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O verbo e o modo (I) - O Verbo

Esta e a próxima crónica terão como pano de fundo as eleições que se avizinham. Numa conversa pública, Manuela Carmena disse que as pessoas não estão nem aí para o que dizem os políticos, não podia concordar mais com ela. A ideia que nos fica é que a maioria dos políticos deixou de ter um pé no mundo real. Vemos congressos, discursos inflamados, troca de cadeiras, vitórias pessoais e tudo isto nos parece um episódio mau de House of Cards.

Crónica 74
19 Janeiro 2024

Esta e a próxima crónica terão como pano de fundo as eleições que se avizinham e abordarão dois temas que me inquietam. Primeiro, como cidadão e democrata, preocupa-me o fosso gigante que existe entre aquilo que é o discurso político e a vida real, e na crónica presente é sobre a erosão da Democracia, e sua possível salvação, que irei falar. Complementarmente, como cidadão e actor, preocupa-me o futuro da Cultura, e irei viajar na próxima crónica pelos programas dos principais partidos, na esperança de encontrar, por milagre bem sei, políticas culturais minimamente delineadas.

Mas agora, palavra ao verbo. “Tenho a sensação de que estamos a viver um momento em que o discurso que se ouve nos meios, o que se lê nos jornais e, claro, o discurso dos políticos, está na estratosfera. Eu ando muito pelas ruas, uso o metro, falo com muita gente, e a verdade é que há um distanciamento enorme entre a classe política com, peço desculpa, as suas parvoíces, e a sociedade. O discurso político é insuportável. Admito que é muito difícil que me interesse. Parece-me infantil. E não tem nada a ver com a vida da maior parte das pessoas.” Quem fala assim é Manuela Carmena, que foi Presidente da Câmara de Madrid (2015-2019), numa conversa moderada por Jordi Garcia (El País, Tinta Libre), que contou também com a escritora e jornalista Elvira Lindo. 

Creio que este desabafo da ex-alcaldesa de Madrid encontra eco em todos nós. É desconcertante ver a pobreza de conteúdo no debate político, a infantilização do discurso e a sobrevalorização das guerras partidárias. Quando a certa altura Carmena diz que as pessoas não estão nem aí para o que dizem os políticos, não podia concordar mais com ela. Porque a ideia que nos fica é que a maioria dos políticos deixou, a certa altura, de ter um pé no mundo real. Vemos congressos, discursos inflamados, troca de cadeiras, vitórias pessoais, fins de ciclo, novos ciclos e tudo isto nos parece um episódio mau de House of Cards. Disse-me uma vez, com muita graça, um encenador amigo ao reagir à minha indignação perante um qualquer embróglio político: “mas tu estás assim porquê? Eles estão lá a tratar da vidinha deles, a gente não importa pra nada.” Por muito que me custe, é assim que às vezes vejo o que se passa na arena política. É uma cena lá deles. E eles sabem disso.

Como tal, para não perderem o seu público, isto é, os seus eleitores, fazem um apelo às armas, ou saturando exageradamente a realidade com cores irreais, ou pintando-a de um surreal preto-e-branco, consoante os seus interesses mas não de acordo com as nossas vidas. Porque nenhuma das visões é real. Ou seja, assim como não vejo o mar de rosas que me vende o Governo, também não vejo o quadro de miséria que a oposição, tanto à direita como à esquerda, pinta. Assim como não vejo a capital efervescente que Moedas vê nos seus sonhos cor-de-rosa, também não vejo uma Lisboa irremediavelmente perdida e descaracterizada para todo o sempre que os seus opositores denunciam.

Este quadro de comportamento polarizado da classe política pode levar a dois tipos de resposta: ou alienação ou mimetização. Nenhuma das duas é boa. A alienação significa o divórcio definitivo entre o povo e os seus governantes, e o aumento gradual da abstenção é um sinal claro desta reacção. A mimetização significa a adopção por parte do cidadão comum de uma postura de político profissional, uma espécie de “todos são árbitros” do futebol mas no campo do debate de ideias, onde a temperança deu lugar à radicalização. Prova disto são as caixas de comentários de qualquer post sobre questões mais ou menos fracturantes, com uma violência e um extremismo tais que impossibilitam qualquer intenção de diálogo. Tal como acontece nos debates televisivos.

Alienados da verve política ou contagiados por ela, o certo é que andamos todos irritados. Muito irritados. E assim é difícil que a política, a boa política, aconteça. Assim é difícil que a Democracia funcione. Mas o certo é que o PS sabe que fez asneira, muitas asneiras, e é visível o esforço de mobilização do seu eleitorado. Após oito anos no poder, não conheço um socialista motivado, à excepção talvez de Pedro Nuno Santos, mas vejo toda uma esquerda mobilizada pelo medo, real e do qual eu partilho, de uma viragem à direita demasiado radical. Abrindo alas para uma nova geringonça, Mariana Mortágua na primeira declaração do ano, validou este medo e disse que o principal objectivo do BE nestas eleições é que a direita continue em minoria, porque sabe que a maioria teria de incluir necessariamente o Chega, apesar de Montenegro negar este cenário.

Mas o PSD também sabe que tem um líder desprovido de qualquer carisma, e ideias, e é sem grande convicção que os sociais-democratas elevam os dedos em V. Esta falta de stamina é tal, que Montenegro sentiu a necessidade de ressuscitar uma marca política já testada no mercado para ver se animava as hostes. Mas a AD de Sá-Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro-Telles não encontra um digno reflexo no elenco desta reposição, composta por Montenegro, Nuno Melo (gasp) e um fadista do século XIX. Foi pior a emenda que o soneto, porque mais vale só que mal acompanhado, mas o mal já está feito e quem vai cash-in com isto tudo é o Chega, que vai ter uma votação de tal maneira representativa, que o PSD vai, ah pois vai, querer formar Governo com Ventura (nem que para isso Montenegro tenha de abdicar do seu lugar, permitindo o regresso do grande desejado).

É este o problema democrático destas eleições. É bem provável que os socialistas saiam de cena e que a direita ocupe o lugar que tanto deseja, repetindo a alternância de poder, mas não nos enganemos: esta direita não é a direita que conhecemos. Esta direita injectada com esteróides populistas e fascistas e neo-liberais vai ser um atentado à Democracia. Porquê? Porque, como bem disse Carmena, “a Democracia é, no seu core, igualdade. E há muita gente que não quer igualdade.” E sabemos bem que gente é esta.

Mas por outro lado… copo meio cheio e nunca copo meio vazio… “a vida é como os interruptores, uns dias para cima e outros para baixo”, como dizia o Herman. E este não desejável mas provável revés da nossa fortuna poderá ser o susto que precisávamos para acordar as nossas convicções. A preguiça em votar, a preguiça em alimentar os movimentos cívicos com tempo e dedicação, a preguiça em debater, a preguiça, no fundo, em aprofundar a Democracia, levou-nos a este ridículo no qual não estamos, infelizmente, sozinhos. É o mesmo ridículo que vai permitir o regresso de Trump, a chegada de Le Pen ao poder e tantos outros ridículos que se anunciam por aí. Que fazer então? Alienar? Mimetizar? Não, nada disso. É agora que temos de arregaçar as mangas e não baixar os braços. Diz Carmena: “preocupa-me mais o que não fazemos, que o que fazem os outros.”

O que é que não estamos a fazer? Não estamos a defender a Democracia como poderíamos. E se nós o fizermos, se nós a defendermos, será mais difícil que os outros, os que não acreditam nela, a ataquem. Deverá ser esta a nossa luta. Mesmo que a esquerda se mantenha no poder, com outros players e moldes, mesmo que a direita coligada consiga fazer a geringonça da vingança, o facto é que isto está e tremer por todos os lados. É a Democracia em perigo e é com ela que nos devemos preocupar, pois o resto são só palavras a girar na estratosfera partidária. A política é demasiado importante para ser deixada só nas mãos dos políticos. Não temos todos de pensar da mesma maneira, mas temos todos de pensar. Democraticamente.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“I have a dream por Martin Luther King, Jr.

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