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A questão do arrendamento

A proclamada "crise de confiança" do setor da habitação apenas serve um discurso que se habituou a encarar com hostilidade um certo estilo de intervenção do Estado num domínio essencial dos direitos sociais constitucionalmente consagrados.

Crónica 74
8 Setembro 2022

A diferença relativa entre o setor do arrendamento (22% do total) face ao segmento de casa própria (70%) tem contribuído para alimentar a ideia da existência de uma crise do setor de arrendamento em Portugal, atribuindo-se persistentemente a sua génese a um alegado excesso de regulação e intervenção pública no setor e, de modo particular, ao congelamento das rendas no pós-25 de Abril.

Sucede porém, desde logo – e como já se demonstrou aqui –, que o peso relativo das "rendas antigas" no total de alojamentos se foi tornando cada vez mais residual (cerca de 14% do total, em 2015), estando os constrangimentos para os proprietários, associados ao congelamento das rendas, há muito ultrapassados. De facto, além de se ter tornado possível, desde 1981, optar por um regime de renda livre nos novos contratos, procedeu-se em 1990 à liberalização total do setor. Ou seja, nada impediu que, desde essa data, todos os fogos entretanto construídos (e os fogos devolutos) não fossem colocados livremente no mercado.

O que se constata, em segundo lugar, é que a redução do peso relativo do arrendamento no total, ao longo das últimas décadas, se deve muito mais ao aumento do regime de propriedade do que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, a uma diminuição em valor absoluto do número de casas arrendadas. De facto, o número de fogos arrendados nunca se afastou de modo significativo do valor de 1 milhão, oscilando entre os 1,2 milhões em 1960 e os 740 mil em 2001 (e situando-se, em 2001, nos 923 mil). Pelo contrário, a casa própria expandiu-se de forma vertiginosa nas últimas décadas, passando de 1,2 milhões de habitações, em 1960, para cerca de 2,9 milhões em 2021.

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Gráfico crónica Nuno Serra

A "escassez" do arrendamento resulta essencialmente, portanto, não da natureza da regulação pública, mas antes do efeito de generalização da casa própria, impulsionado pelas facilidades concedidas à aquisição, sobretudo a partir dos anos 90. Isto é, com o acesso fácil a dinheiro barato, a par dos incentivos fiscais do Estado e da bonificação do crédito, que tornaram o arrendamento menos interessante – em termos de "racionalidade económica" – tanto para as famílias como para os proprietários e investidores.

Um inquérito recente do INE, aliás, demonstra isto mesmo. Mais do que uma alegada crise de confiança dos proprietários, é é a preferência das famílias pela casa própria, induzida pelas políticas, que explica a forma como esta se tornou cada vez mais dominante. Como já se assinalou aqui, cerca de 45% das famílias proprietárias inquiridas preferiram a casa própria (para lá das razões financeiras), sendo apenas de 2% o número de agregados, neste universo, que teria preferido, neste contexto institucional, arrendar. Ao mesmo tempo que, entre as famílias arrendatárias inquiridas, 64% preferia ter comprado casa e apenas 10% referem que o arrendamento foi a sua preferência.

A expressão do arrendamento em Portugal está, portanto, intrinsecamente associada à evolução do crédito à habitação e do regime de casa própria, não refletindo assim os alegados "efeitos perversos" de uma regulação claramente favorável aos proprietários. Aliás, constata-se que é justamente quando as condições de acesso ao crédito para aquisição se tornam mais exigentes, como sucedeu inicialmente a partir de 2001, mas, sobretudo, depois da crise financeira, que o arrendamento começa a recuperar. O que significa, por conseguinte, que a proclamada "crise de confiança" do setor apenas serve um discurso que se habituou, sem fundamento, a encarar com hostilidade um certo estilo de intervenção do Estado num domínio essencial dos direitos sociais constitucionalmente consagrados, como é o da habitação.

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