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O Mérito dos Pais

Não nos podemos queixar do resultado se não queremos resolver o problema. E o problema é acharmos que a meritocracia existe ou sequer é desejável. Não quero uma sociedade de 1% de vencedores hereditários e 99% perdedores. Quero uma sociedade em que todos lutamos pelo mesmo. 

Crónica 74
7 Fevereiro 2023

Como qualquer pessoa "terminalmente online", há interações específicas no Twitter que ficam a viver sem pagar renda na minha imaginação. Algumas delas são tweets divertidos. Outras só coisas embaraçosas que me fazem pensar que se calhar devíamos todos saber menos da vida um dos outros. Mas há uma expressão que há quase quatro anos me atormenta desde que a vi no Twitter. “Mérito familiar”.

É difícil de encontrar alguém que não seja um “meritocrata”, alguém que acredite que o trabalho, esforço e qualidades como inteligência, diligência, capacidade de liderança devem determinar o sucesso de uma pessoa. Que temos de promover as melhores pessoas para os cargos mais importantes. Mas também é óbvio que não temos igualdade de oportunidades plena, em que as pessoas podem ascender pelo seu mérito sem ser beneficiados ou prejudicados pela sua origem social.

O ideal da meritocracia esbarra contra a realidade das heranças, das vantagens estruturais que quem tem mais dinheiro tem mais capacidade de dar aos seus filhos todas as oportunidades para ter sucesso.

As melhores escolas, actividades extra-curriculares, explicações, acesso livre a cultura, a viagens, a liberdade de poder aceitar estágios não-remunerados noutra cidade porque há quem lhe pague a renda. E se isso falhar, há sempre lugar na empresa do pai (ou da mãe, não quero excluir as #girlbosses) ou um “pequeno empréstimo” para uma start-up. Não há nada de sinistro nesta ideia do ponto de vista dos pais. Claro que querem dar a melhor vida possível aos filhos. Claro que farão de tudo para lhes dar todas as oportunidades.

Mas a meritocracia é inevitavelmente uma competição desigual entre ricos e pobres, em que os poucos pobres que conseguem “provar o seu mérito” são exibidos como provas de que o sistema funciona. A meritocracia é um ideal bonito e lógico até. Qual a alternativa? Ser tudo aleatório? Acabar com a farsa e voltar ao hereditarismo aristocrático?

Muitos devem saber que o termo, que hoje é usado sinceramente, tem uma origem satírica, ou pelo menos crítica. Michael Young, um sociólogo britânico, cunhou o termo em 1958 como um aviso que um sistema que ostensivamente privilegiasse o mérito podia ser distópico. Se quem tem sucesso é porque merece, o reverso da moeda é que quem sofre as consequências do falhanço, a pobreza e miséria, será porque merece. E se merecem o sofrimento que têm, então não há obrigação moral para os ajudar.

Já devem ter ouvido esta lógica, “se é rico é porque trabalhou para isso”, “é pobre porque quer, que vá trabalhar”, “o que falta aos portugueses é literacia financeira”. Se o pobre merece ser pobre, então cortem no RSI, cortem na habitação social, cortem no subsídio de desemprego, que não merecem ajuda.

Se esforço e trabalho se refletisse em retorno financeiro, não havia “administradores não executivos” a receber milhares de euros por ir a reuniões esporádicas. Nem seria possível a atual situação em que um em cada três pobres tem trabalho estável em Portugal. Pelo contrário, uma mãe solteira que trabalha a tempo inteiro seria uma bilionária. E CEOs certamente não ganhariam 32 vezes o que os seus trabalhadores ganham. Até porque mesmo que trabalhem muito e durmam pouco, não há maneira de fazer caber 256 horas de trabalho num dia.

Se a meritocracia não existe na prática ou foi pervertida, quem serve a ideologia da meritocracia então? Todas as classes dominantes históricas têm estas três coisas em comum: 

  • Um poder desigual e antidemocrático sobre a sociedade.
  • Uma vontade de passar esse poder aos seus filhos, independentemente do seu mérito.
  • Como é notório o seu poder desigual e anti democrático, isso causa mal estar na maioria das pessoas, precisam de uma ideologia que justifique o seu poder.

Ora, os esclavagistas antigos tinham explicações bélicas e religiosas para justificar o seu poder. Um povo conquistado “merecia” ser escravizado. Os Deuses haviam escolhido o seu favorito em batalha e despojar os vencedores do seu prémio em escravos seria ir contra a vontade dos Deuses.

Já os esclavagistas mais modernos justificaram com a Bíblia, com excepcionalismo europeu e com racismo científico. Os “povos inferiores”, como crianças, precisavam de ser educados antes de poderem ter a sua independência. Vemos essa lógica ainda hoje quando se fala da irresponsabilidade dos países pobres e se têm a “maturidade democrática” para gerir os seus próprios recursos.

Os senhores feudais inicialmente teriam uma justificação prática: trabalha a minha terra e proteger-te-ei de bandidos e invasores. Mas em tempos menos turbulentos foi preciso outra lógica, a do direito divino. Deus, na sua omnisciência, tinha escolhido o papel de todos à nascença e todos tinham de cumprir o seu, não fossem desobedecer a Deus. Esta rigidez reflecte-se até nos contos de fadas. Nessas histórias mesmo os heróis populares, como Robin dos Bosques, têm de ser eles próprios nobres de nascença. A rapariga pobre escolhida pelo Príncipe Encantado descobre no fim que afinal era uma princesa perdida. 

Mas esta rigidez não podia ser aceite pela ascendente classe burguesa, claro, que via os frutos de um capitalismo nascente a ultrapassar um feudalismo caquético e ultrapassado, mas o seu mérito a ser ignorado em assuntos políticos, enquanto aristocratas queixudos, produtos de várias gerações de incesto, açambarcavam títulos, prestígio e poder político.

É na burguesia que surge esta ideia e depois das revoluções liberais e da democracia, quando as aristocracias são desmanteladas, são os burgueses que se tornam a classe dominante.

E para justificar passar o seu poder hereditário para que o povo não se ressentisse foi preciso criar uma mitologia. Eles teriam de ter a riqueza e poder porque a mereceram. Os pobres não tinham porque não se tinham esforçado. 

Como seria mal visto simplesmente viver dos rendimentos das suas posses, dos seus investimentos, das suas rendas, como um senhor feudal, inventou-se um trabalho para a classe dominante, o de “gestor”.

O gestor faz milagres e nunca pode ser questionado, afinal, de gerir passou a gerar: é ele que “gera riqueza” (com o trabalho dos outros) e é ele que “gera emprego”. Mesmo quando a sua boa gestão é explicitamente despedir pessoas para poder aumentar os lucros da empresa é suposto elogiamos a sua capacidade criação de emprego. E quando lhes apontarem o seu poder hereditário, não eleito, podem mostrar o CV e dizer “mas eu andei nas melhores escolas, eu tirei o meu curso de gestão, eu fui executivo aqui e ali, estás a dizer que um mero trabalhador sabe mais de gerir o meu negócio que eu?”. Mas quem tem a possibilidade financeira de seguir este percurso? Quem tem os contactos, familiares e não só, para ter as portas abertas a estas oportunidades que servem de chumaço no CV?

É claro que se houvesse meritocracia talvez em Portugal os trabalhadores não fossem mais qualificados que os patrões.

Convencemo-nos que nas escolas de gestão há um conhecimento mágico, intransmissível, que só o “gestor”, que nunca sabe explicar muito bem o que faz, mas que é muito importante, tem. Só eles, que andaram a passear nos corredores do poder, nos seus jantares executivos é que têm a “experiência” para gerir.

Para médicos, professores, enfermeiros, construtores civis e até profissionais de tecnologias de informação a lógica é sempre a de desvalorizar o trabalho. “Abram mais vagas na faculdade”, “facilitem mais a imigração”. “É oferta e procura, se reduzirmos a escassez de médicos, a saúde torna-se mais barata!” Mas nunca aplicamos esta lógica a gestores. Se são tão importantes, por que é que não os estamos a produzir em barda? Por que é que é tão importante que sejam poucos e muito bem pagos?

E isto leva-me ao meu ponto final. Caímos todos nesta tanga. Passámos meses a discutir a remuneração faraónica da Alexandra Reis na TAP, os 500.000 euros da sua rescisão, sem nunca questionar o sistema que a justifica. Alguém acredita que qualquer gestor traga meio milhão à TAP com o seu trabalho? Alguém acredita que um gestor por ganhar cinco mil euros em vez de quinze mil euros é incapaz de fazer o seu trabalho?

“Ah, mas precisamos atrair os melhores gestores, senão eles vão lá para fora”. Que vão lá para fora. Estou farto dos nossos “melhores gestores”. Dos Zeinal Bavas, dos Ricardo Salgados, dos Berardos, dos Olivera e Costas, dos Horta e Costas, das Cláudias Azevedos. Todos génios da gestão, com direito a capas de revista a elogiar o seu jeito inato para o negócio, até serem chamados a comissões de inquérito.

É esta lógica, é acreditarmos no mito do gestor, que dá aos partidos do poder a licença de encher as empresas públicas dos seus Boys e Girls, todos muito qualificados, todos com grandes currículos. 

Não nos podemos queixar do resultado se não queremos resolver o problema.E o problema é acharmos que a meritocracia existe ou sequer é desejável. Que é desejável andarmos a competir uns com os outros e a arranjar maneiras de justificar não ajudar quem precisa.

Não quero uma sociedade de 1% de vencedores hereditários e 99% perdedores. Quero uma sociedade em que todos lutamos pelo mesmo: para todos termos uma vida melhor, não uns terem uma vida melhor às custas dos outros. 

Morte à meritocracia.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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