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Os mestres da ilusão

O jornalista de investigação precisa do privilégio do tempo para poder escavar a verdade oculta, mas precisa, igualmente, da enxada da paciência para destapar o manto de silêncio e a névoa impostos pelas fontes oficiais. Jornalismo de investigação é construir, não é reproduzir verdades pré-fabricadas no laboratório de interesses ocultos.

Crónica 74
28 Abril 2022

David Randall dizia-nos que “o jornalismo de investigação começa onde termina o jornalismo quotidiano”; o jornalismo de investigação, acrescentava o antigo jornalista britânico, falecido em 2021, “não se rende ao silêncio do jornalismo quotidiano”.

Esta ideia é, de todas as que li sobre jornalismo de investigação, a que melhor carateriza essa forma superior de jornalismo. O jornalista de investigação precisa do privilégio do tempo para poder escavar a verdade oculta, mas precisa, igualmente, da enxada da paciência para destapar o manto de silêncio e a névoa impostos pelas fontes oficiais.

Portugal, sejamos justos, investe pouco em jornalismo de investigação. Todos sabemos isso, mas alguns jornalistas, muitos diretores de informação e vários proprietários de meios de comunicação jogam cúmplices o jogo da ilusão. Iludem-nos, a nós leitores, espectadores, ouvintes, produzindo formas travestidas de jornalismo de investigação:

- Receber dezenas ou centenas de páginas de um inquérito em curso do Ministério Público e reproduzir uma síntese dessa matéria, publicando-a nos jornais, nos sites informativos, ou dando-lhe voz na rádio, ou juntando imagens gerais na televisão, indiretamente ligadas ao tema em causa, tudo isso é - jornalisticamente - nada. Isso é, tão só, fazer um favor à fonte que libertou essas páginas em segredo de justiça. Publicar uma investigação em curso do Ministério Público, sem contraditório, é condenar antecipadamente; é deturpar a verdade;

- Receber uma queixa de um qualquer cidadão que se sinta lesado por uma alegada má prática de um qualquer servidor do Estado ou organismo público e dar voz a essa queixa, sem cuidarmos de perceber se ela é verdadeira, investigando por nossa conta e risco os meandros que a contornam, fazendo um esforço efetivo para ouvir o outro lado; sem isso somos meras caixas de ressonância;

- Fixarmo-nos à partida numa única “verdade”, por atraente ou consensual que ela seja, colocando palas nos olhos que nos impeçam a visão periférica e publicar diretamente o reflexo dessa “verdade” solene, também não é jornalismo de investigação. Pat Stith, um brilhante jornalista de investigação norte-americano, dizia-nos que “a dúvida” era o seu “mantra”, era a luz orientadora que lhe iluminava o árduo caminho em direção à descoberta da verdade jornalística. Homer Bigart, outro jornalista norte americano, cultivava, igualmente, um “conhecimento cético”, transportava uma “ignorância de bolso” que o obrigava, sempre, a “aceder empiricamente à prova”, nunca aceitando versões de outras pessoas.  Verdades pré-embaladas atraiçoam o jornalismo e, muito mais, o jornalismo de investigação.

Sempre que disfarçamos a realidade jornalística, atribuindo-lhe rótulos que não a enquadram, travestindo de investigação - à força da promoção - um trabalho jornalístico incompleto, enviesado, damos novo rombo na já frágil estrutura do jornalismo de investigação português.

A Grande Reportagem Testa de Ferro, que entre novembro de 2021 e abril de 2022 emitimos na SIC e publicámos no Setenta e Quatro, é um trabalho de investigação jornalística.

Não nos limitámos a publicar uma síntese dos milhares de páginas produzidas pela equipa do Ministério Público, que investiga a “Operação Cartão Vermelho”, material que caiu no colo de diversos jornalistas portugueses, em janeiro de 2022. Nós pegámos nessa corrente de informação e investigámos por conta própria. Fomos para lá dela.

No Testa de Ferro usámos, igualmente, mais de 40 mil ficheiros (50 gigas de informação), que nos fizeram chegar em duas fases. Essa montanha de informação foi a nossa base, mas precisámos de detetar, um a um, os factos que esse caudal ocultava.

Durante dez meses e a tempo inteiro, dois jornalistas, três alunos (dois de jornalismo e um de economia), um repórter de imagem, um editor de imagem e, numa fase final, um conjunto de técnicos de áudio e imagem, discutimos, verificámos, confirmámos e, finalmente, publicámos. Passo a passo - e sem queimar etapas - contactámos os alegadamente visados, falámos com gente próxima que trabalhou diretamente com eles, batemos à porta das empresas que com os visados, alegadamente, colaboraram, cruzámos dados, recorremos à ajuda de peritos que nos ajudaram a descodificar matérias específicas e, mais relevante do que tudo isso, alimentados pela dúvida permanente, fomos aos lugares da história e aí, sim, muito próximos da origem do acontecimento, fizemos perguntas, percorremos caminhos metaforicamente estreitos e estivemos face a face com aquilo que apenas tínhamos lido. Só no lugar da história, revolvendo a matéria, a história se desvenda e a prova se solidifica.

Jornalismo de investigação é construir, não é reproduzir verdades pré-fabricadas no laboratório de interesses ocultos.

Se aos diretores e aos proprietários dos meios dá pouco jeito perceberem a diferença entre jornalismo quotidiano e jornalismo de investigação, não há desculpa para que, tantas vezes, sejam os jornalistas a premir o gatilho dessa ilusão.

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