Muito antes das redes sociais, já a Internet se organizava na resistência às lógicas e aos danos do capitalismo. Mas à medida que se torna mais uma peça do sistema, qual o papel das comunidades ali erguidas?
“O software permitiu, nas últimas décadas, uma explosão maravilhosa na produção artística de todo o tipo. Hoje é quase imprescindível para muitíssimas disciplinas: de um processador de texto a um editor de vídeo, de um programa de manipulação de imagens a ambientes de programação para artes em novos meios. Esse software é, na maioria das vezes, propriedade de empresas multinacionais. Custa enormes somas de dinheiro e não sabemos como é feito. Isto implica uma barreira económica e epistemológica.”
Estas palavras de Jorge Gemetto, codirector do Ártica – Centro Cultural Online, sediado na América Latina, resumem a inevitabilidade tecnológica dos nossos dias. Se é certo que o avanço galopante desta área se tem traduzido na democratização do consumo e da produção culturais, por cada camada adicional de benefícios e de complexidade acresce uma outra, sub-reptícia, no modo como cada novidade tecnológica se apresenta e se instala no nosso quotidiano.
Para Cairo Braga*, artiste musical e audiovisual brasileire a residir em Portugal, a revolução tecnológica foi também uma revolução na sua vida. “Só faço música, rádio e trabalho audiovisual de maneira autodidacta, desde os 12 anos, graças aos meios tecnológicos a que tive acesso. A tecnologia não é apenas uma ferramenta de liberdade mas também um meio de expansão de mundos”, diz o artiste, que produz e edita música a título independente há mais de uma década, tendo sido o fundador da editora digital Elegant Elephant, entretanto desativada.
Somos seguidos a cada instante: nas redes sociais, nos sites que visitamos, nas conversas que temos, no simples acto de termos o smartphone ligado quando saímos de casa.
Passados quase vinte anos desde o início do seu enamoramento pela produção musical, mantém uma relação íntima com as máquinas. No entanto, actualmente valoriza mais a tecnologia livre e descentralizada, detalhando que as encara “como o mais perto que já chegámos de uma aplicação de conceitos anarquistas, comunistas, socialistas e coletivistas na internet enquanto (super)estrutura e não apenas como meio, que é sempre o foco do discurso da grande imprensa e dos media quando o assunto é a rede mundial de computadores”, considera. “Isso acontece porque se as pessoas forem incentivadas a pensar na web como uma (super)estrutura, o poder dos media corporativos dominantes entra em cheque e em choque.”
Dos dispositivos que usamos aos serviços essenciais, esta ideia de “superestrutura” reflete-se no facto de a maior parte do que acontece na web estar nas mãos de pouco mais de uma dúzia de empresas, todas elas megacorporações com volumes de negócio maiores do que o PIB de muitos países – gigantes como a Google e a Microsoft atingiram lucros históricos no segundo trimestre deste ano, 62 mil milhões de dólares e 46,2 mil milhões de dólares, respetivamente. O progresso desenha-se com assistentes virtuais que comunicam como se fossem pessoas, com electrodomésticos ligados à internet 24 horas por dia, com a possibilidade de controlar quase tudo à distância.
Contudo, o reverso da moeda é a recolha permanente dos nossos dados. Ou seja, a vigilância permanente. Somos seguidos (e moldados) a cada instante: nas redes sociais, nos sites que visitamos, nas conversas que temos (não é por acaso que nos aparece no telemóvel publicidade ou outro tipo de conteúdo relativos a assuntos sobre os quais estivemos a falar nessa mesma hora), no simples ato de termos o smartphone ligado quando saímos de casa.
“Enquanto no mundo físico há limites, inclusive espaciais, para as arquiteturas de persuasão, digitalmente elas podem ser construídas em escalas gigantescas”, escreveu Amanda Chevtchouk Jurno no artigo Plataformas, algoritmos e moldagem de interesses, publicado na revista brasileira Margem Esquerda (ed. Boitempo).
“Quantos mais dados a plataforma coletar, melhor vai compreender os comportamentos dos usuários e poderá gerar previsões e modelos mais acurados”, sintetizou a jornalista e investigadora, aludindo àquilo a que se chama de “dataísmo”, conceito forjado pela professora holandesa José van Dijck. No fundo, “os dados pessoais são o novo petróleo da Internet e a nova moeda do mundo digital”, como disse certeiramente a política búlgara Meglena Kuneva, à época comissária de Defesa do Consumidor da União Europeia.
A existência digital exige, portanto, uma negociação permanente entre o direito à privacidade e o nosso quotidiano, já que a rotina diária da maioria das pessoas se desenrola, inevitavelmente, numa sociedade em rede. Essa rede, que começou aberta, é hoje um silo de bolhas e jardins que se tocam cada vez menos, reforçando preconceitos e estreitando visões do mundo, excluindo quem não se consegue conectar – seja por incapacidade financeira ou logística, seja por impossibilidade de aprendizagem ou falta de acessibilidade técnica.
O capitalismo transformou-nos em minúsculas rodas dentadas que nunca param de girar, cedendo informação infinita a máquinas que determinam padrões no meio do caos aparente e reorganizam o mundo à nossa volta. Apesar de bem oleado, o sistema é opaco. Quem está de fora não sabe em que direcção gira a engrenagem nem quem a faz girar, nem onde estão as máquinas nem quem as governa. O vidro fosco que nos separa da tecnologia esconde incontáveis ataques aos direitos digitais de cada um.
Eduardo Santos, presidente da D3 – Defesa dos Direitos Digitais, uma associação portuguesa sem fins lucrativos, assinala que os “direitos digitais são direitos humanos”. “É uma categoria recente, que ganha alguma autonomia pela especificidade das questões que coloca, mas os direitos em causa são os mesmos”, observa. “Em algumas áreas até parece existir um retrocesso, sendo o caso mais evidente o da privacidade – um direito que não é contestado em relação à nossa vida offline, mas que está muito longe de ser garantido no que toca à Internet.”
A D3 tem trabalhado afincadamente na promoção de alternativas que não comprometam os direitos humanos no plano digital, tanto em tomadas de posição públicas como enquanto representantes da sociedade civil nos trabalhos legislativos, em contexto português e europeu, que impliquem este tipo de questões.
Neste campo do ativismo político em torno dos direitos digitais, importa também mencionar o Brasil, onde se tem notado uma consolidação nesse sentido de organizações da sociedade civil e da academia, muitas delas congregadas no coletivo Coalizão Direitos na Rede. Com base na Índia, mas com alcance global, há a Just Net Coalition, que reúne sindicatos e outras organizações dedicadas aos direitos digitais e cujo trabalho passa também por tópicos como a soberania alimentar, a justiça ambiental e o feminismo.
Ainda antes de a Internet ter uma World Wide Web, já a resistência ecoava por comunidades hackers ligadas à academia, infiltrando-se lenta mas vigorosamente pelas fileiras empresariais. Em 1984, Richard M. Stallman publicou o manifesto do software livre, dando início a um movimento de mudança que ainda hoje está a ser construído. Nesse texto, o activista, programador e hacker americano defende que o software deve garantir quatro liberdades a quem o utiliza: a de executar o programa, a de estudar o código, a de melhorá-lo e a de redistribuir esse produto melhorado.
Na altura, empresas como a Google ou a Amazon ainda nem sequer estavam no horizonte. A maior preocupação do então investigador do MIT era o entrincheiramento do software no hardware desenvolvido pelas fabricantes de computadores, mas a ideologia da liberdade do utilizador face às imposições da indústria perdurou.
O capitalismo transformou-nos em minúsculas rodas dentadas que nunca param de girar, cedendo informação infinita a máquinas que determinam padrões no meio do caos aparente e reorganizam o mundo à nossa volta.
Com o passar dos anos, o movimento do software livre evoluiu e, atualmente, a sua ramificação mais conhecida é o open source (código aberto). As implicações ideológicas de um e de outro são ligeiramente diferentes – na prática, todo o software livre é de código aberto, embora o contrário nem sempre seja verdade. É a abertura do código-fonte – o código informático que, de facto, é um determinado software – que garante, por um lado, que o software possa ser devidamente auditado, verificando-se se cumpre aquilo a que se propõe de forma segura, e, por outro, melhorado, num processo de colaboração contínua entre quem assim o desejar. A Internet fez com que a ideia de abertura se alastrasse a outras áreas, como a ciência, a educação ou a cultura.
