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A vida não examinada não vale a pena ser vivida

Não é a viver cada um na sua bolha que os problemas se resolvem. Não é adotando a estratégia do “salve-se quem puder” que o mundo vai melhorar. Cada um tem a obrigação de examinar não só a sua própria vida como também tudo o que o rodeia. É urgente, pois é de dia para dia que vemos a degradação daquilo que gostaríamos que fosse a nossa realidade.

Crónica 74
28 Setembro 2023

Esta frase da “Apologia de Sócrates” por Platão tem sido citada e recitada, esquecida e ressuscitada, mas nunca perdeu a sua pertinência desde que viu a luz do dia no ido ano de 388 antes de Cristo. Vem-me sempre à cabeça de cada vez que publico uma nova crónica aqui no Setenta e Quatro ou faço um post ou um comentário público e recebo alguma mensagem que vai precisamente contra o direito de escrever ou opinar. Já ouvi (ou melhor, li) de tudo, desde um simpático “dedica-te mas é ao teatro, porque do resto não percebes nada” até um mais rebuscado título de “servidor da agenda woke” (dito obviamente como uma crítica e não como um elogio, embora o tenha tomado como tal). E confesso que, em algum momento, já cheguei a pensar “mas porque é que eu me dou ao trabalho, porque é que me exponho a levar com estes números?” A resposta é simples: porque uma vida não examinada não vale a pena ser vivida.

Independentemente do que cada um faz ou não faz, é ou deixa de ser, o simples facto de estarmos vivos dá-nos o pleno direito de questionar. Mal de nós se houvesse só uma verdade e é precisamente este discordar, este refletir sobre o que acontece, sobre o que nos rodeia, sobre o que se passou ou irá passar, que faz o mundo avançar.

Na minha primeira crónica citei um agora reformado político de direita que falava numa entrevista de uma compreensível “auto-exclusão do debate público”, perante a subsequente violência de reações após a exposição de qualquer ideia. Embora não o tenha dito na altura, digo-o agora: acho “compreensível” mas, na minha opinião, creio ser uma atitude altamente nociva e egoísta. E cobarde. Não é a viver cada um na sua bolha que os problemas se resolvem. Não é adotando a estratégia do “salve-se quem puder” que o mundo vai melhorar.

Porque é disto que se trata. Melhorar. Deixarmos melhor o que encontramos. Ou pelo menos, não piorar. Sei que é impossível agradar a gregos e troianos e não é esse o objetivo deste exame à vida, que todos deveríamos fazer, mas não seria mau encararmos a tentativa de um consenso através do debate de ideias como uma coisa boa. E útil. Vital até. Mas infelizmente o “nim” é visto pelos fundamentalistas como uma aberração.

Na crónica em que falei da invasão de palco do São Luiz, por exemplo, mesmo concluindo que o gesto tinha sido necessário, foi da comunidade trans que recebi as maiores críticas. Até foi dito que eu falava do alto de um “white privilege”, que o melhor era eu estar calado. Assim, preto no branco.

Na crónica d’ “O meu amigo liberal”, houve quem insinuasse que esse amigo liberal não existia e que seria eu próprio esse liberal, uma espécie de agente infiltrado da Iniciativa Liberal numa plataforma assumidamente de esquerda. E penso: de onde é que vêm estes pensamentos altamente rebuscados? Será da falta de hábito de um diálogo construtivo? Será do algoritmo que impacta cada um só e apenas com aquilo que cada um quer ver, alienando-nos cada vez mais do outro e de outras formas, igualmente possíveis, de pensar? Rendemo-nos aos dogmas? Onde fica a vida examinada, então?

Já andava há uns tempos a querer falar disto, mas foi a leitura esta semana de uma entrevista à documentarista e activista Astra Taylor para a revista The New Yorker que me fez não querer deixar passar o tema.

A entrevista foca-se muito na questão da dívida dos estudantes americanos, a sua principal causa atualmente, mas aborda também a sua reflexão acerca do grande sentimento de insegurança que se vive, e de como o capitalismo é uma potente máquina fazedora de insegurança: insegurança ao nível da habitação, do emprego, do ambiente, da alimentação… E de como as grandes corporações se alimentam desta insegurança para perpetuar a sua hegemonia. E de como só com movimentos cívicos empoderados, só com a voz de cada um e de todos em conjunto, mesmo que com diferenças, nos poderíamos salvar.

Toda a entrevista merece uma leitura atenta, mas é sobre o documentário que Taylor realizou em 2008 que me quero focar. Chama-se Examined Life” e nele, a realizadora percorre as ruas (de Nova Iorque e São Francisco) enquanto conversa com filósofos e pensadores como Cornel West e Slavoj Žižek entre outros. É um festim bastante estimulante para o pensamento crítico, mas um dos aspectos que mais me impactou no visionamento deste excelente documentário foi a extrema actualidade dos temas abordados.

Todas as batalhas que hoje em dia a direita conservadora arruma na recente agenda “woke" já lá estavam em 2008 bem presentes nas mentes de alguns dos grandes pensadores da atualidade. E muitos fazem referências às questões ambientais, de género, sexismo, homofobia, etc, citando outros pensadores dos anos 70. Anos 70.

E se olharmos para trás, estas questões já andam há séculos nas cabeças de quem se dá ao trabalho de examinar a vida. Cai por terra a ideia que nos querem fazer passar que tudo isto é uma moda. Não, não é. Simplesmente a conquista de espaço no debate público é uma saga tão persistente quanto lenta. Não é de um dia para o outro que se muda o status quo mas esta mudança já é pensada e desejada há muito mais tempo do que os ultra-conservadores gostariam. E não é preciso ser-se filósofo para contribuir para esta reflexão conjunta do que somos. Eu, tu que estás a ler esta crónica, e todas as pessoas que conhecemos e não conhecemos podemos e devemos ser agentes ativos deste escrutínio da realidade. Até é o próprio Cornel West que responde com um imediato “of course not!” à pergunta se é necessário estudar filosofia para se ser filósofo. É necessário, isso sim, e citando uma vez mais West, “ver o que acontece quando nos interrogamos, quando começamos a questionar as nossas suposições tácitas e os nossos pressupostos desarticulados e começamos então a tornarmo-nos numa pessoa diferente.”

Esta necessidade do exame que cada um tem a obrigação de fazer não só da sua própria vida como também de tudo o que o rodeia, torna-se mais urgente de dia para dia, neste Portugal de 2023. Pois é de dia para dia que vemos a degradação daquilo que gostaríamos que fosse a nossa realidade.

São muitos os cronistas que se indignam com a passividade atual do povo português e eu partilho desta indignação. Seria de esperar que tal, tendo em conta como estão as coisas da saúde à educação, passando pela habitação e muitos infelizes etcéteras, que o povo estivesse na rua, como já esteve noutros momentos da nossa história, mais ou menos recente.

O que é que se passa então? De que é que estamos à espera? Em vez de nos engalfinharmos uns com os outros, dirijamos de uma vez por todas a nossa verborreia crítica e o nosso ativismo a quem de direito. Porque, no fundo, todos queremos o mesmo, dar um sentido às nossas vidas. E isto não se faz nem sem análise nem sem a colaboração uns com os outros. Citando o pensador Peter Singer, no mesmo documentário, “nós conseguimos dar um sentido significativo às nossas vidas quando nos conectamos com causas ou temas verdadeiramente importantes e contribuímos para elas. E desta forma sentimos que, pelo facto de existirmos e estarmos vivos, algo é um pouco melhor do que seria caso não tivéssemos feito nada. Que contribuímos, mesmo de uma forma pequena, para tornar o mundo um sítio melhor”.

Todo o documentário é um apelo às armas, ao questionamento, ao ativismo, ao acordar. E em todos os depoimentos dados pelos filósofos convidados, está como pano de fundo comum o papel de cada um de nós, a responsabilidade de cada um, a vital importância do pensamento individual e coletivo na conquista da justiça social. E de um mundo melhor. Não nos revoltemos pois contra esta justa e natural pulsão de examinar a vida, mesmo que não estejamos de acordo com determinado exame. Revoltemo-nos sim contra quem beneficiaria se não o fizéssemos de todo.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“Acordai” de Fernando Lopes Graça

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