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Eu tenho dois amores

Sabemos que a atitude da sociedade perante a mudança nem sempre é a mais cooperante, seja por oposição direta seja por inação. O ativismo sempre recorreu a atitudes disruptivas e aceitar isto é respeitar todas e todos os que ao longo da História realizaram atos questionáveis para se fazer ouvir.

Crónica 74
26 Janeiro 2023

Não é muito comum, mas há acontecimentos que quer pela sua natureza quer pela forma como ressoam dentro de nós, têm o poder de colocar-nos com a mesma veemência em ambos os lados da barreira, dando azo a uma encruzilhada moral em nos vemos simultaneamente solidários com causas antagónicas. Não é muito comum, mas acontece, como aconteceu recentemente e na mesma semana. Foram dois episódios em que naveguei por um misto de “por um lado sim” e “pelo outro também”. Sim, estou a falar da invasão de palco no São Luiz e da manifestação animalista organizada pelo IRA (Intervenção e Resgate Animal).

Comecemos pelo São Luiz. Partindo do princípio de que toda a gente sabe o que aconteceu, avanço para o rescaldo. Como ator, como não estar do lado de um colega que recebe a ordem “DESCE DO PALCO!” enquanto desempenha um dos papéis que lhe tinha sido atribuído? Mas por outro, na condição de ser humano empático com o seu próximo, como não estar solidário com a luta do coletivo trans, tão violenta e sistematicamente atacado por todos os lados?

Sabemos que a atitude da sociedade perante a mudança nem sempre é a mais cooperante, seja por oposição direta seja por inação. Por isso mesmo, a maioria das reformas estruturais e das conquistas de direitos tem sido feita de forma dita “violenta”. O ativismo sempre recorreu a atitudes disruptivas e aceitar isto é respeitar todas e todos os que ao longo da História realizaram atos mais ou menos questionáveis para se fazer ouvir.

Olhando para trás, iremos certamente encontrar “abusos” dos antis esclavagistas, “exageros” das sufragistas, “agressões” dos defensores dos direitos civis, assim como num futuro próximo poderemos identificar algumas “atrocidades” cometidas pelos ambientalistas bem como “atos violentos” perpetrados pelo coletivo trans. Mas toda esta análise só pode ser feita ou com algum distanciamento temporal ou com uma boa dose de sangue-frio.

Acontece que a “radicalidade” do que aconteceu no São Luiz acabou por chocar atores e não atores, deixando toda a gente naturalmente meio confusa relativamente à forma como reagir. Mas não tardaram em surgir, quer do lado dos prós quer dos contras, as inevitáveis posturas precipitadas e simplistas do costume. Li coisas muito feias, entristeceu-me que se tenha logo imposto um “nós” e um “eles”, com afirmações graves do género “não esqueceremos quem se manteve em silêncio.”

Nada é assim tão simples nesta vida e muito menos quando nos encontramos na vertigem de uma mudança de paradigma, em que a cautela e a ponderação não podem ser confundidas com cobardia ou egoísmo hipócrita. Dizem uns e outros que “foram tomadas notas”. Muito bem, eu também as tomei.

Passemos agora aos nossos melhores amigos, os animais. Face à possibilidade de a lei que criminaliza os maus tratos a animais vir a ser declarada inconstitucional, o IRA conseguiu mobilizar um número impressionante de pessoas e associações numa manifestação inquestionavelmente bem sucedida. E com (alguma aparente) razão.

Como não estar do lado daqueles que lutam pelos direitos dos animais? Mas por outro, como não ficar apreensivo quando vemos os animais serem usados como arma de arremesso contra o Estado de direito? Não tenhamos ilusões.

Os valores que mais alto se levantam não são só, neste caso, os da defesa incondicional da vida e bem estar dos animais. Não podemos ser ingénuos ao ponto de ignorar as semelhanças entre o discurso do IRA e o da extrema-direita porque a receita é exatamente a mesma: desacreditar ferozmente o Estado, suas instituições e executantes, criando pouco a pouco no Povo a ideia de que uma nova ordem tem de ser instaurada.

O Chega repete até à exaustão que o Estado não é capaz de proteger os cidadãos das ameaças, perigos e injustiças. E por seu lado, o IRA repete até à exaustão que o Estado não consegue proteger os animais das ameaças, perigos e injustiças. Um outdoor a dizer VERGONHA foi plantado pelo Chega em frente à Assembleia da República, a mesma VERGONHA que se podia ler num gigante cartaz do IRA que comandava a manifestação do outro dia. Vamos também ignorar as fardas negras de inspiração militar usadas pelo IRA? Não nos soa a nada? Umas camisas negras, talvez? Itália, primeira metade do século XX? Rings a bell?

A extrema-direita é perita em disseminar eficazmente a sua ideologia em várias frentes, da política às forças de segurança, passando pelos sindicatos e até defesa ambiental. Na série “The Handmaid’s Tale” por exemplo, há um episódio em que um flashback revela que a origem daquela distopia fascista esteve num movimento ambientalista radical, que usou esta causa universal para ganhar adeptos e usurpar o poder. E quem diz ambiente, diz direitos dos animais, não? Para que não restem dúvidas, o meu respeito e amor pelos animais é inquestionável.

A minha cadela Lola é dos seres mais extraordinários que conheço e arrepio-me só de pensar que algo de mal lhe possa acontecer. Mas isso não significa que apoie sem reservas um movimento fomentado por uma organização cujas motivações me levantam sérias e perigosas dúvidas.

Esta ambiguidade de princípios que cometemos com nós próprios, sentindo-nos tentados a envolver-nos simultaneamente com os dois lados antagónicos da mesma moeda, pode ser o resultado de uma reação a quente mas não pode ser uma postura definitiva. Não quando o que está em causa são os Direitos Humanos ou a própria Democracia. Nestas situações, temos a obrigação de fazer uma escolha e pensar: o que é que é mais importante?

Independentemente de mim, do momento e do específico, o que é que é mais universal, intemporal e abrangente? Mais concretamente, é mais importante defender cegamente o sacro-santo palco de um teatro colocando a criação humana acima do próprio Homem ou tentar perceber o desespero de quem encontrou na profanação deste espaço a única forma de se fazer ouvir? E é mais importante defender cegamente os animais e para isso validar uma milícia popular com forte presença de movimentos de extrema-direita, ou demarcarmo-nos deste engodo e tentar encontrar soluções com o mesmo resultado, mas sem minar o Estado de direito?

Para mim, e após a ponderação que achei necessária, a clarificação da minha postura relativamente a estes dois acontecimentos chegou sob a forma de um incondicional apoio ao coletivo trans e de um consciente repudio face a qualquer iniciativa do IRA. Houve, na minha opinião, uma invasão de palco que foi necessária no contexto da construção de uma História comum e inclusiva, assim como houve, de acordo com os meus princípios democráticos, uma falsa manifestação animalista que precisa de ser desmascarada antes que seja tarde demais.

Termino com o título desta crónica. Eu tenho, de facto, dois amores. E eles foram, são e serão o respeito incondicional pelo indivíduo e a crença absoluta na Democracia.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“I am her” de Shea Diamond e “Lola” de The Kinks. 

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