta (1962): “Os esfomeados pedem pão/ A polícia dá-lhes chumbo”, José Afonso, na canção O que faz falta (1974), afirma: “Quando o pão que comes sabe a merda/ (...) O que faz falta é avisar a malta”. El Sur persegue este mesmo norte.
Publicaram o álbum de estreia, Todas as Sombras, em 2020. Um trabalho que nasceu, segundo Rui, da “necessidade de criar uma obra própria a partir desse legado histórico”, procurando assim “interferir na perceção que temos da realidade em que vivemos, para intervir nela”. Desse modo, num momento em que “foi dada voz ao elefante no meio da sala”, o guitarrista reforça a necessidade de se escolher um lado.
“Não há espaço no meio. Só há um extremo no racismo: é o racismo. O mesmo acontece com a desigualdade."
Joana Manuel acrescenta que “a ideia de que no centro é que está a virtude é uma ilusão”. A este respeito, recorda o caso de Paul von Hindenburg, o presidente alemão, “supostamente moderado”, que conduziu Adolf Hitler ao cargo de chanceler, em 1933. “Em tempos como os que vivemos, não vejo nada mais extremista do que essa suposta moderação”, argumenta. Com efeito, procura que a música que fazem se paute sempre pelo desígnio de “devolver às pessoas a noção de que não estão sozinhas e de que podemos fazer coisas quando nos juntamos. Pode ser arte, pode ser uma revolução”.
“Mesmo quando só fazes música para entreter, ou para distrair os ouvidos, não deixa de ser uma forma de intervenção. Estás é a intervir por outras coisas: a favor do capital, a favor do desligamento do sujeito com causas importantes”, diz a compositora Cátia Mazari Oliveira.
A cantora acredita ser fundamental que os músicos ofereçam voz ao seu inconformismo. Foi isso que fez quando, em abril de 2021, publicou Mediterrâneo, canção que se debruça sobre o drama dos migrantes que cruzam aquele mar. No refrão, canta: “Quero ser flor, que a guerra, amor, um dia há de acabar/ Quem pode crer que a invasão mata para salvar/ Forças em vão, e no mar que dói, há corpos a boiar”.
Por sua vez, quando Dino d’Santiago foi, no verão de 2020, convidado a atuar no estúdio da reputada plataforma Colors, optou por utilizar esse momento de exposição internacional para, também ele, abordar a funesta crise dos refugiados. Na canção Morna (2020), que escolheu para esse momento, ouve-se: “Deem-me uma morna/ Para aliviar esta dor/ Neste mar de vida sem dó/ De um crioulo sem chão”.
“Quando o Colors me chamou, decidi falar da injustiça de um mundo em que, ao mesmo tempo que vários cruzeiros atravessam as nossas costas em passeio, muitos barcos levam cadáveres de pessoas que morreram à procura de segurança, por causa de fronteiras”, relembra Dino. O cantor sente o dever de usar os tempos de antena de que usufrui para marcar uma posição, procurando não sucumbir à “hipocrisia do silêncio e do medo de ferir suscetibilidades”.
Do mesmo modo, Filipe Sambado reconhece que existem vários artistas atentos a questões políticas e sociais, alguns deles com afinidades entre si. Porém, acredita que só se poderia falar de um movimento se houvesse cultura a germinar, com igual protagonismo, em todo o território nacional. “Como disse o Zeca Afonso, continuamos a tocar pelo país fora e a não encontrar música de lá. Vamos atuar a palcos um pouco por todo o lado, mas não vamos ter com artistas que façam música enraizada nesses sítios”, considera.
Em 1985, em entrevista a Viriato Teles, Zeca afirmava: “O que é preciso é criar desassossego. Quando começamos a criar álibis para justificar o nosso conformismo, então está tudo lixado!”. Quase 40 anos depois, Lila Fadista reitera: “O desconforto faz parte da nossa proposta. Queremos apresentar esse questionamento permanente, que acabará por trazer consigo uma fruição mais profunda da liberdade. É essa a utopia”.