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O meu amigo liberal

É verdade, tenho um amigo liberal. O meu amigo liberal, para quem eu sou o seu amigo esquerdalho, é uma pessoa inteligente, culta, informada, com uma mente aberta e uma compulsiva propensão ao debate de ideias. E é graças a estes diálogos acesos que temos conseguido identificar aquilo em que estamos de acordo e o que discordamos em absoluto.

Crónica 74
20 Julho 2023

Um dos aspectos mais curiosos quando comparamos diferentes línguas, é a existência de palavras que, definindo o mesmo, tanto são muito semelhantes entre idiomas diferentes, como não têm nada a ver umas com as outras. Por exemplo, café é basicamente a mesma palavra, seja para um português, um turco (kahveh), um inglês (coffee), um basco (kafea) ou um sul-africano (koffie). Já melancia, por seu lado, varia tanto de língua para língua que nem parece tratar-se da mesma fruta. Os franceses chamam-lhe pastèque, os espanhóis sandia, os ingleses watermelon e os bósnios lubenica, só para referir alguns exemplos da liberdade criativa a que diferentes línguas se lançaram na hora de baptizar a shalqui (como lhe chamam os albaneses).

Estas diferenças e semelhanças entre palavras de variados idiomas funcionam como uma boa metáfora para o que acontece ao nível das crenças, ideais e princípios de cada um. Há crenças, ideais e princípios bastante semelhantes ou que registam apenas ligeiras variantes entre dois seres humanos, mas há outras crenças, ideais e princípios que são tão diferentes de pessoa para pessoa que se torna difícil a tradução, entenda-se, o entendimento entre pares.

Feito o prólogo, chegamos finalmente ao título desta crónica, ao meu amigo liberal. É verdade, tenho um amigo liberal. Sei que enunciar isto assim desta forma pode soar tão bizarro como aquelas pessoas que dizem que “até” têm um amigo gay ou negro, mas passando a estranheza da frase (não do facto), o facto é que tenho um amigo liberal (sem até). O meu amigo liberal, para quem eu sou o seu amigo esquerdalho, é uma pessoa inteligente, culta, informada, com uma mente aberta e uma compulsiva propensão ao debate de ideias. E é graças a estes diálogos acesos que temos conseguido identificar os nossos cafés e as nossas melancias, ou seja, aquilo em que estamos de acordo e o que discordamos em absoluto.

Ao nível dos princípios comuns, ou dos cafés sem princípio, incluímos a vergonha que sentimos os dois e em doses iguais pela tendência à bandalheira corruptiva do PS. Quando esta maioria tremeu graças à catadupa de escândalos com vários ministros, graças ao colapsar das urgências, graças ao falhanço do IVA zero, graças a muitos etceteras, a TAP levou o primeiro prémio, atribuído pelos dois em ex aequo.

Sobre os Transportes Aéreos Portugueses ouvi a justa indignação do meu amigo liberal perante tudo o que se passou, desde a comissão de inquérito até ao Galamba gate. Partilhava com ele a indignação, até deitava mais achas para a fogueira nas várias conversas que tivemos sobre o assunto, mas a certa altura calei-me, já nem emitia qualquer som, ouvia-o só, aquiescia só, graças ao sentimento de uma vergonha que não era tão alheia como eu desejaria na altura, como alguém que é enxovalhado pelas asneiras perpetradas pelo seu clube de futebol.

Mas nem tudo são rosas (pun intended). Ou melhor, nem tudo são cafés. Ao nível das melancias, ou seja, do que nos separa, a sandia e o watermelon, embatemos sempre nas responsabilidades. Como chegámos aqui? Ele não hesita em apontar o dedo ao Sócrates, eu aponto mais longe para o Cavaco e mais perto para o Passos Coelho. Ele não entende esta minha repulsa crónica pelo Passos e eu não entendo como é que ele não a tem. “Mais papista que o Papa”, digo eu. “Fez o que tinha de ser feito, depois do estado em que o Sócrates deixou isto”, rebate ele. “Levando um país ao limite do desespero, cortando às cegas, numa atitude patética de ficar bem e ser o melhor aluno europeu, curvando-se de forma subserviente à Merkel?”, pergunto eu em forma de desafio. “Fazendo isso tudo foi o que permitiu depois o estado de graça do Costa”, remata ele. E por aí fora, sem entendimento à vista, até ver.

Concordo que muito do que se está a passar é resultado de poder a mais e que a perpetuação no poder é danosa para a democracia. Mas ao contrário do meu amigo liberal, eu não consigo contemplar a alternativa da forma despreocupada com que ele o faz. Evidentemente que, num cenário normal, volvidos estes anos de governo PS, e principalmente após esta problemática maioria, seria a vez do PSD, como foi no passado, com ou sem alianças.

Mas no passado havia um PP, que entretanto fez um harakiri com o Chicão, e deixou de fazer parte da equação para eventuais coligações. No passado não havia um Chega. No presente temos uma ainda fraca Iniciativa Liberal, e um PSD às aranhas, com um líder que não o é e que eu acredito piamente que, em caso de necessidade, se aliará sem grandes pudores a Ventura para chegar ao poder (veja-se por exemplo o que está neste momento a ocorrer em Espanha, com o namoro descarado e escandaloso entre o PP e o VOX).

Depois da mesmidade do café e da heterogeneidade da melancia, concluo esta minha crónica linguístico-ideológica recorrendo à palavra “água”. Em termos etimológicos (e de uma forma assumidamente simplista), podemos dividir o mundo entre a team latina, com acqua (italiano), auga (galego) e akvo (esperanto) e a team germânica, com wasser (alemão), water (inglês) e vatten (sueco). Ou seja, em termos de massa crítica, não é tão consensual como o café nem tão díspare como a melancia. A água é um bem essencial tanto para a vida de liberais como de esquerdalhas. Tal como a justiça social o é. Mas como sabemos, a gestão destes bens tão preciosos, como o são a água e a justiça social, é motivo de muitas tentativas e erros, da direita à esquerda.

Por seu lado, a team germânica da wasser, representada pelo meu amigo liberal (pun intended, outra vez) acredita que a IL é mais socialmente justa do que eu alguma vez gostaria de admitir. E confesso que após o visionamento de uma intervenção na Assembleia do deputado liberal Carlos Guimarães Pinto sobre o nosso sistema tributário, não houve ali grande coisa que eu pudesse rebater. É verdade. É verdade que pagamos impostos demasiado altos assim como é verdade que recebemos ordenados demasiado baixos. Mas por outro lado, eu, o amigo esquerdalha, aqui a representar a team latina da acqua, acredita que também é verdade que o neo-liberalismo é parte do problema e que dificilmente conseguirá ser parte da solução. E enquanto o meu amigo liberal tem muita fé num pequeno partido de direita, aqui o esquerdalha confia mais numa singela palavra de um pequeno partido de esquerda chamado “Bloco Com Mortágua no Comando” que em todo o programa eleitoral da IL.

Sei que o meu amigo liberal irá ler esta crónica, como faz habitualmente, e que a discussão que se seguirá será talvez mais acesa que o habitual. Sugiro que o façamos com um copo de uisce na mão (água em irlandês, entenda-se) e que brindemos no fim ao que ambos defendemos de forma incondicional: a nossa partilhada liberdade.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“Blues do tinto”, por Amaura.

 

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico. 

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