Índice

A Palhinha Assassina

A técnica da palhinha assassina continua de boa saúde. Assim como se descartaram as palhinhas destruidoras do meio ambiente, Ventura quer descartar os ciganos. O grande problema desta comunidade é ser um alvo fácil de um populismo primário e de uma regra básica da cartilha dos tiranos. A estratégia de encontrar um elo mais fraco e usá-lo como objeto de indignação extravasa o âmbito ambiental.

Crónica 74
15 Junho 2023

Tudo choca no documentário Seaspiracy mas a desconstrução do mito da palhinha assassina foi-me particularmente impactante. Por via de campanhas extremamente eficazes difundidas pelos lobbies dos verdadeiros culpados, fomos levados a crer que o grande problema da poluição dos oceanos eram as palhinhas de plástico (e outras miudezas análogas, como os demoníacos cotonetes). E para isso bastou a difusão de toda uma operação de salvamento de uma pobre tartaruga com uma palhinha enfiada no nariz, bastou esse momento em que almas bondosas conseguiam extrair a palhinha da narina, com sangue à mistura e tudo, aflição e alívio em partes iguais, para que todos nos sentíssemos no lodo.

Porque aquela palhinha podia ser nossa, podia ser minha, aquela que vinha na embalagem do leite de arroz, e que eu nem sequer usei, e que se calhar foi para o caixote errado, e que por isso não seguiu a procissão da reciclagem, não cumprindo o seu final feliz, indo em vez disso tornar-se em verdugo de uma cândida tartaruga. E todo este meu encadear de suposições aconteceu à mesa, com o iPad à frente, a ver o vídeo no YouTube enquanto almoçava um peixinho (o eufemismo é intencional). Mas graças a este vídeo, eu e o mundo tínhamos acordado. Era isto. Eram as palhinhas e os cotonetes que estavam a poluir os mares, a entupir narinas, a dar cabo do ecossistema.

Já desperto, o mundo entrava agora em modo hiperconsciente, morte às palhinhas de plástico, morte aos cotonetes. Usar umas ou outros era sinal de um profundo desrespeito pelo ambiente, tão grave como não reciclar ou não ter um carro eléctrico. As prateleiras dos supermercados encheram-se de novas embalagens (de cartão, com tampas de plástico…) com os cotonetes versão século XXI, feitos de papel, amigos do ambiente, e até no McDonalds, as palhinhas passaram a ser de papel, para beber Coca-Cola (empresa poluídora number one) em copos de “papel” com percentagem de e tampas de, sim adivinharam, plástico.

Por muito evidente que me seja agora este encavalitar de incongruências, o certo é que a manobra de distração tinha funcionado e, apesar de continuarmos a manter a esmagadora maioria dos nossos hábitos inimigos do ambiente, a consciência tinha atingido aquele grau mínimo de tranquilidade que nos permitia voltar a dormir à noite sem sobressaltos. Éramos todos o Super-Homem e tínhamos impedido a tempo que o planeta fosse destruído por dois asteróides mortais disfarçados, respectivamente, de fofinhos cotonetes e inocentes palhinhas.

Acontece que o sono dos justos foi, inevitavelmente, interrompido. Não há mal que sempre dure e, caspita, bem que nunca acabe e o despertador veio sob a forma de um documentário chamado Seaspiracy. Produzido pelos mesmos que já nos tinham atirado à cara o revoltante Cowspiracy, desta vez o foco passou da carne para o peixe. Por muitas voltas ao estômago que me tivesse dado a viagem aos bastidores do bifinho, nada se compara com os bastidores do peixinho. O documentário é um autêntico desfiar de um rosário com revelações chocantes e ficámos a saber, entre outras coisas, que quase metade do plástico que boia nos nossos oceanos e se dissolve em micropartículas de absorção rápida pelos seus habitantes, provém da pesca industrial. Vimos mega fábricas flutuantes pescar tudo de arrastão, vimos lixo e mais lixo a ser deitado ao mar, redes e utensílios, plástico e mais plástico. Vimos que afinal o grande problema não era a palhinha na narina da tartaruga mas sim o peixinho que eu tinha à frente e como ele tinha chegado até mim.

Mas os mesmos lóbis que nos tinham convencido que a palhinha era o inimigo público número um, conseguiram de alguma maneira que a culpa não se dirigisse a quem de direito. No documentário chega-se até a ironizar com a percentagem residual que palhinhas e cotonetes ocupa no cômputo geral da poluição marítima, e de como o verdadeiro problema estava à vista de todos, sem no entanto originar grandes alterações nos nosso hábitos. Tinha-se encontrado o bode expiatório, a causa das coisas, e já não havia nada a fazer. Ainda há pouco passei por uns cartazes sobre protecção do ambiente e sobre as medidas que todos podemos tomar e lá estavam elas, as palhinhas, lá estavam eles, os cotonetes, como protagonistas da mudança. Nem uma palavra acerca do peixinho.

Ainda a ressacar desta incómoda sensação de ter sido enganado (e de fazer parte do problema), dei de caras com outro tipo de palhinha, a palhinha política. É dissecada, sem pudor, no documentário “Como ser um tirano” logo no primeiro episódio. Pelos vistos esta estratégia de encontrar um elo mais fraco e usá-lo como objecto de indignação extravasava o âmbito ambiental. O episódio foca-se em Hitler e mostra como este encontrou a sua palhinha nos judeus, demonizando-os e usando-os como manobra de distração e adubo de quorum popular. Claro que o problema da Alemanha não eram os judeus mas o que é que isso interessava, quando havia tanta gente disposta a acreditar que o eram? O mesmo processo foi usado por muitos mais ditadores, por todos aliás, e tem sido replicado até hoje, agora pela mão dos populistas, com resultados que continuam a pasmar pela sua extrema eficácia.

Em Portugal, por exemplo, perante o discurso do líder do Chega relativamente à comunidade cigana, um incauto é levado a pensar que esta encarna o grande problema luso. Porquê? Porque “muitos” recebem indevidamente o RSI (Rendimento Social de Inserção). Então é por aqui que se está a esvair o nosso dinheiro? É este o principal obstáculo ao nosso desenvolvimento? Vejamos. Se somos perto de 10 milhões e a comunidade cigana não chega a 40 mil; se o número de residentes em Portugal que recebe o RSI é de 195 mil e só 6% deste subsídio vai para esta comunidade; e se destes 195 mil o número que recebe indevidamente o RSI não é significativo, percebemos que, a existir, a percentagem de indivíduos da comunidade cigana a receber indevidamente este subsídio não será mais que residual. Mas assim como se descartaram as palhinhas, Ventura quer descartar os ciganos. Como as palhinhas, o grande problema desta comunidade é ser um alvo fácil de um populismo primário e de uma regra básica da cartilha dos tiranos.

Mas a técnica da palhinha assassina continua, no entanto, de boa saúde e a prova mais recente envolveu uma infeliz estátua do escultor Cargaleiro. Que melhor forma de desviar a atenção dos gastos pornográficos de um evento religioso pago com (muito, demasiado) dinheiro público e de toda uma investigação sobre pedofilia na Igreja (lembro: perto de 5 mil vítimas confirmadas), do que chocar o mundo com um escândalo infinitamente menor mas surpreendentemente eficaz como manobra de distração? O debate público mordeu o anzol e a discussão desviou-se do essencial para o acessório. Tapar ou não passou a ser a questão. A palhinha tinha-se transformado agora no falo de Cargaleiro e o esbanjamento e os abusos ficaram lá atrás, a boiar, juntamente com as redes provenientes da pesca industrial e todas as outras misérias que não queremos enfrentar.

A melhor reacção a esta falsa questão ainda foi a do artista Bordallo II, que no post do Instagram do Expresso com a notícia “Câmara de Lisboa admite tapar obra de Cutileiro com forma fálica durante Jornada Mundial da Juventude” pôs o dedo na ferida e escreveu nos comentários “Tapem também todas as esculturas com criancinhas.” Touché!

PS: o conteúdo desta crónica é mais eficaz com o pré ou pós visionamento de…

“Plastic straw removed from a sea turtle’s nostril (short version)”

“Cowspiracy” (2014) trailer do documentário de KP Andersen e Keegan Kuhn

“Seaspiracy” (2021) trailer do documentário de Ali Tabrizi

“How to became a tyrant” (2021) trailer do documentário produzido e narrado por Peter Dinklage

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt