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Não foi embora

Aníbal Cavaco Silva, que fez com que o Banco de Portugal se tornasse “independente” da democracia, mas dependente do capital financeiro, rumo à perda de soberania democrática, continua a querer aprofundar o processo de restrição democrática. Grande parte das heranças institucionais por si forjadas e apoiadas continuam por superar. É aí que reside grande parte dos nossos problemas. Há uma política que tem mesmo de se ir embora.

Crónica 74
14 Dezembro 2023

Corria o ano de 1986, em Coimbra, e a minha mãe levou-me ao primeiro desfile do 1º de Maio de que me recordo: “está na hora, está na hora, do Cavaco se ir embora”, gritei então pela primeira vez. Não foi embora. Um ano depois, o PSD obteria a sua primeira maioria absoluta: “paz, pão, povo e liberdade; todos sempre unidos no caminho da verdade” foi a enganadora expressão musical da hegemonia neoliberal em construção.

Só seria derrotado dez anos depois, graças a Jorge Sampaio e ao desgaste de tantos anos no poder, com traços autoritários crescentes. Foi a sua única derrota eleitoral, na primeira tentativa para chegar à Presidência da República. À segunda tentativa, teríamos mais dez anos de Cavaco Silva.

Deixou como legado uma economia política medíocre, mas ainda hoje por superar: da abertura do mais intenso ciclo de privatizações na Europa Ocidental, que reduziu o setor empresarial do Estado a quase nada, destruindo empresas estratégicas no processo (Cimpor, PT...), à liberalização financeira, geradora de instabilidade, culminando na adesão ao Sistema Monetário Europeu, antecâmera do rígido euro.

As “reformas da década”, título de um livro que publicou em 1995, são todo um programa de iniciativas liberais concretizadas, onde não podia faltar o aumento explícito da liberdade patronal e, correlativamente, a diminuição da liberdade laboral, a atenuação do que designou então por “proteccionismo exacerbado em prol do trabalhador por conta de outrem”. O aumento das desigualdades tem sempre origem na redistribuição regressiva das liberdades nos espaços onde se trabalha e, logo, onde se cria valor.

Margaret Thatcher, uma das suas fontes de inspiração, disse que a sua maior vitória foi Tony Blair, a alternância sem alternativa. Nos seus termos próprios, Cavaco Silva disse o mesmo, em livro de 1997 sobre a moeda única, a propósito do governo do PS que se lhe seguiu, que acelerou as privatizações e confirmou a decisão desastrosa de aderir a um euro causador de estagnação económica e impotência política: “A mudança de governo, em Novembro de 1995, não perturbou a paridade do Escudo, pois a preferência pela estabilidade nominal tinha sido já assumida pelo partido vencedor [PS] e a perspectiva de continuidade da política económica nas suas linhas fundamentais já tinha sido antecipada pelo mercado”.  

Sim, é necessário continuar a escrever sobre Cavaco Silva, sobretudo depois de um congresso do PSD em que Montenegro ficou na sombra do histórico líder das direitas, que continua a intervir com um raro sentido de oportunidade, mostrando, inadvertidamente, a incapacidade do líder formal do PSD. Cavaco vai intervir até ao fim e não deve ser criticado por isso. Temos aliás a obrigação de saber que o elitismo – “não é culto” – e o idadismo – “a múmia” – não são argumentos à altura da tarefa política de crítica do cavaquismo tardio, condição necessária para um combate consequente.

Um artigo de Cavaco Silva no Público de 4 de dezembro passado – “Contas certas”, a armadilha para iludir os portugueses – permite-nos observar a cultura antidemocrática entranhada deste economista político. Há uns anos, Cavaco Silva reconheceu corretamente que o “saldo orçamental é uma variável endógena”, estando fundamentalmente dependente do andamento da economia. Cavaco fala agora da definição de um “saldo orçamental desejável”, enquanto “restrição ao grau em que os verdadeiros objetivos podem ser prosseguidos”. O que não passa de um “desejo” político (uma norma ex-ante) deveria ser formulado, segundo ele, por um “comité independente de especialistas”.

O político que fez com que, no início dos anos noventa, o Banco de Portugal se tornasse “independente” da democracia, mas dependente do capital financeiro, rumo à perda de soberania democrática na economia, com o euro, continua, mais de três décadas depois, a querer aprofundar o processo de restrição democrática, de resto já garantido pela lógica das regras europeias. Tudo em nome de uma ideologia ofuscadora, segundo a qual dimensões cruciais da política orçamental, note-se o termo política, podem ser transformadas em “técnica” socialmente neutra.

Sem deliberação democrática na economia, que pressupõe instrumentos de política orçamental e monetária articulados, é muito difícil fazer florescer o Estado social. Fazê-lo atrofiar esteve no centro da lógica austeritária da troika e do seu governo, apoiados pelo então Presidente Cavaco Silva, com o colapso do investimento, a destruição de emprego e a sangria de jovens trabalhadores para a emigração. Infelizmente, grande parte das heranças institucionais forjadas e apoiadas pelo político mais longevo da democracia continuam por superar. Aí reside grande parte dos nossos problemas. Há uma política que tem mesmo de se ir embora.

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