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“O professor Marcelo”, o escorpião

Qual é a natureza deste nosso escorpião? Para lá de todos os trajes mediáticos que vestiu ao longo da vida, Marcelo é produto das suas origens familiares e ligações políticas de classe, do amigo Ricardo Salgado à CUF. Marcelo é inimigo. Sempre foi. E nem é dos melhores, longe disso.

Crónica 74
15 Fevereiro 2024

Um dos muitos legados tóxicos de Marcelo Rebelo de Sousa para a cultura política nacional é esta mania de haver uma chusma de comentadores armada em avaliadora de duelos políticos na televisão: debates políticos curtos, comentários ideológicos longos. O enviesamento para a direita é natural nestes preparos, bem como a misoginia, já agora. Foi o “professor Marcelo” que começou a dar notas no fim da história, ali pelos anos 1990, na TSF. Graças a um espaço de comentário semanal, “o Marcelo” foi vendido pela televisão à Presidência da República.

Não podia ser de outra forma, dadas as relações de propriedade subjacentes aos aparelhos ideológicos televisivos. Afinal de contas, hoje, a Chega News Network (CNN) é controlada por um “escroque”, para seguir a legal fórmula de Ana Gomes, e a Sociedade Indigente de Comunicação (SICN) é controlada por um Balsemão, que encarna o capitalismo de herdeiros sem qualquer mérito. Estes imitaram o grupo Cofina (CMTV-Sábado), desta feita na promoção descarada do novo rosto luso do fascismo.

Em canal aberto, a situação é ainda pior: mamonistas, como Paulo Portas e Marques Mendes, fazem política de direita durante horas, com total ausência de pluralismo ideológico. Imitam “o Marcelo” na sua convicção de que na televisão para milhões vigora uma versão da chamada Lei de Say, inaplicável ao resto da economia: a oferta política cria aí a sua própria procura política, através do condicionamento ideológico. Podem ter razão, em parte.

Entretanto, “o Marcelo” é a mais poderosa expressão mediática desta política com p pequeno, a que aparentemente só governa o vazio mediático. O teórico político Peter Mair escreveu sobre este “governo do vazio”, sobre o défice de soberania nacional, sem a qual não há democracia. A soberania foi perfurada pela lógica neoliberal da integração europeia. Escreveu também sobre tanta gente sem partidos e tantos partidos sem gente, sobre alternâncias sem alternativas. No meio desta falta de autoridade política democrática, floresce o novo fascismo, gerado pelo neoliberalismo, claro. 

E, na Presidência da República, “o Marcelo” causa dano à Constituição: da injustificada dissolução da Assembleia da República à complacência em relação à extrema-direita que opera à margem da ordem democrática, como se viu nas golpistas declarações de um polícia que se diz sindicalista, por exemplo.

Nos tempos livres, “o Marcelo” ainda tem tempo para as suas manobras, como assinalou o jornalista Miguel Carvalho no Twitter: “Ao Público, Marco Galinha revela algo há muito sabido nos bastidores: que o PR [Presidente da República] o incentivou a comprar a Global Media. Quando, em devido tempo, questionei Belém, a resposta oficial foi esta: Marcelo recebera Galinha como outros empresários do setor, nada de novo.”

Já alguém disse que “o Marcelo” é como um escorpião: a travessia do rio tinha sido longa e este acabou por não escapar à sua natureza. Uma metáfora batida que serve para sublinhar a complacência político-ideológica de António Costa em relação ao Presidente de uma minoria de portugueses. Costa foi avisado a tempo.

Mas qual é afinal a natureza deste nosso escorpião? Para lá de todos os trajes mediáticos que vestiu ao longo da vida, para lá das questões de saúde mental, tantas vezes folclorizadas, Marcelo é um produto das suas origens familiares e ligações políticas de classe, do amigo Ricardo Salgado à CUF, cujo hospital mereceu a primeira visita presidencial, passando pelo sombrio Marco Galinha.

O compromisso é mesmo com o “sistema nacional de saúde”, ao invés de Serviço Nacional de Saúde (SNS), disfarçando mal a aposta no capitalismo da doença. Note-se que os Mello alienaram a sua lucrativa participação na rentista Brisa para se focarem em centenas de milhões de investimento nos hospitais, ajudados por quase metade do Orçamento do Estado que vai para a saúde dita privada. Sobram sempre alguns milhões para financiar campanhas mediáticas contra o SNS e “o Marcelo” sabe tudo sobre campanhas mediáticas. Tem jornalistas, como Ângela Silva do Expresso, que ouvem vozes nos “corredores de Belém” e que estão prontos para reproduzir todos os factos políticos que aí são criados.    

“O Marcelo” ficará na história por meia dúzia de episódios picarescos e pela sua política de classe, aposto. É o vazio aparente encarnado. Na direita de sempre, Cavaco tem outro estofo, sempre teve. Veio de Boliqueime, o que é uma vantagem. Quem marca este país tende a nascer fora da elite do atraso de Lisboa, para o bem ou para o mal. O problema de Costa com Marcelo foi lisboeta e social antes de tudo: as elites do poder, de parte da esquerda e da direita, convivem aí de forma demasiado próxima, para prejuízo dos que chegaram a julgar as direitas politicamente civilizadas no essencial. Os filhos andam nos mesmos colégios e tudo. É todo um complacente caldo de classe.

Amigos, amigos, política sempre à parte. Na política valem os camaradas à nossa espera, que nos exigem presença e constância. E os aliados, que exigem paciência. Marcelo é inimigo. Sempre foi. E nem é dos melhores, longe disso.

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