Índice

O eleitor português e o seu gosto por sofrer

Sobre o milhão e 300 mil pessoas que votaram no fascismo, nem me apetece conjecturar mais. Votaram num partido racista, xenófobo, homofóbico, machista e cheio de criminosos porque quiseram. Se acham que isto é protestar, então é a forma mais estúpida de protestar de todo o mundo.

Crónica 74
22 Março 2024

Podemos dizer que é falta de literacia política, achar que é falta de interesse e informação, especular sobre a forma como muitos aspetos da sociedade portuguesa nos fizeram chegar aqui e, provavelmente, até será um pouco de tudo isto. Mas ninguém me tira da cabeça que também há mesmo muita gente no país que gosta de sofrer. Tenho a certeza. É impossível que assim não seja. É que parece que nem lhes apetece assim tanto ter uma vida melhor, porque é mais satisfatório ficar a sofrer.

Sobre o milhão e 300 mil pessoas que votaram no fascismo, nem me apetece conjecturar mais. Votaram num partido racista, xenófobo, homofóbico, machista e cheio de criminosos porque quiseram. Se acham que isto é protestar, então é a forma mais estúpida de protestar de todo o mundo.

Mas para além disso, houve mesmo muita gente a votar na Aliança Democrática (AD) e na Iniciativa Liberal (IL). Não estou a falar de quem recebe bons salários, quem tem dinheiro para pagar colégios e saúde privada, quem leva uma vida melhor que a do que 90% dos habitantes do país, e que mesmo assim está sempre a chorar porque acha que vive asfixiado em impostos nesta ditadura socialista. Estas pessoas, eu compreendo que votem nestes partidos. São pessoas que só querem saber de si e dos seus, e cuja única vez que sentiram empatia foi num torneio de padel de CEOs, quando um deles teve um cãibra.

Falo de outras pessoas. De todos aqueles que têm tido cada vez mais dificuldades em comprar comida, mas votaram na AD e IL que querem baixar os impostos ao Continente e ao Pingo Doce que têm andado a bater recordes de lucro. De quem tem a corda ao pescoço para pagar a prestação da casa ao banco, mas votou nestes partidos que não querem aumentar os impostos à banca, nem fixar taxas de juro, pelo contrário, quando a banca em 2023 teve quatro mil milhões de lucro. De quem está desesperado, por outras razões, na sua situação habitacional, mas votou nestes partidos que querem voltar a implementar os vistos gold, aumentar o número de ALs e nunca na vida acabar com os benefícios fiscais aos especuladores imobiliários. De quem tem problemas de saúde para ser tratados, e votou em partidos que querem desinvestir ainda mais no SNS e aumentar os custos dos tratamentos para toda a gente (mais dinheiro público a ser transferido para os accionistas dos grupos de saúde). E podia continuar a dar exemplos por aí fora.

Agora, porque é que isto acontece? Havia alternativas ao PS, se estão fartos deste. Há três partidos à esquerda com propostas concretas para melhorar muito a vida das pessoas não ricas. Portanto, ou esta gente gosta mesmo de sofrer e quer ficar ainda pior. Ou estes partidos não estão a fazer o melhor que podem para comunicar as suas ideias. Na volta, é um pouco das duas.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt