Nunca se falou tanto sobre o acesso à cultura e da importância de todos se sentirem representados nas políticas culturais. Na senda do Plano de Direitos Culturais de Barcelona, questionamos a quem serve, neste momento, a cultura em Portugal.
No Outono de 2015, Madonna parava na O2 Arena, em Londres, para mais um concerto da tour Rebel Heart na Europa. Numa plateia repleta de fãs britânicos estava Tiago Fortuna, cuja adolescência tinha ficado marcada pela descoberta da música da proclamada rainha da pop. Tinha viajado de Lisboa para a ver. “Nesse dia tomei uma decisão: viver a minha vida de forma diferente; mais activa, mais autónoma, menos dependente. Eu ainda não sabia como é que ia fazer isso, só descobri nos anos seguintes, mas a decisão de mudar a forma como estava a viver, instigada pela arte, aconteceu ali.”
Em 2021, tomou uma decisão importante: fundou a empresa Access Lab, juntamente com Jwana Godinho, para garantir o acesso de pessoas com deficiência e S/surdas à cultura e ao entretenimento enquanto direito humano fundamental. Para Tiago Fortuna, que se desloca numa cadeira de rodas desde os quatro anos, a cultura sempre foi uma forma de “pensar mais além, ir mais além, fazer mais, fazer diferente”. Agora trabalha para que mais pessoas possam ter a oportunidade de ser impactadas da mesma forma que foi no concerto de Madonna, ou em peças de teatro que viu no Teatro Nacional D. Maria II e no Teatro São Luiz.
Na Constituição da República Portuguesa está expressamente escrito, no Artigo 78.º, que “todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural”. E que “incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais, incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio”. Mas estará o Estado a trabalhar para corrigir essas assimetrias? Que papel é que os decisores políticos podem ter?
Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.
No contexto português, o tema das políticas culturais ganhou destaque quando muitos profissionais do sector cultural ficaram em situação vulnerável por causa da pandemia e consequente paragem das actividades. Foi nesse período que artistas e técnicos se mobilizaram e reclamaram uma dotação orçamental maior para a cultura, medidas que assegurassem os seus direitos enquanto trabalhadores, um olhar renovado sobre a importância das artes e da cultura na vida democrática. “Esquecer a cultura é esquecer um país”, lia-se num dos cartazes da manifestação de Junho de 2020 em Lisboa.
Ao mesmo tempo, nunca se tinha falado tanto da importância da literatura, do cinema, da música, das artes. Confinadas nas suas casas, as pessoas assistiram a concertos pelas redes sociais, viram séries, descobriram espectáculos disponibilizados por teatros, e houve até quem lesse mais do que o normal - a rede de Bibliotecas de Lisboa, por exemplo, fez entrega de livros ao domicílio através do projecto Lx à sua porta. Foi também uma oportunidade para pensar nas questões ligadas ao acesso à cultura, e naquilo que falta fazer.
Por essa altura, o Plano Nacional das Artes já estava a ser implementado em algumas escolas. O projecto que junta os ministérios da Educação e da Cultura, aprovado em 2019, foi a última grande medida para tentar colmatar as desigualdades sociais, económicas, territoriais e de acesso à cultura. O objectivo é que as artes, e o pensamento artístico, estejam tanto numa aula de Educação Visual como numa aula de Matemática ou de Educação Física.
Em Maio de 2021, a propósito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, foi organizada a Conferência de Porto Santo, na Madeira. Resultou deste encontro a Carta de Porto Santo, um documento que se dirige a políticos europeus, organizações e instituições culturais e educativas, mas também aos cidadãos, para que “se responsabilizem pelo horizonte cultural comum”. Inês Câmara, co-fundadora da empresa Mapa das Ideias, foi uma das cabeças por trás do desenho desta carta, que teve também o contributo os comissários do Plano Nacional das Artes e de uma série de instituições culturais europeias, e que reconhece o valor da cultura na vida democrática dos países europeus.
“É muito importante que o problema seja reconhecido e que consigamos enunciá-lo publicamente”, diz - e quando fala em problema refere-se à desigualdade no acesso à fruição e criação cultural, mas também à falta de diversidade nos públicos, nas equipas de programação, nos elencos, nos lugares de decisão. “Há uns vinte anos não se falaria sobre isto, não era considerado um problema. Nós reconhecermos, enquanto sociedade, que é um problema, é um ponto de partida”, afirma a também membro da direcção da Culture Action Europe, uma associação que trabalha na promoção do diálogo do sector cultural nos diferentes países da Europa.
Mas se está detectado o problema e declarada a intenção por parte das instituições, como maximizar o impacto das soluções?
O Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020 trouxe a confirmação de que existem “significativas desigualdades no acesso à cultura”. O estudo mostra que a geração nascida no final dos anos 90 e início dos anos 2000 foi a que mais beneficiou com a formação artística adquirida em contexto escolar, e que a afeição das pessoas inquiridas às práticas artísticas amadoras é “tanto mais significativa quanto mais elevado é o seu grau de ensino”. Mas numa área que se quer tão abrangente quanto a cultura, há mais variáveis a ter em conta para uma identificação interseccional das falhas.
Perceber as desigualdades no acesso à cultura tem sido uma preocupação transversal a vários países e cidades europeias, entre as quais Barcelona se tem destacado. Para uma análise interseccional do perfil dos cidadãos com mais e menos acesso à cultura, a Câmara Municipal de Barcelona desenvolveu o estudo Encuesta de Participación y Necesidades Culturales de Barcelona. Este foi um dos primeiros passos na construção de um Plano de Direitos Culturais, com medidas concretas, para nivelar o acesso e a participação cultural.
Na metodologia optaram por não só questionar as pessoas inquiridas quanto aos seus hábitos culturais e nível de ensino, mas também quanto a aspectos relevantes da vida quotidiana - como o valor da renda da casa, correspondente a cidadãos de uma classe social mais privilegiada. A percentagem de barceloneses com rendas altas que assistem a actividades culturais, 71,9%, contrasta com os 49,7% com rendas baixas. No entanto, no que diz respeito à prática artística, a diferença não é tão significativa: 38,3% das pessoas com rendas altas pratica algum tipo de actividade criativa, assim como 33,8% das pessoas com rendas baixas.
Este Plano de Direitos Culturais, apresentado em 2021, resulta de uma preocupação do executivo de Ada Colau, presidente da Câmara de Barcelona desde 2015, com o lugar da cultura em sociedades democráticas. “Se durante o século XX o direito à saúde e à educação foram as políticas-chave para contribuir para a igualdade e para a democratização social, no século XXI as políticas culturais são também centrais para seguir o aprofundamento desta democratização, reduzindo as desigualdades e ampliando os direitos e as oportunidades da cidadania”, lê-se no plano.
Assente em nove medidas governamentais, 100 acções concretas, 68 milhões de euros e um calendário entre dois a três anos de execução, o plano tem preocupações transversais, que funcionam como uma espécie de “coluna vertebral”: reconhecer a diversidade étnico-racial e cultural da cidade, garantir a equidade com uma perspectiva feminista, aproveitar as valências do digital e dos dados de acesso aberto para comunidades mais integradas, trabalhar pela sustentabilidade do sector cultural, tanto do ponto de vista ecológico como económico. No desenho deste projecto, não existem diferenças entre a dita cultura erudita e popular. Existe tanto uma preocupação com a valorização da cultura cigana e com a reestruturação do calendário de festividades, como com a revisão da política de preços e serviços dos museus de Barcelona.
Para cada uma das nove medidas governamentais, através das quais o plano se organiza, existem objectivos específicos a cumprir, com linhas de acção para os guiar. Entre eles, estão a definição de políticas culturais que promovam a cultura popular catalã a partir da consolidação das práticas existentes, a criação de grupos de trabalho que possam dar apoio a práticas artísticas comunitárias com valor público e que promovam a coesão entre os diferentes bairros, o desenvolvimento de projectos adaptados a cada território que possam ser postos em prática nos equipamentos culturais locais. As bibliotecas, por exemplo, são encaradas como um potencial espaço de encontro das comunidades, mas também como espaço de aprendizagem fora do horário lectivo das crianças e jovens.
Além dos pontos que se dirigem aos cidadãos, de uma forma geral, há também objectivos de actuação que envolvem profissionais da cultura - como a promoção do papel dos mediadores, o reforço da comunicação dos diversos intervenientes do sector livreiro, a oferta de espaços e recursos aos criadores para que possam difundir o seu trabalho e partilhá-lo com outros agentes culturais e cidadãos. E porque neste documento é central a noção de horizontalidade e igualdade de oportunidades, existe também uma preocupação em promover iniciativas que permitam que a criação e a difusão vão além do crivo dos gatekeepers dos circuitos culturais tradicionais e com mais visibilidade.
Para Daniel Granados, delegado de Direitos Culturais da Câmara de Barcelona, “as políticas culturais têm de estar ao serviço do que são os direitos da cidadania, da luta contra a desigualdade”. “Temos procurado fazer uma escuta activa para incorporar diferentes reclamações e sensibilidades no desenho deste plano. Começámos a trabalhar com muitos colectivos, entidades e empresas que há anos que estão a participar numa reflexão sobre políticas públicas para a cultura em Barcelona”, explica.
É nessas estruturas e colectivos, alguns deles historicamente invisibilizados, explica, que reconhece já um compromisso com a mudança no que diz respeito à diversidade da programação e das equipas. Tendo a Declaração de Friburgo (2007), marco fundamental na história das políticas culturais, como uma das referências-base do Plano de Direitos Culturais, o desafio era ir mais além.
“Reunimos alguns elementos simbólicos que representam algum tipo de inovação nesta reflexão - para que serve a cultura desde a perspectiva da luta contra as desigualdades e da vontade de favorecer a igualdade de oportunidades?”, explica Daniel Granados. A partir daí pensaram em “novos vínculos” entre “políticas culturais e tecnologia, entre tecnologia e ciência, cultura e educação, mas também entre cultura e trabalho”.
Ao contrário da relação entre centro e periferia, que tem estado em foco no debate sobre políticas culturais, este plano propõe que se adopte o conceito de “novas centralidades”. “Historicamente, a descentralização propõe que exista uma centralidade e que se desenhem programas culturais que cheguem a uma chamada periferia”, nota Daniel Granados. “O que estamos a fazer com este plano é reconhecer que nesta chamada periferia existe uma identidade cultural, ou identidades culturais, que vale a pena reconhecer. Há que garantir percursos para poder gerar novas centralidades culturais.” E se um plano tão ambicioso como este fosse pensado em Portugal, o que devia ser tido em conta?
Um dos dados fundamentais para a compreensão da ideia de diversidade étnico-racial e cultural no Plano de Direitos Culturais de Barcelona é a percentagem de pessoas que vivem na cidade e que nasceram fora de Espanha: neste último caso, 27,3%. Esta percentagem, obtida pelo departamento de Estatística e Difusão de Dados da Câmara de Barcelona em 2020, junta-se a outra igualmente relevante: mais de metade dos residentes de Barcelona nasceram fora das fronteiras da cidade.
Além disso, segundo o estudo de diversidade linguística da ONG Linguapax, citado no Plano de Direitos Culturais de Barcelona, ouvem-se nas ruas da cidade mais de 300 línguas diferentes. É também por isso que um dos objectivos do plano se dirige ao “reconhecimento da diversidade cultural, potenciando a equidade e pertença, e evitando reducionismos etnosimbólicos”.
Madalena Victorino está habituada a trabalhar esses valores. Foi pioneira na prática de artes na comunidade em Portugal e tem trabalhado sobretudo em territórios de baixa densidade populacional. Nos anos 80, regressada de Londres, mudou-se para Viseu, onde trabalhou com mulheres rurais a partir da obra de Pina Bausch. Nos últimos tempos, tem-se dedicado a projectos que visam também a inclusão de imigrantes no concelho de Odemira, vindos sobretudo do Nepal, Bangladesh, Índia e Paquistão, através de laboratórios performativos. Identifica-se com o conceito de “novas centralidades”.
Na sua perspectiva, pensar em direitos culturais implica desconstruir o conceito de cultura. “A primeira coisa a dizer é que todas as pessoas pertencem a uma cultura e têm uma cultura. Nós falamos de cultura pensando na arte e no valor que a arte pode ter no diálogo com a cultura que as pessoas já têm, e que muitas vezes nós não pensamos que elas têm”, elabora. “Mas têm: trazem uma herança consigo que é o local onde nasceram, a família de onde vêm, o contexto nacional em que estão, e o momento em que vivem.” E reconhecer isso é um passo importante.
A co-fundadora do projecto Lavrar o Mar não consegue descolar uma análise sobre a cultura em Portugal de uma “herança fascista” que deixou “espartilhada uma ideia de cultura popular que o Estado Novo quis promover e desenvolver de uma determinada maneira, com uma imagem específica do nosso país perante os outros, que uniu toda a população portuguesa, de Este a Oeste, de uma maneira artificial”. Interessa-lhe ressignificar, juntamente com as comunidades, essa ideia de “cultura”.
Mas também considera fundamental que se promova uma “prática cultural artística educativa que possa colocar todas as pessoas em pé de igualdade, sejam elas netas e filhas de quem forem”, diz. “Há ainda muito trabalho a ser feito nas pequenas e grandes cidades, no interior e no litoral.”
“Como é que a arte pode contribuir para uma aproximação entre estas culturas que têm abismos entre si, como é o caso do Paquistão em relação ao Alentejo? Acredito que é preciso dar uma atenção enorme a este problema. Ver como é que, de uma forma estrutural, se poderia de facto modificar uma série de procedimentos na presença de artistas dentro das escolas que pudessem contribuir para mudar esse paradigma”, propõe Madalena Victorino. “Quando as pessoas chegam a adultas pensam que a arte é entretenimento ou é demasiado intelectual e não lhes interessa. Não conseguem conectar-se.”
Seguindo esta perspectiva, a actriz e encenadora Isabél Zuaa gostava de criar um centro cultural na periferia de Lisboa. Foi lá que cresceu, no Zambujal de Loures, e que começou a exprimir-se artisticamente. Nos grupos de dança de que fazia parte, recriava coreografias de músicas tradicionais de Angola e do Senegal - lembra-se até hoje de actuar nas cidades vizinhas e da sensação de estar em palco. Acabou por perceber que era essa a sensação que queria reproduzir. Decidiu ir estudar teatro. Depois, seguiu para o Brasil à procura de outras oportunidades, e para fugir à precariedade. Hoje trabalha entre lá e cá, e uma das questões que mais a preocupa é o acesso das novas gerações a referências que estejam além das que chegam à periferia. “Vejo muito talento e criatividade que às vezes só precisa de uma inspiração. A cultura serve para nos inspirarmos, não só para fazer mais cultura, mas também para nos inspirar enquanto humanos.”
Para que existisse uma mudança efectiva nos direitos culturais em Portugal, Isabél Zuaa acredita que seria necessária “uma reorganização sócio-política" porque “não partimos do mesmo lugar”. Lembra que se as pessoas não têm a possibilidade de suprir as suas necessidades básicas, é “pouco provável que tenham vontade e a possibilidade de ter acesso à cultura”. “Se tens um trabalho extremamente complexo, com uma carga horária excessiva, estás preocupada em alimentar-te e alimentar os teus. Não tens a possibilidade e a predisposição para ir a um espetáculo”, nota a actriz.
Em Setembro de 2020, Isabél Zuaa, juntamente com Cleo Diára e Nádia Yracema, apresentava Aurora Negra no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Na peça falavam sobre a condição de ser uma mulher negra artista e a invisibilidade a que os seus corpos sempre foram relegados. O espectáculo acabou por se tornar precisamente no oposto: num dos momentos de maior celebração da representatividade em palcos portugueses. O mesmo aconteceu com Cosmos, a sequela de Aurora Negra, que levou ao D. Maria II espectadores que nunca lá tinham entrado.
Em Setembro de 2020, Isabél Zuaa, juntamente com Cleo Diára e Nádia Yracema, apresentava Aurora Negra no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Na peça falavam sobre a condição de ser uma mulher negra artista e a invisibilidade a que os seus corpos sempre foram relegados. O espectáculo acabou por se tornar precisamente no oposto: num dos momentos de maior celebração da representatividade em palcos portugueses. O mesmo aconteceu com Cosmos, a sequela de Aurora Negra, que levou ao D. Maria II espectadores que nunca lá tinham entrado.
“Não é sobre quem está, mas quem falta”, diz Isabél Zuaa. “É importante as pessoas sentirem-se representadas nos espaços culturais e sentirem que são convidadas (e bem-vindas) a pertencer àquele teatro e àquele grupo. Como público, mas também em postos de poder, decisão e programação. O espectro só se pode ampliar com a multiplicidade de corpos e vivências nesses espaços.” E para que as pessoas se sintam convidadas, a comunicação é fundamental.
O mesmo diz Tiago Fortuna, do Access Lab. “A falta de informação é logo o primeiro passo para a exclusão.” No caso da acessibilidade aos espaços culturais por pessoas com deficiência, as possibilidades são ainda mais baixas. As visitas a museus com audiodescrição e Língua Gestual Portuguesa são feitas, na maior parte das instituições portuguesas, mediante marcação ou em dias especiais. Há muito poucos recursos informativos em braille. O acompanhante tem, grande parte das vezes, de pagar um bilhete de valor igual ao da pessoa com deficiência que for assistir a um concerto. Nem sempre os transportes públicos estão adaptados a pessoas com mobilidade reduzida, mesmo em grandes cidades como Lisboa e Porto.
Tiago sabe algumas das propostas que faria caso se assumisse o compromisso de desenhar um plano de direitos culturais em Portugal: promover a literacia para a deficiência e formar profissionais do sector cultural; rever a acessibilidade das infraestruturas, que muitas vezes não têm casas de banho adaptadas nem as plataformas necessárias; repensar a forma como se comunica a programação para que a mensagem chegue a todas as pessoas; e a isenção de IVA para os bilhetes da pessoa com deficiência e do seu assistente pessoal/acompanhante como “um benefício dado a todos os promotores que seguissem essa política de boas práticas”.
Porque um plano de direitos culturais teria de passar também por rever as condições dos profissionais da cultura, Isabél Zuaa gostava que se reavaliassem os processos de candidatura a apoios que, muitas vezes, resultam em objectos artísticos criados em tempo recorde. Com pouco tempo e pouco dinheiro, tem sempre a sensação de que está “a começar do zero”. “Ser artista é muito complexo, ser artista mulher mais ainda, ser artista mulher e negra é três vezes mais”. Olhando para trás, está certa de que a ida para o Brasil lhe trouxe outra visibilidade. Não quer que seja assim para as novas gerações de artistas mulheres negras.
Daniel Granados chama-lhe “direito à participação”. No Plano de Direitos Culturais de Barcelona, a participação divide-se em dois eixos. “Por um lado, a participação tem a ver com a capacidade de exerceres a tua identidade cultural, seja ela qual for, com uma perspectiva absolutamente diversa e transversal”, diz. “Por outro, a participação dos própriossectores culturais, dos que se dedicam à economia produtiva da cultura e que não tem muitas vezes as condições mínimas para poder participar em condições dignas.”
Quando as condições para criar não são convidativas, muitas vezes pensa-se num plano B. Para que ser artista também possa ser um plano A, Inês Câmara acredita que em Portugal é preciso garantir a protecção dos trabalhadores das artes, e relembra que no novo Estatuto dos Profissionais da Cultura também está considerado o direito das pessoas como produtoras de cultura. Na hipotética construção de um plano de direitos culturais em território nacional, aponta para as responsabilidades das autarquias. “Faria sentido isto partir dos municípios, que podem convidar os cidadãos a entrar e a discutir o que querem para a sua cidade, para o seu território”.
Mas esta ligação com os municípios não tem de ser óbvia, como mostra a iniciativa catalã. Uma das formas de garantir a sua realização é a utilização de plataformas digitais, bem como a criação de projectos em paralelo, que respondam aos desafios previamente encontrados. Daniel Granados conta que, neste momento, se está a estudar a possibilidade de utilizar a plataforma participativa Decidim para abrir a programação à comunidade. Com Arxius Oberts, um projecto que trabalha na reflexão
e construção de arquivos culturais digitais de forma comunitária, têm conseguido promover o património e a literacia digital. No Outono, vão implementar um projecto piloto pensado para mulheres que são mães, já que um dos dados que recolheram indicava que muitas mulheres deixam de ir a espaços culturais nos primeiros anos dos filhos.
“A única forma de garantir que respondemos às necessidades é criando estruturas dentro da administração pública, cuja função principal é fazer um seguimento exaustivo do cumprimento do plano”, explica o delegado de direitos culturais.
Num artigo de opinião para o jornal espanhol El Periodico, Daniel Granados falava de como o sucesso da catalã Rosalía podia criar uma sensação de que “se quiseres, consegues”. Mas a verdade é que, nas suas palavras, sem a oportunidade de aceder à formação extra-curricular e superior, e a capacidade de participar activamente no ecossistema cultural da cidade, Malamente [o single que catapultou Rosalía para o circuito internacional] seria apenas um advérbio. Em Portugal, Tiago Fortuna espera que também mais pessoas possam “imaginar e criar um futuro diferente”, que só é possível, entre outras coisas, garantindo um acesso à cultura realmente transversal. Sonha com o dia em que todas as pessoas possam ser tocadas por objectos ou manifestações artísticas, como aconteceu com ele naquela noiteem Londres, no concerto de Madonna. E que tenham condições para ir mais além. Não só sonhar, mas ir.
Parceria MIL Magazine/Setenta e Quatro. O artigo foi originalmente publicado segundo as regras do antigo acordo ortográfico.
Apoiar
o Setenta
e Quatro
O Setenta e Quatro precisa de leitoras e de leitores, de apoio financeiro, para continuar. Em troca damos tudo o que tivermos para dar. Acesso antecipado às edições semanais e às investigações, conversas e publicações exclusivas, partilha de ideias e muita boa disposição.