Um documento da Comissão Europeia que esta quinta-feira começou a circular em Bruxelas, e a que o Setenta e Quatro teve acesso, pede aos Estados-membros que não sejam demasiado rigorosos na transposição de uma diretiva comunitária sobre transparência fiscal de grandes grupos económicos. Eurodeputados exigem explicações e recuo.
Em 2021, travava-se uma batalha silenciosa no seio da União Europeia em torno de uma diretiva comunitária sobre transparência fiscal de grandes multinacionais. De um lado, países fiscalmente mais agressivos e poderosos grupos de lóbi empresarial arrastavam os pés e tentavam diluir as propostas e, do outro, ativistas e outros países tentavam o que podiam para que algo fosse aprovado.
O resultado foi uma meia vitória. De acordo com a diretiva 2021/2201, todas as empresas com faturação anual superior a 750 milhões de euros devem apresentar dados sobre quantos impostos pagam em cada um dos Estados-membros em cada uma das “jurisdições não-cooperantes”, ou seja, essencialmente offshores onde imperam o segredo e a opacidade.
O objetivo era obrigar as grandes multinacionais a serem mais transparentes, saber se pagam os impostos onde criam a sua riqueza e trazer à luz do dia os esquemas de transferências de capitais para “otimização fiscal”.
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Alex Cobham, que lidera a organização não-governamental Tax Justice Network, explica a importância da medida: “tornar esta informação pública, seria, essencialmente, colocar as multinacionais em pé de igualdade com os pequenos negócios domésticos que já são obrigados a publicar as suas contas". "Trata-se apenas”, continua Cobham, “de saber onde as multinacionais arrecadam receita e quanto dos seus lucros declaram e pagam em cada país”.
Mas, durante as negociações, surgiram notícias de que a posição oficial de França tinha sido redigida pela maior organização patronal do país, a MEDEF, o que demonstrou a resistência das grandes empresas e os interesses em causa.
Já antes disso, o poderosíssimo grupo de lóbi BusinessEurope, que representa os interesses das organizações patronais europeias e os interesses específicos de várias multinacionais, tinha exercido influência para travar a iniciativa.
Isto incluiu nomear António Saraiva, na altura presidente da portuguesa Confederação Empresarial de Portugal (CIP), vice-presidente. O objetivo da nomeação seria abrir canais de comunicação entre os lobistas e o governo português, que na altura presidia ao Conselho da União Europeia.
Com estas desconfianças a surgirem, a versão aprovada da diretiva acabou por ser algo tímida, mantendo-se no entanto a sensação de que seria um pequeno passo para uma maior transparência e justiça fiscais no espaço europeu. Na altura, Ibán Garcia Blanco, eurodeputado espanhol pela Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), garantiu que a diretiva iria trazer melhorias. “As coisas vão começar a melhorar a partir do momento em que a regra for implementada. Tenho certeza disso,” e acrescentava “acho que o mais importante é que abrimos uma porta.”
Mas nem todos alinhavam nas suas esperanças. Quem estava a par das negociações não estava optimista em relação ao que delas iria resultar, mesmo que a medida fosse aprovada. “De um ponto de vista legislativo, quando estas portas se abrem ficam abertas para sempre. O caminho à nossa frente é apenas no sentido de melhorar a diretiva. Dependerá da vontade política se se tornará mais ambicioso ou não, mas teremos algo que não tínhamos antes”, disse Garcia Blanco.
No entanto, a Comissão Europeia está agora a fazer trabalho de bastidores para garantir que os Estados-membros, ao transporem a diretiva para os respetivos sistemas jurídicos nacionais, não optem por ir além do que já foi acordado, ou seja, para que não implementem regras mais rigorosas e de maior transparência.
Isso mesmo é bastante explícito num documento da Comissão Europeia que começou a circular esta quinta feira em Bruxelas a que o Setenta e Quatro teve acesso. O órgão executivo do projeto europeu alerta os Estados-membros para os impactos preocupantes que poderão surgir caso alguns Estados-membros queiram ir mais longe no aumento da transparência fiscal ao transformarem a diretiva numa lei nacional.
“Os Verdes/ALE estão indignados ao ver que os Estados-membros estão impedidos de implementar medidas mais ambiciosas pela Comissão Europeia”, disse ao Setenta e Quatro Ernest Urtasun, eurodeputado espanhol dos Verdes/Aliança Livre Europeia.
A exortação da Comissão Europeia aos Estados-membros foca-se sobretudo em quatro áreas que considera essenciais, sob pena de fazer recair sobre as multinacionais o peso de terem de cumprir regras diferentes em países diferentes.
A Comissão Europeia alerta os Estados-membros para os impactos preocupantes que poderão surgir caso alguns Estados-membros queiram ir mais longe no aumento da transparência fiscal ao transformarem a diretiva numa lei nacional.
O primeiro alerta tem a ver com o limite acima do qual é obrigatório as empresas fazerem uma declaração. Se a diretiva estipula 750 milhões de euros, os Estados (os governos ou os seus parlamentos) que pretendam baixar este valor de forma a incluir empresas com menos faturação estarão impedidos de o fazer.
Em Portugal, o limite de 750 milhões abrangeria cerca de 30 empresas, deixando de fora gigantes como a Peugeot/Citroën, a EDP Gás ou a Mota Engil, com receitas anuais acima dos 600 milhões mas abaixo do proposto pela diretiva.
A Comissão também não veria com bons olhos se algum dos governos quisesse alargar o número de países a incluir nos relatórios. Este ponto é particularmente relevante porque, por um lado, a lista de países não cooperantes muda todos os anos e é frequente haver críticas por não obedecer a critérios claros e objetivos. Por outro lado, a diretiva deixa de fora importantes offshores como Belize, Seychelles, Ilhas Caimão ou Emiratos Árabes Unidos, cujos trunfos são políticas fiscais agressivas e a opacidade.
Outro dos requisitos da Comissão tem a ver com a autoria dos relatórios de contas. Apesar de ser obrigatório os auditores indicarem se a empresa está ou não sujeita a apresentar o relatório discriminado país a país, os Estados-membros não poderão exigir às auditorias que incluam uma “opinião de auditor”, ou seja, uma avaliação sobre a veracidade da informação apresentada pela empresa.
Finalmente, e apesar de ser possível pedir às empresas informação suplementar, como o número de trabalhadores, de subsidiárias, etc., os Estados deverão abster-se de exigir das empresas mais informação além daquela expressamente discriminada na diretiva.
“Uma vez que a Diretiva se aplica a grandes grupos empresariais multinacionais que estão frequentemente envolvidos em altos níveis de comércio transfronteiriço e têm multiples estabelecimentos no território da União, é particularmente importante neste contexto que se garanta um alto grau de harmonia entre Estados-Membros de forma a garantir uniformidade e previsibilidade aos grupos empresariais multinacionais sujeitos à Diretiva”, lê-se no documento.
O eurodeputado Urtasun discorda. “1 de janeiro de 2021 foi um dia histórico para a transparência fiscal na Europa. Depois de anos de negociações e décadas de ativismo da sociedade civil, os legisladores conseguiram finalmente chegar a acordo em relação ao reporte público país a país”, disse. “Os legisladores concordaram num nível mínimo de transparência necessária, tendo em conta que seria necessária mais ambição para atingir uma verdadeira e completa transparência fiscal.”
Peritos em fiscalidade como Alex Cobham demonstram perplexidade perante esta iniciativa da Comissão, classificando-a como "preocupante". “Quando os eleitorados de muitos países estão zangados com os abusos fiscais das grandes empresas e apoiam totalmente maior transparência fiscal por parte de multinacionais - especialmente em tempos de pressão inflacionária e crescente pobreza -, as motivações que levam a Comissão Europeia a atar as mãos dos Estados-membros são tudo menos óbvias.”
As reações dos eurodeputados que defendem a implementação desta regra de transparência multiplicam-se. Manon Aubry, eurodeputada francesa do Grupo da Esquerda do Parlamento Europeu (GUE/NGL), apelidou esta iniciativa da Comissão de “escandalosa”, dizendo que este organismo europeu não tem qualquer tipo de mandato para tentar influenciar as decisões dos Estados-membros nesta matéria.
Também Ibán Garcia del Blanco, que antes se mostrava otimista, juntou-se à também eurodeputada socialista e vice-presidente do PE Evelyn Regner, que com ele tem liderado todo o processo do lado do Parlamento Europeu para enviar uma carta à Comissária Mairead McGuinness, responsável pela pasta das Finanças. Fontes do gabinete de Garcia del Blanco disseram que se tratará de uma missiva que enviaria “um forte sinal” do Parlamento Europeu sobre este documento da Comissão.
Os eurodeputados tentam forçar a Comissão a recuar, mas a verdade é que, mesmo que exista um recuo, o sinal político está dado e esse é impossível de retirar.