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A saúde mental vai a votos

Nenhum número de psicólogos será suficiente enquanto nos sobrarem dias do mês para o tamanho dos salários. Ou enquanto a vida se for gerindo entre horários desregulados, no stress rotineiro. Ou enquanto, não tão longe quanto nos fazem crer, se continuarem a matar mulheres e crianças indiscriminadamente, num genocídio aos olhos de todos – é também de paz que se cose a saúde mental.

Crónica 74
16 Fevereiro 2024

Um/a psicólogo/a para 9687 habitantes no Serviço Nacional de Saúde. Um/a psicólogo/a para 694 estudantes nas escolas públicas. Um/a psicólogo/a para 380 reclusos nos estabelecimentos prisionais. Numa ideia generalizada de que nos últimos anos a saúde mental veio ganhando espaço social, afirmando o seu papel e relevância, valham-nos as contas para relembrar o caminho que ainda falta percorrer. Os números gritam-nos a falta de investimento em cuidados de saúde mental, mas não nos chegam para entender o quão este tema vai a votos nas próximas eleições.

Longe de nos movermos em bolhas individuais, desenvolvemo-nos em relação com o tempo e os contextos em que nos inserimos, e que vêm influenciando o nosso percurso, potenciando-o ou condicionando-o. É neste sentido que a investigação nos vem demonstrando o impacto das condições socioeconómicas na (falta de) saúde mental. Aqui os números voltam a assombrar: em Portugal, uma em cada cinco pessoas sofre de doença mental.

A 10 de março vão a votos programas eleitorais, mas também as iniciativas legislativas que não esquecemos que ficaram por cumprir. A saúde mental vota-se, por isso, no reforço do Serviço Nacional de Saúde e do número de psicólogos nas escolas mas, mais do que isso, vota-se na melhoria das condições de vida para todas as pessoas.

Nenhum número de psicólogos, ou demais profissionais de saúde mental, será suficiente enquanto nos sobrarem dias do mês para o tamanho dos salários. Ou enquanto a vida se for gerindo entre horários desregulados, no stress rotineiro de correr a tempo de ir buscar os miúdos à escola e na falta de horas do dia para cumprir o que há de obrigatório (quanto fará o descanso ou o tempo de lazer). Mesmo que, além das horas extra, a empresa ofereça um voucher para consultas de psicologia, aulas de ioga ou um almoço de team building – o problema, provavelmente, serão as horas extra.

Nenhum número de psicólogos será suficiente enquanto o direito à habitação, definido que está na Constituição da República Portuguesa, continuar a perpetuar a permanência em casa dos pais, a partilha de casa com amigos ou desconhecidos após quinze anos de carreira, ou a adiar a separação conjugal sob risco de se ficar sem teto – é também de casa que se fazem as campanhas contra a violência doméstica.

Na senda do aniversário da vitória do “sim” ao referendo da Interrupção Voluntária da Gravidez, nenhum número de psicólogos será suficiente enquanto se violar o acesso pleno a este direito, tanto quanto a todos os direitos sexuais e reprodutivos. Enquanto se mantiverem salários desiguais em função do género, enquanto se absorver o tempo de vida das mulheres em tarefas domésticas desproporcionais, ou enquanto alguém se continuar a sentir discriminado em função da sua orientação sexual, da sua expressão ou identidade de género.

Nenhum número de psicólogos será suficiente enquanto alguém se sentir culturalmente estigmatizado, nesta perspetiva do “nós e eles” que vai instrumentalizando o descontentamento social em torno de um inimigo criado para que, nesse meio-tempo, ninguém questione o sistema em que vivemos todos – não importa qual o “lápis cor de pele”. Seja no inaceitável atraso nos processos de regularização para quem chega, no parco acesso a serviços públicos de qualidade, ao trabalho com direitos ou ao quão se sente não-pertencer, o racismo é um muro demasiado alto à saúde mental.

Nenhum número de psicólogos será suficiente enquanto, não tão longe quanto nos fazem crer, se continuarem a matar mulheres e crianças indiscriminadamente, a negar a assistência vital que ceifa outro sem número de vidas, num genocídio aos olhos de todos – é também de paz que se cose a saúde mental.

Nenhum número de psicólogos será suficiente enquanto…

Os cravos plantam-se no começo da primavera. Consta que precisam de sol e de se manter húmidos. É a 10 de março que plantamos os nossos – aos 50 anos de Abril assim o devemos.

 

Se precisares de ajuda, contacta: 

Serviço de Aconselhamento Psicológico da Linha SNS24 808 24 24 24
APTeFC - Associação Portuguesa de Terapia Familiar e Comunitária

https://aptefc.org/

 

Afropsis -  grupo de Psicólogos e outros profissionais da Saúde Afrodescendentes https://afropsis.webnode.pt/
Casa Qui - foco nos temas de orientação sexual, identidade e expressão de género

https://www.casa-qui.pt/

 

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

secretariado_consultas@fpce.up.pt

 

Rumo https://pt.rumo.solutions/

 

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