“A cultura livre é um conjunto de práticas e é também um movimento social e cultural que põe ênfase no direito à participação cultural na Internet, o direito de partilhar cultura, de remisturar obras artísticas, adaptá-las, parodiá-las, criticá-las, recriá-las, torná-las comuns”, esclarece Jorge Gemetto. “Este movimento critica a propriedade inteletual e denuncia-a como um obstáculo para a liberdade artística. Não há cultura livre se houver propriedade sobre a cultura. E não há uma sociedade livre sem cultura livre.”
Assim, em todos os seus desdobramentos, a liberdade expressa-se na partilha legal e na possibilidade de adaptação. Em 2001, o salto tornou-se oficial, de certa forma, graças à criação das licenças Creative Commons, que vieram também mostrar um dos possíveis caminhos para tornar o digital um meio mais comunitário e horizontal.
A força da palavra comunidade impôs-se desde o início nos caminhos enredados pelo avanço das comunicações. E, durante algum tempo, era sobre ela que recaía a esperança da Internet enquanto espaço de democratização de oportunidades. Sem intermediários, o mundo podia ser a ostra de todos os criativos, que chegaram e impuseram-se em vagas sucessivas, dos blogues às redes sociais. Pelo caminho, outras tecnologias aliciavam o debate e a participação: fóruns, mailing lists e salas de chat onde se discutiam interesses, paixões e se projetavam alternativas a um sistema que claramente não servia para todos.
A criação e partilha de conhecimento e recursos comuns tornaram-se o pilar destes ajuntamentos. A experiência de Cairo Braga na comunidade netlabel é, nesse sentido, paradigmática. “É uma comunidade que ensina. Foi lendo e acompanhando as netlabels que eu aprendi como começar uma e foi essa comunidade que me acolheu e ofereceu um mundo novo de cultura livre, descentralizada, onde há espaço para todas”, afirma. “Eu espero que dure para sempre, pois a comunidade das netlabels profetizou a digitalização total e irrestrita da música que vivemos hoje.”
“A tecnologia tanto pode ser uma aliada dos direitos humanos como pode levantar novos problemas que não eram previsíveis ou antecipáveis”, lembra Eduardo Santos.
Unidos por uma língua comum, o espanhol, o movimento da cultura livre ibero-americano assume contornos e uma relevância transnacionais. Organizações como a Nodo Común ou o Coletivo Disonancia rejeitam categorizações limitadas apenas a um país e operam como comunidades virtuais deslocalizadas, divulgando e promovendo ferramentas tecnológicas livres, éticas e seguras, com uma variedade de recursos online, incluindo documentação técnica para iniciantes.
No já referido Ártica – Centro Cultural Online, fundado em 2011, organizam-se cursos, seminários, exposições e congressos; uma panóplia de atividades pensadas de raiz para um ambiente exclusivamente online. O seu codirector, Jorge Gemetto, reconhece que a pandemia da Covid-19 “mostrou muitas vezes a pior cara das atividades online”, mas realça que, em boa parte, foi porque se tentaram replicar os modelos dos eventos físicos num espaço com outro tipo de caraterísticas.
Para Gemetto, uma das grandes vantagens do digital é fazer “confluir, no mesmo grupo, pessoas de diferentes cidades e países, com tudo o que isso implica em termos de diversidade”. E acrescenta: “podemos aproveitar a inteligência coletiva para gerar mapeamentos, pesquisas e criações colaborativas de todo o tipo. Podemos partilhar recursos, organizá-los, criar bibliotecas e repositórios”. Ainda que não sejam iguais às que se organizam presencialmente num bairro ou numa cidade, estes acontecimentos ajudam a criar e a fortalecer comunidades, naquilo que considera ser um “aspeto muito rico e libertador [da nossa vida cultural]”.
Recentemente, o Ártica passou a integrar a Red de Espacios Culturales del Sur (RECS), sendo o único espaço virtual nessa rede. Surgida em 2020 como resposta à emergência sociocultural imposta pela pandemia, a RECS é uma organização que integra espaços e gestores culturais de sete países da América Latina.
Para lá da cultura, sabemos que as desigualdades políticas, sociais e económicas do mundo presencial tendem a ser replicadas e amplificadas no digital. Do outro lado do Atlântico, a resistência tecnológica ergue-se à volta de comunidades cujo destino é traçado à medida de um futuro cada vez mais periclitante.
Nas Américas Central e do Sul, coletivos feministas como o Barracón Digital (Honduras), Luchadoras (México) ou o Coding Rights (Brasil) têm desenvolvido conteúdo e programas de fortalecimento de competências em torno de questões como o software e a cultura livres, os direitos digitais ou a autonomia de infraestruturas (como servidores, routers e outros tipos de equipamento) enquanto formas de sobrevivência comunitária em regimes e espaços cada vez mais opressivos e antidemocráticos, tanto no online como no offline, em que as banalidades invasivas do corporativismo tecnológico podem ter um custo demasiado alto.
O software livre é a escolha primordial para quem precisa de saber que os seus dados não serão partilhados com terceiros, ou que não haverá sequer uma recolha indevida dos mesmos.
É importante sublinhar que as mulheres estão particularmente expostas à violência digital, num cenário que não dá sinais de mudança. O Web Index, um relatório da organização Web Foundation que mede as contribuições da web para o desenvolvimento social, económico e político em várias regiões do mundo, indica que 74% dos países não têm implementadas medidas legais adequadas ao combate contra a violência de género online. Nos coletivos já mencionados, e em muitos outros, ensina-se e aprende-se sobre como ter uma existência digital mais segura, fomentando a capacitação técnica de mulheres e outros grupos mais vulneráveis, como pessoas não-binárias e LGBTQI+.
Estes programas estão maioritariamente focados na divulgação de práticas e ferramentas mais seguras, da encriptação de mensagens às plataformas de comunicação, complementados com actividades presenciais em comunidade. O software livre é a escolha primordial para quem precisa de saber que os seus dados não serão partilhados com terceiros, ou que não haverá sequer uma recolha indevida dos mesmos. A natureza voluntária destes coletivos, bem como a necessidade de proteger as suas intervenientes, poderão explicar por que não conseguimos que respondessem aos nossos pedidos de entrevista.
Cimentadas no movimento hacker, são também várias as iniciativas que têm apostado na oferta de alternativas no que diz respeito à infraestrutura. É o caso da CódigoSur (têm sede jurídica na Costa Rica, mas tentáculos por toda a América Latina e o Caribe), um coletivo com elementos de diferentes movimentos sociais cujo objectivo é também promover a soberania digital, o uso e o desenvolvimento de tecnologias livres sob uma perspetiva de género e espaços de debate sobre estes temas. Garantem serviços de alojamento, de comunicação, de armazenamento de dados, entre outros, assentes no software livre e longe das grandes corporações tecnológicas.
No Brasil, a servidora independente Vedetas disponibiliza software livre em rede, nomeadamente Ethercalcs e Etherpads (folhas de cálculo e blocos de notas colaborativos, respectivamente), a grupos feministas que precisem de alternativas que não comprometam a sua privacidade.
De resto, convém não esquecer que “a tecnologia tanto pode ser uma aliada dos direitos humanos como pode levantar novos problemas que não eram previsíveis ou antecipáveis”, lembra Eduardo Santos, da D3. “Existem formas de tentar dar resposta a esses problemas, incluindo a via legal, mas nenhuma é tão eficaz como integrar visões e preocupações relativas aos direitos humanos logo no momento de concepção de qualquer tecnologia.”
O ativismo pela cultura livre na América Latina é igualmente visível na área da música. Foi no Chile que se arquitectou o Netlabel Day. Desde 2015, dezenas de netlabels aproveitam o dia 14 de julho para lançarem centenas de novos registos fonográficos, numa celebração da música livre que conta com participantes de mais de 30 países, em quase todos os continentes.
Apesar de ter dado como encerrado o projecto da Elegant Elephant por falta de tempo, em 2021 Cairo Braga reavivou temporariamente a editora para assinalar o Netlabel Day pelo sexto ano consecutivo, produzindo em velocidade relâmpago um novo EP, intitulado Ultimatum/ Imediatum.
Este evento talvez seja um grão de areia na construção de uma alternativa digital à distribuição de música atualmente, mas está longe de ser o único. Afinal, lembra Cairo Braga, “a pandemia expôs como o modelo de negócio do streaming, que nada mais é do que as majors mantendo o status quo e sua posição de poder, afunila ainda mais as possibilidades de se viver da música”.
Há, no entanto, quem se atreva a repensar e a tentar modelos de negócio e estruturas mais justas, tanto para os artistas como para quem os apoia (e que vão além do Bandcamp, o caso mais mediático). A plataforma de streaming Resonate (Alemanha) funciona como uma cooperativa que pertence a artistas, ouvintes e aos trabalhadores da empresa. No activo desde 2015, baseia o seu modelo de negócio numa lógica de stream2own, em que ao fim de nove audições a faixa está paga e é como se quem a ouviu a tivesse comprado.
Já nos EUA, um grupo de 30 compositores e instrumentistas avant-garde também escolherem a via cooperativista, lançando o seu próprio microserviço de streaming no início deste ano. O Catalytic Soundstream distingue-se pela curadoria do conteúdo, bem como pela exclusividade de muito do que lá se pode ouvir, retirando intermediários do processo de distribuição.
Mas o direito à cultura (e, naturalmente, à música) é mais do que um modelo de negócio. Para a programadora e ativista Esra'a Al Shafei, do Bahrein, pequeno arquipélago no Golfo Pérsico, “a música é mais do que uma expressão criativa: funciona como uma ferramenta social que amplifica movimentos por justiça e a voz de comunidades marginalizadas”.
Em 2010, criou o MidEast Tunes, uma plataforma de streaming orientada para músicos independentes do Médio Oriente e Norte de África, cujos trabalhos são muitas vezes censurados nessas regiões. Financiado por donativos individuais, por bolsas atribuídas pelo Arab Culture Fund e por fundos da União Europeia, este serviço é de acesso gratuito e não exige registo de conta, de maneira a assegurar a privacidade dos ouvintes.
Esra'a Al Shafei faz questão de sublinhar que o software de código aberto é a base de todo o seu trabalho e que “a tecnologia tanto pode ser usada para instaurar censura como para lutar contra ela”. É uma faca de dois gumes. “Dependemos de plataformas de comunicação encriptadas e ferramentas anonimizadas, mas elas têm de ser devidamente auditadas e mantidas, de modo a evitar que sejam comprometidas”, esclarece. “Daí que criar recursos anti-censura e anti-vigilância tecnológica seja um dos passos mais importantes que podemos dar enquanto sociedade, para prevenir a normalização deste policiamento constante das nossas actividades online”.
Do lado dos artistas, Esra'a Al Shafei afirma que a recepção tem sido bastante positiva, já que a plataforma lhes oferece uma exposição alargada, incluindo na imprensa local e internacional, chegando a públicos dificilmente alcançáveis de outra forma.
Para lá da distribuição, artistas como Moritz Simon Geist ou Khyam Allami têm desconstruído o processo de composição musical, alargando perspetivas e possibilidades. Geist desenvolveu robôs-instrumento capazes de compor e tocar as suas próprias obras, como já aconteceu em instalações e performances apresentadas no Museu da Ciência em Milão ou na Filarmónica de Paris.
Já Allami refuta a ideia de que existe uma neutralidade tecnológica na criação musical ancorada em ferramentas digitais, focando-se na hegemonia ocidental dos fabricantes deste tipo de software. Isso reflecte-se, por exemplo, na má implementação de microtonalidades habitualmente presentes na música tradicional árabe, apesar de protocolos como o MIDI estarem bem preparados para estas variações.
Tal como as desigualdades sociais não foram apagadas pelo digital, também as lógicas colonialistas do capitalismo são replicadas com tenacidade neste contexto. O Ocidente, mais concretamente os EUA, domina a Internet com prejuízo significativo para a região Sul.
