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Entre o “Ex” e o passado – que amigos?

Não é por sentir que o passado é a única coisa em comum que tenho hoje com quem já foi meu amigo que a nossa história perde importância. Pelo contrário, reconheço em cada uma das amizades que passaram pela minha vida partes de quem fui antes de me tornar quem sou.

Crónica 74
31 Agosto 2023

Uma das minhas leituras-cliché desta época são os questionários. Devoro-os como quem busca um novo sabor na carta de gelados de sempre: anima-me a hipótese de ser surpreendida pelo pensamento “fora da caixa” de alguém que até aí só conseguia vislumbrar “dentro de uma caixa”. 

Ao mesmo tempo, fascina-me a imensidão de respostas que brota de uma mesma pergunta, quando colocada a pessoas diferentes.

Nas últimas semanas, tenho parado numa das questões incluídas no Questionário Pós-Proustiano do jornal Público: “Tem noção de quantos ex-amigos tem? Cinco? Dez? Ou nunca se zangou com um amigo?”.

Mais do que escrutinar a ideia de ex-amigo contida na interrogação – em que o “Ex” surge por associação a uma quezília –, interessa-me observar a interpretação que cada pessoa inquirida faz do conceito.

Por um lado, encontro um alinhamento com o sentido da pergunta: aparentemente, o círculo de ex-amigos está preenchido de experiências negativas. Por outro lado, deparo-me com uma espécie de “culpa” inconfessável, em que reconhecer ex-amigos parece representar uma mácula na “folha de serviço”, ligada a uma qualquer má avaliação do carácter alheio e/ou incapacidade de nutrir relacionamentos.

Como se tivesse sempre de haver uma falha ou traição para chegarmos à condição de ex-amigos. Ou como se as respostas estivessem contaminadas – ainda que inconscientemente – pelas piores memórias invocadas pelo prefixo "Ex": o fim doloroso de romances cujas feridas custaram a cicatrizar, tantas vezes ungidas com o suporte de ombros amigos.

Talvez por isso custe encaixar a ideia de ex-amigos desassociada de conflito ou desilusão.

Desencontros de amigos

Mas é exactamente essa a minha experiência: tenho perfeita noção de quantos ex-amigos tenho, e posso garantir que nenhuma dessas relações terminou com uma zanga.

Simplesmente desencontramo-nos entre as realizações, as transformações e as aspirações da vida. Deixámos de nos reconhecer nas subjectividades que antes costuravam as nossas proximidades, muitas vezes confundidas de afinidades e intimidade.

Parece-me absolutamente natural que assim seja: à medida que nos vamos desenvolvendo – cada qual no seu processo –, há pessoas que permanecem connosco, outras que saem das nossas vidas, e outras que entram.

Nada nesse movimento tão orgânico quanto incontornável belisca os afectos construídos, as vivências partilhadas, ou o valor que fica das amizades que já não o são.

Não é por sentir que o passado é a única coisa em comum que tenho hoje com quem já foi meu amigo que a nossa história perde importância. Pelo contrário, reconheço em cada uma das amizades que passaram pela minha vida partes de quem fui antes de me tornar quem sou.

Não vejo perdas, apenas ganhos.

Sobretudo por isso me fez todo o sentido conhecer a definição que a M. soltou entre conversas inesperadas. "O passado"… introduzia ela a dado momento de uma interacção.

"O passado?", perguntei, intrigada com a formulação que se tornava imperceptível para o contexto. Encontrei na resposta uma alternativa à mais clássica definição de "Ex".

Sem leituras demasiado condicionadas por romances excomungáveis, ali estava "o passado", desapegado de possessivos. A M. poderia ter dito “o meu passado”, como quem refere “o meu Ex”. Mas, talvez para esvaziar a conversa de depreciações automáticas, optou por trazer para a mesa apenas “o passado”.

Afinal, todos temos um. E, felizmente, não precisamos de nos zangar com ninguém para que ele aconteça. Basta continuarmos vivos.

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