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A vida dos outros

Nestes 30 anos, a SIC ajudou-me a conhecer melhor o mundo, a descodificar as diferentes faces do ser humano, a aprender a ouvir, a ver, a sentir a realidade multifacetada que caracteriza a dimensão humana. Estive no inferno e no céu dos outros. 

Crónica 74
13 Outubro 2022

Um velho técnico da rádio, com quem costumava trabalhar, disse-me, em vésperas de assinar contrato com a SIC, em 1992, aquilo que um jovem de 20 e poucos não gostaria de ter ouvido de alguém muito maduro: “vais meter-te num buraco, aquilo vai falir em menos de um ano”. Trinta anos depois, “aquilo” ainda está de pé e, quer queiramos, quer não queiramos, mudou, para sempre, a história da televisão em Portugal.

Não me apetece escrever sobre as conquistas e fracassos da SIC, porque seria sempre mal interpretado. (E hoje, a um mês de irem para o ar duas grandes reportagens, na SIC - cuja autoria partilho com outros camaradas de ofÍcio - que irão colocar-me, a mim e aos restantes autores, no lamaçal da fúria digital, sobretudo por isso, hoje, não me apetece ser mal interpretado. Acumulo energias para a data de emissão e publicação das reportagens).

Não escreverei sobre as conquistas da SIC, nem sobre outros momentos menos nobres que a estação enfrentou ao longo destes trinta anos, mas não permito que o aniversário redondo fique fora dos “Bastidores do Jornalismo”, no Setenta e Quatro.

Ao longo destes trinta anos, a SIC ajudou-me a conhecer melhor o mundo, a descodificar, mais facilmente, as diferentes faces do ser humano, a aprender a ouvir, a ver, a sentir a realidade multifacetada – do caos à ordem – que caracteriza a dimensão humana. Ao longo destes trinta anos, entrei em milhares de vidas, que foram minhas, mesmo que por breves instantes.

Emocionei-me com a sargento luso-americana que acabara de chegar do Iraque, feita em farrapos depois de ter segurado nos braços o corpo apagado de um camarada de armas. Entrevistei-a na casa dela, em New Jersey. Meses depois da entrevista, enviou-me um postal a agradecer-me pela conversa. O desabafo tinha-lhe feito bem.

Chorei a entrevistar a jovem doutoranda que me relatou, ao detalhe, toda a pancada que levava do namorado de que não conseguia libertar-se. Sorri, quando um aluno de 15 anos e  dois metros de altura fez uma dedicatória ousada à professora de inglês, numa aula que estávamos a filmar. Jamais esquecerei a nobre resposta da professora e a forma profissional como conseguiu evitar o confronto.

Senti as dores da perda quando, no sismo do Faial, em 1998, um homem novo, pai de filhos, chorava no alto dos destroços da casa, incapaz de agir, de pensar, de sair dali. Atormentei-me da primeira vez que entrei numa cadeia, lugar onde sabia que iria passar os próximos dias (foram 13). Atrapalhei-me quando tive de entrevistar um músico que está na banda sonora da minha vida. Pensei que morreria quando o pequeno avião que me levava para os Açores, para fazermos a cobertura do acidente aéreo de S. Jorge, iniciou um voo picado, sem que o piloto o conseguisse controlar.

Apaixonei-me pela ilha do Corvo, apesar de nunca mais lá poder voltar. Fiquei para sempre preso a Gracinda, a velha senhora de 80 anos, a quem o BES roubou as poupanças de uma vida inteira. Fui enganado pelo candidato a presidente de Câmara que usou a minha ingenuidade para combater o adversário (felizmente perdeu por larga margem).

Recusei-me a entrevistar os familiares das vítimas do acidente de Entre-os-Rios, mas entrevistei a mãe de uma menina que estava entre a vida e a morte com uma bala alojada na cabeça. Entrevistei um jovem prisioneiro que tinha fugido da cadeia e que morria de medo da cadeia. Passei um dia nas caves inacabadas de Chelas, no buraco onde viviam várias famílias, o pior lugar onde estive em toda a minha vida. Estive no Grande Canyon e em Monument Valley, para contar a história do velho oeste americano.

Fui ao Chile ouvir os ecos perpétuos da ditadura de Pinochet. Fui a Predappio, a Santa Comba Dão e ao Vale dos Caídos, lugares onde o fascismo deveria ter ficado enterrado para sempre. Mas, como, infelizmente, não ficou, agora estou de novo a confrontar-me com ele e com os seus quejandos: o racismo, a xenofobia, a misoginia e toda a incontinência verbal que irrompe das goelas insalubres dos próximos protagonistas das tais reportagens que a mim, e aos camaradas de ofício que comigo as estão a fazer, nos obrigarão a ter de entrar no lamaçal da fúria digital.

Em trinta anos, estive no inferno e no céu dos outros.

E ainda hoje, mais de dez mil dias depois, espero que a realidade, essa caixa de surpresas, matéria prima do meu labor, continue a levar-me muito para lá de mim próprio; porque cada um de nós é um lugar demasiado acanhado e claustrofóbico.

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