Índice

A esquerda não desiste de compreender

Se queremos mesmo vencer a extrema-direita, vamos ter de ser um pouco mais exigentes nas análises. Saber quem são e o que pensam os eleitores do Chega. Perceber quais as circunstâncias e as políticas que permitiram que ideias que sempre existiram na marginalidade política tenham sido tão propagadas e normalizadas num tão curto espaço de tempo. 

Crónica 74
21 Março 2024

Os resultados da extrema-direita nas eleições legislativas deram origem a uma enxurrada de análises sobre a súbita explosão no nosso um país de um movimento que já tinha alastrado a quase toda a União Europeia. Digo análises, mas uma parte do que se tem escrito está mais no domínio do desabafo. O choque, indignação, desilusão e medo abundam. Escasseia a vontade de compreender o fenómeno e as suas origens. 

Para muitos que têm refletido sobre o fenómeno da extrema-direita, tudo pode ser arrumado com alguns perfis sociais do suposto eleitor Chega, tido como pobre e ignaro, e uma grande amálgama política no que é um mar de motivações e frustrações. Nas versões mais agressivas, são enxovalhados os que pretendem ensaiar alguma explicação sobre este voto que permita identificar causas para este terremoto ou, pior ainda, manter abertos canais de diálogo com uma parte destas pessoas. Aparentemente, há muitos democratas e até democratas de esquerda que acham que a democracia deve desistir de mais de um milhão de pessoas.

O grande argumento que justifica esta excomunhão é o de que estes eleitores têm em comum o apreço ou, pelo menos, tolerância pelas ideias racistas do líder da extrema-direita em Portugal, confundido sentimentos difundidos pela elite, onde claramente a oferta política condiciona a procura política.

Se falarmos em particular da questão da ciganofobia, esse é um filão que já foi explorado no passado com grande ousadia por Paulo Portas. Nuno Melo tem retomado essa tradição, embora de forma menos específica. E o próprio PSD, nos tempos mais recentes e incluindo na campanha, várias vezes associou a imigração a insegurança, procurando falar ao eleitorado do Chega, dizendo-lhe o que achava que queriam ouvir. 

O problema é que, sendo o Chega um facto novo na história do discurso racista em Portugal, pela gravidade e consistência das declarações e propostas, o discurso racista hoje não se restringe e não é sequer o elemento central da proposta política do Chega, mais concentrada num projeto de ultraliberalismo autoritário, que vai sendo em boa medida ignorado pelo meio das alarvidades e contradições do líder e dos seus apoiantes. É para isso que paga o poder económico que financia o Chega, que vai dos setores mais “respeitáveis” da banca ou da construção até às zonas mais obscuras da economia portuguesa. 

Esse é um dos problemas com os perfis apressados que se vão fazendo do votante Chega. Ignoram o papel central do poder económico neste projeto e a presença significativa de uma classe média e alta e de um exército de remediados que simpatizam com a ideia de um “safanão” no regime democrático. A elite quer algo mais definitivo do que um safanão. No discurso de muitos apoiantes do Chega, é possível identificar um elemento muito frequente de experimentalismo democrático, como resposta a meio século de governos dos mesmos dois partidos, que oscilaram entre o sofrível e o catastrófico.

É por isso que, se queremos mesmo vencer a extrema-direita, vamos ter de ser um pouco mais exigentes nas análises. Saber quem são e o que pensam os eleitores do Chega. Perceber quais as circunstâncias e as políticas que permitiram que ideias que sempre existiram na marginalidade política tenham sido tão propagadas e normalizadas num tão curto espaço de tempo. 

É desse ponto de vista preocupante que António Costa não seja capaz de tirar consequências sérias desta explosão da extrema-direita após 8 anos dos seus governos: falta de investimento e degradação de serviços públicos, desvalorização salarial e agravamento do perfil de especialização económica, calamidade na habitação. Perceber este fenómeno é lançar um olhar profundo e implacável sobre as políticas que engendraram pobreza, exclusão, abandono e um crescente desencanto com as instituições democráticas. Para isso, é preciso menos preguiça da razão. Claro que é difícil ir falar com gente que muitas vezes não quer ouvir. Mas não tentar é desistir.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt