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O que rende é herdar o Continente

A presidente da Sonae diz haver uma “campanha de desinformação” contra os hipermercados, mas a verdade é que os preços dos produtos alimentares não param de subir, mesmo quando a inflação abranda. E os baixos salários das famílias das classes trabalhadoras não esticam. Não, não estamos todos no mesmo barco.

Crónica 74
16 Março 2023

A semana passada, Cláudia Azevedo, presidente da comissão executiva da Sonae, que detém a cadeia de hipermercados Continente, dirigiu uma carta aos trabalhadores na qual lamenta uma “campanha de desinformação sobre as causas da inflação alimentar”. Uma campanha certamente deliberada e organizada, orquestrada pelo maquiavélico inspetor-geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), em conluio com o ministro da Economia.

Esta missiva, em tom de vitimização, surge, note-se a coincidência, na sequência de declarações de António Costa Silva, que admitiu a possibilidade de tomar “medidas mais musculadas” – sem, na verdade, adiantar nada de concreto – para conter a inflação nos bens alimentares. Na mesma conferência de imprensa, Pedro Portugal Gaspar, inspetor-geral da ASAE, apresentou dados bastante esclarecedores: em algumas grandes superfícies têm sido registadas margens médias de lucro bruto de até 50% em bens alimentares essenciais, como as cebolas (superior a 50%), os ovos, laranjas, cenouras e febras de porco (entre 40 e 50%), ou ainda as conservas de atum, azeite e couve coração (entre 30 e 40%).

Embora reconheça que “o nível da inflação dos produtos alimentares tem sido mais elevado do que a inflação média geral”, a presidente da comissão executiva da Sonae recusa quaisquer responsabilidades diretas do setor da distribuição alimentar: “os culpados da inflação não são os hipermercados/supermercados”, mas sim as convenientemente abstratas e longínquas “cadeias de produção” globais. Na verdade, as concretas cadeias nacionais, que a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) conhece bem, revelam uma realidade diferente.

Em comunicado, a CNA sublinha que “o rendimento dos agricultores desceu 11,8% em 2022, segundo o INE, por não conseguirem escoar a produção a preços justos e capazes de compensar os aumentos dos custos de produção, não é preciso fazer grande exercício para saber quem fica com a fatia de leão. Basta olhar para os crescentes lucros milionários – e escandalosos – das empresas da distribuição de alimentos”.

Com efeito, apesar do abrandamento da inflação em Portugal, os preços dos produtos alimentares continuam a evoluir no sentido oposto. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em fevereiro, o Índice de Preços no Consumidor recuou para 8,2% (taxa inferior em 0,2 pontos percentuais à registada em janeiro), contudo, o índice referente aos produtos alimentares não transformados fixou-se nos 20, 1% (em janeiro, situava-se nos 18,5%). Na prática, estas estatísticas traduzem-se na perda de poder de compra das famílias das classes trabalhadoras e em cortes cada vez mais drásticos no consumo, sobretudo na alimentação, para tentar esticar os baixos salários.

Dados do INE relativos a 2022 apontam para a redução de 2,3% em volume, o equivalente a menos 573 milhões de euros (face a 2021), nas despesas em bens alimentares comprados pelas famílias residentes em Portugal - nem no tempo da troika esta quebra foi tão significativa. Enquanto isso, “o valor da fatura dos lares com comida subiu a um ritmo recorde”, avança o Diário de Notícias.  De acordo com a ASAE, o cabaz de bens alimentares essenciais passou de 74,9 euros (em janeiro de 2022) para 96,44 euros (em fevereiro de 2023).

Neste momento tão difícil para o setor da distribuição alimentar, em geral, e para o grupo Sonae, em particular, que, nas palavras da herdeira de Belmiro de Azevedo, sofrem danos “gravosos” à sua reputação, devemos ser solidários e empáticos com as classes possidentes. Afinal de contas, num ato de generosidade e abnegação, até “baixámos as nossas margens para acomodar o aumento dos custos, que também nós sofremos”, afirma Cláudia Azevedo. O sacrifício dos acionistas da Sonae merece a nossa compaixão.

Ironias à parte, a utilização do plural não é inocente, pelo contrário, tem por objetivo criar uma falsa ideia de união e igualdade na dificuldade, como se todos os trabalhadores da Sonae e do Continente estivessem exatamente nas mesmas circunstâncias, do conselho de administração às trabalhadoras das caixas de supermercado. Sabemos perfeitamente que isso não é verdade, o que torna o descaramento de Cláudia Azevedo ainda mais revoltante. Num tom absolutamente condescendente, refere o “orgulho” que tem na “equipa do Continente”, “nesta altura em que sua a reputação está a ser atacada”. A herdeira de Belmiro de Azevedo finaliza com a arrogância característica da sua classe: “fazemos o que está certo. Sempre o fizemos e sempre o faremos”. Certo para quem?

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