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O Verbo e o Modo: Parte II

Como cidadão e actor preocupo-me com o futuro da Cultura, e como tal iria viajar pelos programas dos principais partidos, na esperança de encontrar políticas culturais minimamente delineadas. Ainda bem que o fiz, porque se dependesse dos debates não ficaria com nenhuma ideia sobre os planos dos candidatos para um sector tão vital como é a Cultura. 

Crónica 74
7 Março 2024

Na crónica anterior foquei-me no verbo, na palavra, no discurso político. Em termos gerais, algumas das principais críticas apontadas ao verbo, como a pobreza de conteúdo no debate político, a infantilização do discurso e a sobrevalorização das guerras partidárias, tiveram um espelho bastante fiel nos debates televisivos entre todos os candidatos. Convenhamos que o formato também não ajudou: quando na iminência de mais um, a jornalista Sandra Felgueiras diz “vamos para mais um duelo”, era deixado bem claro que o que se esperava era mais um espectáculo de arremesso de críticas e acusações do que debates sérios sobre o futuro do país. E assim foi, na maior parte das vezes, com alguns casos bastante embaraçosos de ver.

Escrevi na crónica anterior que, como cidadão e actor, me preocupo com o futuro da Cultura, e que como tal iria viajar pelos programas dos principais partidos, na esperança de encontrar políticas culturais minimamente delineadas. Ora, ainda bem que o fiz, porque se dependesse dos debates não ficaria com nenhuma ideia sobre os planos dos candidatos para um sector tão vital como é a Cultura. Isto porque em nenhum destes “duelos” se falou de Cultura. Nenhum. Preocupante mas infelizmente nada surpreendente. Nós, os trabalhadores da Cultura, já estamos habituados que esta seja usada como uma flor na lapela dos candidatos em campanha eleitoral, que recorrem a caras mais ou menos conhecidas para sugar dos artistas o carisma que estes possam emanar como forma de empoderamento da sua persona política, mas depois, uma vez apurados os resultados, os eleitos e os derrotados deitam fora a flor da lapela e começam o “verdadeiro trabalho”, e lá volta a Cultura a ser relegada para o último lugar da fila das prioridades.

Mas, lendo as poéticas definições de Cultura (sempre com C grande) nos programas dos principais partidos, ficamos com a sensação de que todos acordaram para a importância da dita na vida e economia do nosso país. Acordaram quando escreveram os programas, voltaram a dormir no assunto durante os debates, para depois voltarem a acordar perante a indignação geral por ninguém ter trazido a tão bendita como malfadada Cultura para os duelos televisivos com que fomos presenteados.

Estando de uma maneira geral os programas praticamente todos de acordo que a Cultura deverá passar a receber (de forma gradual, como não se cansam de dizer) 1% do Orçamento Geral do Estado, e contendo todos muitas palavras que pelo vento podem ser levadas e boas intenções que irão encher o Inferno, farei um resumo do capítulo dedicado à Cultura em cada programa com dois elementos esclarecedores. Primeiro, as supra-citadas poéticas definições de Cultura e, segundo, uma medida original de cada partido. Comecemos pelos senhores que tão bem cuidaram dela nos últimos anos.

O PS escreve no seu programa que elege “a cultura como uma das políticas públicas mais contributivas para a coesão social e territorial e para a competitividade internacional do país.” Se assim é, porque é que foi tão ignorada durante os anos de Governo? Que eu contasse, foram oito. E nos debates? Que eu contasse, foram oito também. Oportunidades não faltaram. Mas adiante… Vamos acreditar que não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe e Pedro Nuno Santos tem uma medida que veio aqui direitinha ao coração: “aprofundar o compromisso da RTP (rádio e televisão) com a difusão cultural e revisitar o seu papel no apoio à produção nacional, ponderando a afetação de uma percentagem da CAV (contribuição audiovisual) para o cinema e audiovisual e uma quota da emissão diária para o setor da cultura.” Agora que já li a medida não posso desler, e caso seja eleito cá estaremos para o relembrar sempre que necessário. 

Para a AD, “a identidade de Portugal caracteriza-se pela sua história e pela cultura. (…) A cultura forma e define o cidadão. Dá-lhe identidade, valoriza-o e completa-o. A cultura é um bem inestimável, com valor intrínseco.” Bravo. E qual a medida difenciadora? “Preparar e consensualizar, com a devida antecedência, os programas de celebração de datas com elevado significado histórico nacional.” Podem ser mais específicos? “Em particular, a celebração, durante a legislatura, dos 900 anos da batalha de São Mamede (1128), uma das datas fundadoras da nacionalidade.” Cheira-me que vem aí um novo feriado. Podem anotar na agenda: 24 de Junho. Obrigado AD.

O Bloco de Esquerda considera que “a política pública para a Cultura tem a responsabilidade de promover a criação e fruição culturais de toda a população e de contribuir para o rompimento da padronização e mercadorização da cultura.” Uff… E? “Assim, ao Estado cabe garantir os recursos para preservar, estudar e divulgar o património comum, para promover a criação artística, para sustentar redes de equipamentos que garantam o acesso à cultura e divulguem as artes em todo o território. Só assim se combate a concentração dos meios de produção culturais que, pelo seu poder simbólico, além do económico, precisam de ser democratizados.” Tão eloquente definição merece uma medida à altura. E, na verdade, cá está ela: “garantir a atribuição, pela segurança social, em tempo útil, do subsídio por suspensão da atividade cultural.” Intermitentes finalmente ao poder! Em nome de todos, muito obrigado, Bloco.

Para os nossos visionários amigos da Iniciativa Liberal “a Cultura é de extrema importância para a formação pessoal e intelectual do individuo pelo conhecimento que gera, desenvolvimento do pensamento crítico e da sua capacidade em relacionar-se com o próximo.” E de que forma é que isto pode ser alcançado? Segundo a IL, através do “reconhecimento dos E-sports como desporto em Portugal”. Podem elaborar? “O enquadramento legal dos E-sports e a sua equiparação aos desportos tradicionais, sempre que adequado, afigura-se como importante, nomeadamente para a celebração de contratos de seguro, para autorização pelo Estado de vistos de residência de atletas estrangeiros e quanto ao estatuto dos estudantes de Ensino Superior que participem em competições profissionais.” Gamer amigo, a IL está contigo.

O LIVRE acredita que “a cultura é alegria, qualidade de vida, imaginação, comunidade. (…) As políticas culturais do LIVRE aspiram à inclusão, à descolonização e à construção de uma sociedade feminista, celebrando a diversidade do país.” E foi justamente a esta definição que o LIVRE foi buscar a sua medida. Trata-se da promessa de “descolonizar a cultura, contextualizando a história de Portugal nos museus, exposições, performances e materiais didáticos para que seja estimulada a visão crítica sobre o passado esclavagista, colonial e de violências perpetradas sobre outros povos e culturas e que seja reconhecido o seu legado e influência na sociedade atual.” Este processo já está em curso através de várias propostas artísticas que tenho visto nos últimos tempos, mas é sempre bom saber que há um apoio institucional. Bem-hajam!

Para o PAN “a cultura portuguesa merece mais no nosso país. Merece ser tida como prioritária pela política e merece ter o financiamento que é já há muitos anos reivindicado pelos profissionais na cultura. Sem cultura não há país, não há história, não há comunidade e não há conhecimento, pelo que nos resta cumprir a dignificação que este setor tanto merece.” Até me emocionei. E para o conseguir, o PAN vai enfrentar o touro pelos cornos, com um mix de defesa dos animais e promoção da Cultura. Como? Abolindo definitivamente todos “os espetáculos tauromáquicos”, garantindo “um fundo para a reconversão de todas as praças de touros em espaços de lazer e/ou cultura.” Olé!

Fiel à sua retórica, a CDU vê a Cultura como “um universo cuja riqueza não pode ser confinada a regras do mercado capitalista, um universo demasiado diverso e plural para ser limitado nas suas opções temáticas e estéticas ou nos objectivos da sua criação.” O meu punho direito até se ergueu sozinho. Mas há mais: “o objectivo básico fundamental da política de democratização e desenvolvimento cultural é o acesso generalizado das populações, em todo o território nacional, à criação e à fruição dos bens e actividades culturais.” Segue-se a medida vencedora (e assumo que a minha escolha foi absolutamente parcial): “valorizar o cinema português, salvaguardando o carácter integralmente público da Cinemateca”, (muito bem!) “reforçando os meios financeiros e humanos do Instituto do Cinema e do Audiovisual” (apoiado!) “e promovendo o apoio à criação e distribuição cinematográfica nacional e não comercial.” (inserir emoji a sorrir e a lacrimejar) Obrigado camaradas!

“É entendimento do CHEGA que (…) o conceito de Cultura corresponde, no sentido lato, à conjugação do Património Cultural nacional de referência nas suas várias formas (edificado móvel e imóvel - histórico, artístico, tradicional, monumental, vernacular, imaterial, cultural natural ou contemporâneo) e imaterial (língua, tradições, actividades criativas culturais).” Medida: “recusar a culpabilização histórica e protecção do património cultural, impedindo a sua devolução a países terceiros por puros motivos ideológicos, muitas vezes baseada numa visão unilateral dos eventos passados, que pode levar a simplificações e distorções que não fazem justiça à complexidade dos factos.” E tirem daqui as vossas conclusões.

E pronto, é isto. Estavam à espera de quê, de milagres? O milagre está, cada vez mais, nas nossas mãos. Vai estar no dia 10 de Março, através do voto de cada um, e em todos os dias que se seguem, na nossa acção cívica. Seja qual for o resultado, é cada vez mais evidente que a mudança que todos sonhamos está em nós, no nosso papel activo na sociedade. Mas antes disso, e acima de tudo, VOTEM!

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“Eeny, meeny, miny, moe” por Crypt e “Vote em mim” por Rita Lee.

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