Índice

O décimo segundo jogador

Bolas de ténis, carros telecomandados e cadeados com o código 50+1 têm interrompido as partidas e são parte da luta dos adeptos dos clubes alemães contra mais recente tentativa de comercialização dos jogos pela Liga Alemã de Futebol. A resistência às tentativas de uma ainda maior privatização e alteração na dinâmica do futebol alemão com os seus adeptos não é de agora e as bolas de ténis também não. 

Crónica 74
22 Fevereiro 2024

Soa o apito inicial do jogo 1. FC Union Berlin x VfL Wolfsburg e seguem-se doze minutos de silêncio nas bancadas. Ergue-se, então, uma faixa na claque do Union e o estádio inteiro grita “estão a destruir o nosso desporto.” O esquadrão das bolas de ténis afina a pontaria ao campo e dezenas de bolas são atiradas. Jogo interrompido com os jogadores a recolherem aos balneários por duas vezes. Após a ameaça de cancelamento caso um terceiro protesto se verificasse daquela parte, os adeptos do Union deixam claro que deste lado não surgirão mais interrupções. Recolhem-se as faixas, retoma-se o jogo. É a vez do Wolfsburg. Novas faixas são erguidas e outras tantas bolas de ténis atiradas. Mais de meia-hora de interrupção na primeira parte e um jogo no limite de ser cancelado é a vitória que se soma à vitória por 1-0 da equipa da casa no estádio An der Alten Försterei.

Uma descrição que se poderia aplicar ao SpVgg Greuther Fürth x Hannover96, ao Hertha BSC x Hamburg, ao 1. FSV Mainz 05 x FC Augsburg, ao 1. FC Köln x SV Werder Bremen e a quase todos os jogos das últimas jornadas da Bundesliga e da 2. Bundesliga (e também da terceira divisão, ainda que esta não seja tutelada pela mesma federação). Bolas de ténis, carros telecomandados e cadeados com o código 50+1 têm interrompido as partidas e são parte da luta dos adeptos dos clubes alemães contra mais recente tentativa de comercialização dos jogos pela Liga Alemã de Futebol (DFL), que organiza e é responsável pelo licenciamento e marketing das duas primeiras divisões da Bundesliga.

A resistência às tentativas de uma ainda maior privatização e alteração na dinâmica do futebol alemão com os seus adeptos não é de agora e as bolas de ténis também não. Já em 2017/2018, protestos semelhantes ocorreram quando a DFL tentou calendarizar, sem sucesso, jogos às Segundas-feiras e em horários que dificultariam a deslocação dos adeptos aos estádios.

Em causa, desta vez, está um plano de negócio da DFL que prevê a venda de 8% dos direitos comerciais das duas divisões da liga alemã de futebol a investidores privados, no caso, a CVC e a Blackstone. Um plano aprovado em Dezembro de 2023 por 24 dos 36 clubes, incluindo um suposto voto favorável do presidente do Hannover96 Martin Kind, contrária à vontade expressa dos membros do clube, que pôs em causa todo o processo por ter subvertido o princípio 50+1. Ainda que os detalhes do acordo não sejam inteiramente conhecidos, na base dos protestos está, sobretudo, o pressuposto da abertura da liga aos investidores privados e o assalto à cultura desportiva participada e activa que se vai procurando conservar. 

Entretanto a votação caiu, a proposta for reformulada com algumas cedências e uma segunda votação apressada e anónima foi amplamente contestada, até porque não foi dado tempo suficiente para a consulta dos membros. Os protestos intensificaram-se e reuniram o consenso dos adeptos. Somaram-se um amplo debate em horário nobre e um inquérito mais alargado sobre a decisão de negociar com os investidores privados. O resultado alinha-se com as reivindicações dos protestos em campo: 62,1% atribuem a esta decisão um ponto numa escala de cinco. Na semana passada, a Blackstone retirou a oferta.

Por detrás destes protestos está o princípio 50+1, que se tenta a todo o custo preservar por ser esse o garante da construção colectiva dos clubes e a barreira às tentativas de alargamento à liga alemã do modelo de futebol-negócio de outras ligas, como a Premier League ou a La Liga. Em 1998, a DFL abriu a porta aos investidores privados nos clubes ao permitir que estes passassem a sociedades anónimas. A conquista da regra 50+1 foi, então, o que garantiu que os clubes mantivessem os membros como seus detentores maioritários (50%+1 acção). Isto traduz-se em aspectos fundamentais da vida democrática dos clubes, nomeadamente nos direitos de voto e de veto e de eleição das direcções, e também da vida desportiva, com a manutenção da acessibilidade dos preços dos bilhetes ou as decisões sobre intervenções aos estádios a passarem pelos adeptos. 

Há excepções, como o Bayer 04 Leverkusen (detido pela Bayer), o VfL Wolfsburg (detido pela Volkswagen) ou o RB Leipzig (detido pela Red Bull), com um enquadramento legal próprio cujo modelo de gestão não é alheio a uma relação diametralmente oposta entre o clube e os seus membros, e que não passa incólume nas disputas com os adeptos dos clubes que cumprem o 50+1.

É uma resistência que não se coloca, por isso, a cada tentativa de empresarialização mais imediata da liga mas que procura activamente não escancarar uma porta já aberta nas competições europeias, noutras ligas nacionais e em algumas esferas da liga alemã.

Não é, por fim, um audível último reduto de resistência ao futebol moderno (que aí está), mas uma ruptura contínua com a lógica operativa dos corpos dirigentes de afastamento agressivo dos adeptos da vida dos seus clubes e de uma conversão absoluta do futebol ao binómio consumidor/espectáculo que, por enquanto, está longe de conseguir ser implementada. A organização dos adeptos tem atrasado esta lógica e é também aí que se vai vivendo o futebol.

No final, tem sido sempre o décimo segundo jogador – os adeptos – a fazer recuar a Liga. À hora a que esta crónica é enviada a DFL anuncia que, devido aos protestos, decidiu por unanimidade deixar cair a proposta de comercialização dos direitos da Bundesliga.

Game. Set. Match. 

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt