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O Guião da Letargia

A greve, a manifestação e a violência são últimos recursos de quem se defronta com um governo não democrático ou, sendo eleito democraticamente, se recusa a responder às necessidades de quem mais precisa. Há violência todos os dias naquilo contra o qual as pessoas se manifestam.

Crónica 74
20 Abril 2023

Infelizmente, a cada protesto pelo mundo, seja contra a violência policial e o racismo institucional nos EUA, contra a perda de direitos sociais conquistados e recuo da democracia em França , contra a repressão autoritária e misógina no Irão, contra a guerra na Rússia, contra a crise climática na Alemanha e agora pela habitação em Portugal repete-se o guião.

  1. As pessoas juntam-se por uma causa meritória, mas que é inconveniente para o poder vigente, que necessita de mudanças ambiciosas e estruturais.
  2. A manifestação acaba com a polícia a bater nos manifestantes seja porque motivo for.
  3. Os telejornais passam mais tempo a falar dos “confrontos com a polícia" do que a debater a causa da manifestação.

Claro que existe sempre uma hoste de pessoas muito preocupadas em como uns “arruaceiros” estão a dar mau nome a uma causa. Não eles, claro, eles também apoiam a causa. Mas estão muito preocupados com uma terceira pessoa imaginária que poderia ser afastada de um movimento meritório pelos “arruaceiros”. Talvez tenham medo eles próprios de serem vistos como “arruaceiros” por apoiarem uma causa meritória.

O problema é que eles estão a escolher preocupar-se com isso. Estão a escolher, talvez subconscientemente que preferem ordem a progresso. Querem ser boas pessoas e por isso têm de apoiar as causas - porque são boas - mas como “boas pessoas” são contra vandalismo e “arruaceiros” e não se metem com a polícia, então também têm de mostrar que são “dos bons”. Dos que não defendem a suposta violência dos manifestantes.

Imaginam-se como o Ghandi ou o Martin Luther King Jr., mas sem a greve de fome nem arriscarem serem presos. É mais no sentido da fantasia do pacifista que quer coisas boas, mas não faz nada por elas, que lamento dizer, nunca foi como elas foram conseguidas. Talvez vote (numa opção “moderada”, claro, não queremos abanar muito o barco). O mais importante é mostrar que são boas pessoas que defendem coisas boas mas que são contra a violência para as conseguir.

Outro exemplo é como falam de greves. Sim, claro que defendem salários mais altos, mas não podiam fazer uma greve que não incomodasse? Os professores não podiam fazer uma greve que não prejudicasse os alunos? Os maquinistas uma greve que não prejudicasse quem anda de comboio? Os médicos e enfermeiros uma greve que não prejudique pacientes? A resposta óbvia é não.

A greve, a manifestação e a violência são últimos recursos de quem se defronta com um governo não democrático ou, sendo eleito democraticamente, se recusa a responder às necessidades de quem mais precisa. Se tivesse sido possível resultados sem disrupção, já teriam sido conseguidos.

Claro que isto não é uma posição consistente. O 25 de Abril, elogiado por ser uma revolução sem sangue, não deixa de ser um golpe de estado pela força das armas. As manifestações, greves, todas as formas violentas de acção directa do século XIX e XX deram-nos coisas como oito horas de trabalho por dia e o fim-de-semana e a proibição do trabalho infantil.

Teriam aplaudido a polícia a reprimir e matar aqueles que se manifestavam para ter trabalhos mais dignos? Teriam aplaudido a polícia britânica quando prendeu o Ghandi? A polícia americana quando prendeu o Martin Luther King Jr.? Os PIDEs que prenderam, mataram e torturaram os resistentes à ditadura?

No entanto, vejo-os a aplaudir os manifestantes anti-guerra na Rússia e os manifestantes pela dignidade das mulheres no Irão e a condenar a repressão das forças de autoridade nesse país.

Portanto, há alturas em que claramente acham que o progresso que a ordem e a lei. Que percebem que a lei não é sempre moral, que a polícia não é sempre virtuosa. Será que basta não ser uma polícia ocidental?

A maior hipocrisia é que não é que sejam contra a violência. Há violência todos os dias naquilo contra o qual as pessoas se manifestam. A violência de viver na rua, de não saber onde dormir, de não saber se conseguem pagar as contas, alimentar os filhos, a violência de passar frio, de se ser despejado. A violência de vir para um país à procura de uma vida melhor e ser tratado como um criminoso. De não ter direitos até ter papéis, de não ter uma autoridade a quem recorrer quando se é explorado. A violência de viver em comunidades segregadas e sub-investidas, onde a ajuda do estado quando chega vem atrás de camadas de burocracia e tens de recursos absurdos. A violência de ter um planeta destruído, espécies extintas, os nossos pulmões doentes pela poluição para o lucro de algumas empresas. A violência de quem está doente no corpo ou na mente e não tem acesso a tratamento. A violência de trabalhar a tempo inteiro, até ter mais que um emprego e mesmo assim ser pobre

Essa violência foi naturalizada. Ou pelos meritocratas que acham que quem é pobre é porque quer ou pela abstração do mercado. Convencemo-nos que não há nada a fazer, mas não é verdade. Tantas vezes na história as pessoas juntaram-se, pararam o funcionamento normal da sociedade e exigiram condições melhores de quem é suposto representá-los. Foi o que nos deu direitos laborais, habitação pública e sistemas nacionais de saúde por toda a Europa. Isso é a democracia. Isso é o poder do povo.

Portanto quando houver mais protestos - e à medida que tudo piora vão haver mais protestos - e o telejornal passar mais tempo a falar de um graffiti ou um vidro partido que do que motivou a manifestação, ofereço-vos este organograma que me tem sido tão útil.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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