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Feliz ano novo

Querer mudar é humano, mas falhar também o é, e isso é válido tanto para mim como para o primeiro-ministro. A grande diferença é que, se eu falhar, lixo-me eu, e se o primeiro-ministro falhar, lixo-me eu e o resto do mexilhão (já o primeiro-ministro nem tanto).

Crónica 74
24 Agosto 2023

Setembro à porta e o mundo arranca de novo. Mais do que o ilusório portal mágico que se abre no nano segundo da passagem de 31 de dezembro para 1 de janeiro, e que após consumidas 12 passas recheadas de 12 irrealistas aspirações, é-nos apresentada uma escadaria reluzente, com 365 degraus por estrear, a chegada de setembro é que é, na realidade, o verdadeiro começo do ano novo.

Recarregadas as baterias após um mês de sopas e descanso, gazpacho y siestas, vichyssoises et repos, e por aí fora segundo os destinos de cada um, chega aquele sprint final propício a um período de reflexão, como aquele que se vive na véspera das eleições, mas temperado com um misto de satisfação semelhante ao do refresh do Instagram, com a angústia do guarda-redes antes do penalty - a expectativa daquilo que é novo tanto entusiasma como intimida.

É nestas alturas, nestes recomeços do tempo, que muitos de nós voltamos a acreditar na viabilidade de um “novo eu”, uma vez que aumenta a percepção da possibilidade da vitória das nossas melhores intenções, como por exemplo deixar de fumar, perder peso ou fazer exercício - três das principais resoluções tomadas pela maioria.

Num estudo feito pela economista comportamental Katherine Milkman para a Universidade da Pensilvânia, foram abordados vários padrões relacionados com os nossos processos de tentativa de mudança de comportamento. Uma das partes do estudo focou-se na pesquisa da palavra “dieta” no Google. Durante nove anos registaram o número de entradas neste motor de busca e puderam confirmar que, mais uma vez, os inícios, sejam eles de semana, mês ou ano, têm a capacidade de empoderar as pessoas nos seus bem intencionados propósitos. Mas também verificaram que à medida que avança o tempo, o número de buscas ia progressivamente diminuindo. Ou seja, muita pesquisa de “dieta” na 2ª feira mas, chegados ali a 5ª a coisa já tinha reduzido consideravelmente. O mesmo no início de cada mês e bastante mais significativamente no início de cada ano, com o mesmo final infeliz.

Podemos facilmente transpor este padrão comum de comportamento humano para o campo da política. Imaginamos um governo recém-eleito a pesquisar freneticamente “boa governança” naquele período de ouro dos 100 dias após a tomada de posse, mas a deixar de fazê-lo à medida que os interesses pessoais se começam a sobrepor, lenta mas persistentemente, à missão de servir o país.

Percebemos então que, querer mudar é humano, mas falhar neste propósito também o é, e isso é válido tanto para mim como para o primeiro-ministro. A grande diferença é que, se eu falhar, lixo-me eu, e se o primeiro-ministro falhar, lixo-me eu e o resto do mexilhão (já o primeiro-ministro nem tanto).

Tentemos agora perceber como me posso ajudar a mim e ao primeiro-ministro. Que ferramentas existem para mitigar o descalabro? Tendo em mente a rentrée política à porta, e já antevendo um sem fim de novas promessas e propósitos bem intencionados e um… inevitável (?) falhanço destas promessas e propósitos, voltemos de novo ao estudo. Porque falhamos?

Segundo o estudo, a sobrevalorização das nossas capacidades é logo meio caminho andado para nos espetarmos ao comprido. Sobrevalorização – palavra que encaixa que nem uma luva nesta maioria. Sendo assim, a soberba deste governo na sua atitude de achar que tudo pode fazer melhor que todos os outros deveria por isso encolher substancialmente e dar lugar a uma visão mais realista, e democrática, do país que tem em mãos, cortando a sobrevalorização com um pouco de humildade. Esta praxis deveria também ser adoptada pelo presidente da Câmara de Lisboa, e talvez um dia ele tenha a capacidade de ver que a capital que existe não é a que ele vende nas suas autistas declarações.

Mas além do erro da sobrevalorização das nossas capacidades, há também a subvalorização tanto do tempo como do esforço necessários para a concretização dos propósitos. Caímos no erro de achar que uma mudança de paradigma pode ser feita rapidamente e sem uma dedicação absoluta, para percebermos rapidamente que estamos pior do que quando começámos. “Roma e Pavia não se fizeram num dia” e por isso é que, desde que me lembro de mim, vejo serem exigidas políticas de fundo e não simples medidas eleitorais ou populistas.

Da Saúde à Cultura, da Educação à Habitação, falhar-se-ia menos se se reconhecesse que o país ganha mais a médio e longo prazo, do que no prazo imediato do mandato, nessa sempiterna busca de fazer muito em pouco tempo. Às vezes os políticos parecem-se com aqueles graffiters que só querem encher tudo de tags, para deixar a sua marca no maior número de sítios possível, em vez de dedicar o tempo e o esforço necessários para fazer um bom mural, com princípio, meio e fim. E só aí, assinar.

Há outra ajuda que poderia ser válida e que provém de um dos objectos mais curiosos deste estudo. Trata-se da análise feita a uma aplicação chamada StickK que é basicamente uma ferramenta de auto-ajuda na concretização de metas. Os subscritores inserem o seu objectivo e prazo de cumprimento com uma curiosa penalização: se falharem nos seus propósitos são obrigados a doar uma quantia pré-determinada a um partido político que odeiem.

É um deleite imaginar esta medida aplicada à nossa governação, uma espécie de nova política de financiamento dos partidos, em que cada medida falhada do governo encheria os bolsos da oposição. Bom, pensando melhor, em termos práticos, isso já acontece: cada derrota do programa do governo é, na verdade, um encher de bolsos da oposição, talvez não directamente com euros mas definitivamente com votos.

Posto isto, e com uma realista noção tanto do tempo como do esforço que necessitaremos para sobreviver ao que aí vem, desejo a todos e todas um feliz ano novo e que seja o que Deus quiser, que de laico este país nada tem. Ámen.

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