À medida que as principais megacorporações tecnológicas – denominadas por GAFAM, ou seja, Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft – se apropriam de conjuntos gigantescos de dados, informações sobre os consumidores, ferramentas e conhecimento, fechando-os como maneira de os controlar e de aniquilar potenciais concorrentes, países com menos recursos económicos ficam à sua mercê, na ânsia de não poderem ficar para trás num mundo inevitavelmente digitalizado.
Urge minimizar as desigualdades de acesso e os fossos na literacia, sem descurar que os caminhos escolhidos para o desenvolvimento tecnológico definem partes fundamentais da nossa coexistência enquanto cidadãos.
“Em países como a Índia ou o Brasil, milhões de pessoas acreditam que o Facebook é sinónimo de Internet”, nota Cairo Braga, salientando um dos efeitos perniciosos desta hegemonia. Totalizando mais de 1600 mil milhões de habitantes, tanto um como o outro são dos maiores mercados digitais em expansão, algo fundamental para um sistema que favorece o crescimento do lucro.
Paralelamente, gigantes tecnológicas chinesas, como a Tencent e Alibaba, disputam acerrimamente com as GAFAM o domínio sobre a infraestrutura digital do continente africano, onde, segundo as estimativas do Banco Mundial, apenas 22% da população tem acesso à Internet.
Urge, assim, minimizar as desigualdades de acesso e os fossos na literacia, sem descurar que os caminhos escolhidos para o desenvolvimento tecnológico definem partes fundamentais da nossa coexistência enquanto cidadãos num mundo permanentemente ligado. Neste contexto, Cairo Braga não tem dúvidas: “É por isso que esse tipo de alternativas [livres] é importante. E fica mais interessante ainda quando notamos que a questão da Internet descentralizada e focada na privacidade se fortaleça e ganhe mais espaço justamente quando a Internet corporativa do capitalismo neoliberal se torna pior, mais sufocante e cancerígena a cada dia.”
Essa dinâmica “reativa”, diz Cairo, dá-lhe “esperança, até utópica”, de que é possível “salvar a Internet” e resignificar o relacionamento que temos com ela e que temos uns com os outros, através dela. No fundo, “transformá-la, de facto, numa rede.”
As Creative Commons são licenças públicas de direito de autor e direitos conexos criadas especificamente para o contexto digital. De livros a filmes, de música a fotografia, hoje existem mais de dois mil milhões de trabalhos licenciados sob Creative Commons, o que significa que têm apenas alguns direitos reservados. Ou seja, podem ser livremente partilhados e distribuídos mediante as condições definidas pelo próprio autor – entre elas incluem-se, ou não, a obrigatoriedade de atribuição de autoria, restrições a utilizações com fins comerciais ou a criação de derivações da obra em causa.
Esta modularidade desdobra-se num total de seis licenças, umas mais permissivas do que outras, e uma marca de domínio público para quem queira abdicar de todos os direitos. As Creative Commons tornaram-se particularmente populares junto de instituições ligadas à educação e à preservação cultural, como universidades, bibliotecas ou museus, mas também em circuitos artísticos de produção independente.
Cairo Braga reconhece neste sistema “um modelo alinhado na ética e na prática com a realidade material da cultura na Internet”. Espelha a sua “transformação constante e até caótica”, além de ter “um elemento que incentiva à colaboração, à colectividade, e que combate certos conceitos capitalistas e colonialistas de posse e propriedade no âmbito da cultura, simultaneamente respeitando o papel dos autores de uma maneira que ultrapassa a questão do dinheiro”.
Em 2012, quando ainda vivia na sua cidade natal, São Paulo, Cairo fundou a Elegant Elephant, que editava sob Creative Commons, apresentando-se como uma netlabel queer e “uma experiência faça-você-mesmo” que visava “proporcionar a artistas não-homens-não-cisgénero-não-hétero espaço e acesso a meios de distribuição digital de música”. No seu manifesto aparecia bem sublinhado: “acreditamos em comunidade”.
*Cairo Braga assume-se como pessoa não-binária, por isso utilizamos “artiste” em vez de “artista” e “brasileire” em vez de “brasileiro/a” de modo a empregar o género neutro.
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