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IVG: A caixa de pandora que afinal não se abriu

De onde virá a tentativa da direita de fazer recuar o país civilizacionalmente ao defender um novo referendo? É apenas um exemplo que revela o risco de outros recuos, mais ou menos dissimulados, que a direita se prepara para levar a cabo se conseguir alcançar o poder nas próximas eleições.

Crónica 74
29 Fevereiro 2024

Passaram 17 anos desde a realização do referendo à descriminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), nos termos em que o mesmo foi estabelecido: a pedido da mulher e até às dez semanas. Os que se opunham ao salto civilizacional que o país deu, em fevereiro de 2007, foram consecutivamente interpelados por uma realidade que deita por terra os principais argumentos que então mobilizaram.

De facto, não só o número de IVG por opção da mulher não aumentou de forma vertiginosa – como profetizavam, quase desejando que assim fosse –, como se regista uma consistente tendência de redução, passando-se de cerca de 18 mil IVG a pedido da mulher em 2008, para cerca de 14 mil em 2020, sendo os anos de 2021 e 2022 atípicos, refletindo o efeito da pandemia e do pós-pandemia (como sucedeu um pouco por toda a Europa, aliás).

Durante estes 17 anos, o número de IVG a pedido foi sempre inferior à média anual que se estima ter existido até 2008, a rondar as 20 mil. Mas mais significativa ainda é a queda da incidência em jovens adolescentes (menos de 20 anos): entre 2008 e 2022, a queda é de quase para metade, passando-se de valores na ordem das 4 IVG para cerca de 2, por cada mil jovens adolescentes.

Se a defesa da criminalização do aborto, à direita, estivesse relacionada com preocupações relativas ao risco do seu aumento, a realidade tratou, com a despenalização, de transformar em pó esse argumento. E não é menos importante uma outra nova realidade, associada à redução incomensurável dos riscos para a vida e para a saúde das mulheres, decorrentes do recurso à clandestinidade, muitas vezes em condições clínicas absolutamente precárias, para que deixaram de ser empurradas.

Para já não falar, por último, no facto de a despenalização do aborto ter criado condições para o acesso de todas as mulheres à interrupção voluntária da gravidez, nos termos do quadro legal estabelecido, pondo fim à desigualdade entre as que podiam deslocar-se ao estrangeiro e as que, com menos capacidade económica ou poder relacional, tinham que se sujeitar a «clínicas» de vão de escada.

De onde virá, portanto, a atual tentativa da direita de fazer recuar o país civilizacionalmente, num regresso às trevas da criminalização, com Paulo Núncio – que será deputado da AD por Lisboa – a defender a realização de um novo referendo, devidamente antecedido por «iniciativas, no sentido de limitar o acesso ao aborto»? Isto quando a direita, em 2015 – num ato de pura humilhação das mulheres –, tinha já aprovado taxas moderadoras, tornado o aconselhamento psicológico e social obrigatório e criado a possibilidade de participação, nessas consultas, de médicos objetores de consciência (até aí impedidos de estar presentes)?

Para lá do moralismo hipócrita, e da tentativa de impor aos outros visões do mundo retrógradas, esta questão é, contudo, na verdade, apenas um exemplo que revela o risco de outros recuos – desde logo no Estado Social, que estará sob ataque, no emprego e rendimentos e ao nível das desigualdades –, mais ou menos dissimulados, que a direita se prepara para levar a cabo, caso consiga alcançar o poder nas próximas eleições legislativas.

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