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Por um lado e por outro lado

Transferir risco de cima para baixo na pirâmide social, criar sucessivas crises financeiras e socializar os prejuízos são especialidades da finança liberalizada. O fim da linha E dos Certificados de Aforro pode ter sido motivada pela pressão dos bancos, mas tentar pagar taxas de juro baixas faz parte da missão de qualquer Estado decente.

Crónica 74
8 Junho 2023

O presidente norte-americano Harry Truman ter-se-á queixado de não ter um economista só com uma mão, dado que os seus conselheiros económicos diziam sempre: on the one hand, on the other hand. Em português, por um lado e por outro lado não se prestam a este comentário jocoso. De qualquer forma, demasiados economistas portugueses tendem a ter uma só mão, a direita, a de mais Estado penal para menos Estado social (a mão esquerda), para usar a metáfora das duas mãos do Estado.

Em defesa da mão esquerda, por um lado e por outro lado são absolutamente necessários se quisermos abordar o fim da linha E dos Certificados de Aforro, com maturidade de dez anos e uma taxa de juro nominal de 3,5%, substituída pela aparentemente ignominiosa linha F, com taxa de juro de 2,5% e uma maturidade de quinze anos. Há uma revolta na “arrasada classe média”, para usar os termos de Ana Gomes, pelo facto de o Estado pagar menos por emissões de dívida.

Por um lado, esta decisão foi tomada a seguir a umas declarações de João Moreira Rato, responsável por uma aberração tão aberrante quanto a concessão a privados dos CTT, o Banco CTT. Os CTT, anteriormente um dos pilares da confiança comunitária, que passaram a vender raspadinhas e cripto-qualquer-coisa-que-não-moeda, ao mesmo tempo que passaram a entregar cartas e encomendas, quando o fazem, em cantos de cafés, ficaram com um banco hoje liderado por um Chicago Boy (Moreira Rato doutorou-se em Chicago) e que esteve ligado ao BES (Salgado Boy?). Toda uma modernidade neoliberal na instituição que detinha, e bem, enquanto foi propriedade pública, o monopólio da venda de Certificados de Aforro, dada a sua capilaridade nacional e a sua fiabilidade.

Como bom banqueiro, Moreira Rato considera os portugueses temerosos, sempre em busca de segurança, pouco atreitos ao risco. Transferir risco de cima para baixo na pirâmide social é uma das especialidades da finança liberalizada, a par da geração de crises financeiras sucessivas e da socialização dos respetivos prejuízos. Naturalmente, como bom banqueiro, Moreira Rato considerou que, por agora, “o governo deveria interromper os certificados de aforro”.

É uma falácia conhecida quando se julga que por Y se seguir a X, X causou necessariamente Y. Mas a ligação causal entre X e Y pode ser plausível, dados os mecanismos identificados: em termos do sector financeiro aplica-se, desgraçadamente, o marxismo mais simples, dado que os poderes públicos nacionais e os supranacionais que podiam, querendo, controlá-lo, porque têm o poder monetário (Banco Central Europeu), se comportam como se fossem meros comités para gerir os assuntos coletivos da finança, em função dos interesses desta. E os bancos não têm qualquer interesse em produtos seguros e, do ponto de vista nominal, relativamente bem remunerados, como os oferecidos pelo Estado, que concorrem com a remuneração nominal mais baixa oferecida pelos depósitos.

Na sua coluna do Expresso de 2 de junho, o economista liberal Luís Aguiar-Conraria (LA-C) foi um dos que de forma mais eficaz verberou, só com uma mão, contra a decisão governamental de emitir dívida a taxas de juro mais baixas, considerando-a uma cedência à banca que se comporta como um “cartel”. Como assinala, este é um “cartel” subsidiado pelo BCE. Graças às perversas subidas das taxas de juro, de resto anteriormente defendidas por LA-C, o BCE remunera as reservas que os bancos aí têm a uma taxa de juro muito superior à que os bancos pagam pelos depósitos a prazo em Portugal. Um belo negócio, que, segundo LA-C, só poderia ser erodido pelo “mercado concorrencial” na banca, compelindo-a assim a oferecer melhores remunerações aos depositantes. Apesar das privatizações bancárias e das liberalizações financeiras, desde a década de 1980, o liberalismo nunca teria existido na banca portuguesa, afinal de contas.

E agora chega o por outro lado, talvez mais importante, dado que tem três ou quatro dimensões.

Em primeiro lugar, a receita de LA-C para a suposta falta de concorrência – colocar o Estado a pagar um prémio acima do que os credores, com condições criadas pelo BCE, já exigem nos “mercados” de dívida sempre enquadrados pelo BCE – abre um péssimo precedente de política pública, promovendo a redistribuição regressiva (dos que beneficiam do Estado social para os que têm rendimentos relativamente mais elevados, que lhes permitem poupar). Além disso, a concorrência na banca é tão má quanto um cartel privado, dado que é fonte de ainda mais intensas aventuras e especulações, que descambam em instabilidade e crise financeiras, com custos sociais evidentes.

Em segundo lugar, a propriedade pública, a regulamentação apertada, o controlo político dos juros e o enquadramento e direção do bem público que é o crédito são uma alternativa mais segura e eficaz, como sabemos do capitalismo do pós-guerra ou da economia mista chinesa de hoje. No fundo, precisamos de “socialização do investimento” pelo crédito e da “eutanásia do rentista”, de que falava Keynes, num regime financeiro de taxas de juro controladas e duradouramente baixas. Quem quer ser remunerado que vá trabalhar.

Em terceiro lugar, a preocupação de LA-C com as remunerações das poupanças é filha da ideia, macroeconomicamente equivocada, de que a elevação da taxa de juro é necessária para promover a poupança, já que é esta é necessária para “financiar” o investimento. Mas é ao contrário, na realidade: o investimento depende sobretudo da moeda-crédito que os bancos criam do nada e as despesas de investimento, conjuntamente com as do consumo, geram rendimentos e alguns desses rendimentos são poupados num processo que torna o valor da poupança sempre inevitavelmente igual ao do investimento. Se as taxas de juro forem elevadas, há menos despesa e logo menos rendimento, dado que as despesas de uns são o rendimento dos outros e, consequentemente, menos poupança.

Finalmente, é preciso tentar distinguir as motivações dos efeitos: a decisão do governo pode ter sido motivada pela pressão dos bancos, revelando toda uma economia política, mas tentar pagar taxas de juro baixas faz parte da missão de qualquer Estado decente. Para isso, ajudaria muito ter a ajuda de um Banco Central com capacidade de financiar. Nós perdemos essa prerrogativa soberana na mesma altura em que privatizámos a banca e abolimos os controlos à entrada e saída de capitais. Está tudo ligado, da economia política à política económica.

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