Índice

Tribunal dos horrores – a violência contra Cláudia Simões continua

Qual tribunal dos horrores, durante três penosas horas de audiência, vimos e ouvimos a juíza a admoestar Cláudia Simões repetidamente. Fez-lhe um retrato como pessoa indisciplinada e desobediente, prosseguindo em tom de intimidação. Tudo isto é triste, tudo isto é racismo.

Crónica 74
9 Novembro 2023

O rosto de Cláudia Simões, deformado por hematomas extensos, deu-nos, em Janeiro de 2020, mais um grave retrato da violência policial racista em Portugal. Quase quatro anos depois, o caso começou a ser julgado nos Juízos Criminais de Sintra, sem que se consiga detectar um vislumbre que seja de Justiça.

Afinal, como explicar que o Tribunal da Relação de Lisboa não reconheça o direito de legítima defesa a uma pessoa que foi violentada? Como entender que Cláudia Simões se sente no banco dos réus depois de o Ministério Público (MP) ter reconhecido a brutalidade que viveu – “foi ilegalmente detida, algemada, agredida, insultada e conduzida num veículo da PSP para a esquadra” –, e, na sequência da mesma, ter acusado três polícias de agirem “com violação dos seus deveres funcionais”? Como compreender também que Cláudia tenha de testemunhar sobre as agressões que sofreu, diante do agente que está a ser acusado de a ter brutalizado, nomeadamente com “vários socos na cabeça”?

Segundo comunicou a juíza-presidente do colectivo, Catarina Pires, “não há razões concretas” para que a vítima preste declarações sem a presença de quem está acusado de a agredir.  Por isso, foi perante os três agentes (Carlos Canha, João Carlos Cardoso Neto Gouveia e Fernando Luís Pereira Rodrigues) que Claúdia relatou como hoje tem pânico da Polícia, e como a sua filha – que, com apenas 7 anos, testemunhou o horror das agressões – também ganhou aversão a essa força.

“A minha filha até hoje tem sequelas desta situação, e ninguém quer saber”, assinalou Cláudia na primeira sessão do julgamento, realizada na passada quarta-feira, 8. 

 “A sua filha não é aqui arguida”, fez saber a juíza que, do primeiro ao último segundo nunca abandonou a atitude altiva, hostil e grosseira.

Como quem ignora que há várias linhas que separam a assertividade e disciplina da crueldade, desrespeito, e falta de educação, Catarina Pires mergulhou-nos num incompreensível clima beligerante.

 

A cabeça de Cláudia, a sentença da juíza

Qual tribunal dos horrores, durante três penosas horas de audiência – das 13h30 às 16h30 –, vimos e ouvimos a juíza a admoestar Cláudia Simões repetidamente. Fosse por falar antes do tempo –“Começo a pensar que não é capaz de parar”, disse –, fosse por não se expressar no “seu” português: “Diz-se urinava [em vez de mijava]”.

Entre advertências, não faltou sequer um momento a fazer lembrar velhas práticas racistas de medição de crânios. Tão apreciadas que em tribunal esse instante teve direito a bis. Começou com Cláudia a descrever como as agressões do agente Carlos Canha continuam bem marcadas no seu corpo. Explicando que é obrigada a usar peruca porque o seu cabelo foi violentamente arrancado pelo agente, Cláudia disponibilizou-se para mostrar essa consequência.

Sem um pingo de humanidade – se bem que aqui bastaria o bom senso –, a magistrada não resistiu à curiosidade de ver. Depois de Claúdia tirar a peruca, deixando visível uma rede sobre a cabeça, a juíza pediu-lhe também que retirasse a rede.

Há por aí alguém que se lembre dos zoos humanos?

Aberto o precedente, a advogada de Carlos Canha desconfiou das peladas e, já depois do primeiro desfile capilar, exigiu nova verificação. Motivo? Ficou com a impressão de que Cláudia rapa o cabelo. Catarina Pires autorizou a “vistoria” e, pela segunda vez, a humilhação aconteceu. Durou uns segundos, porque a juíza parece ter percebido a violência da situação e travou maiores avanços. “O que a senhora está a ver é o que nós vemos. Tire as suas conclusões no momento oportuno”, disse à representante de Carlos Canha.

O momento de tréguas não travou, contudo, o estado de beligerância instalado.

 

A tese da mulher negra agressiva e descontrolada

Como se não bastassem as advertências, Catarina Pires não se coibiu igualmente de demonstrar quão rápida consegue ser nos julgamentos de carácter. Diante de uma Cláudia Simões tão ansiosa em explicar o que aconteceu que muitas vezes não conseguiu ouvir a questão até ao final antes de começar a responder, a juíza sentenciou: “Está no domínio da sua vontade. Já não tem que ver com desconhecimento de regras, mas com a capacidade de as cumprir”.

O retrato de Cláudia como pessoa indisciplinada e desobediente prosseguiu em tom de intimidação. “Sabe o seguinte?”, questionou a magistrada, “registo todo o comportamento de todos os arguidos enquanto estiverem em audiência: o que dizem e o modo como se comportam. Analiso isso no contexto de tudo isto, de cada vez que me interrompe”.

Em “tudo isto” cabe a descrição apresentada em tribunal pelo agente Carlos Canha, acusado pelo MP de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, três de sequestro agravado, um de abuso de poder e outro de injúria agravada contra Cláudia Simões e mais duas pessoas.

Segundo o polícia, naquele 19 de Janeiro de 2020, Claúdia “estava aos gritos” quando chegou ao local da ocorrência. “Usei da minha cordialidade”, garantiu Canha, alegando que recebeu em troca agressão e desobediência. “Eu faço o que quero, ninguém manda em mim”, foram as palavras de desacato proferidas por Cláudia, à luz do testemunho do polícia. Incapaz de explicar a origem dos ferimentos que levaram a ofendida a receber tratamento hospitalar, o agente sugere que Cláudia se atirou do carro-patrulha quando estavam a chegar à esquadra.

A narrativa da mulher negra agressiva e descontrolada exposta em tribunal juntou-se ainda a uma descrição de fisicalidade excessiva: Cláudia foi duplamente algemada, não como expressão de maior violência policial, mas como gesto de cuidado, porque o seu corpo “sem elasticidade”, acabaria magoado se fosse usado apenas um par de algemas.  

Tudo isto é triste, tudo isto é racismo.

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt