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Educação financeira - para quem?

Enquanto continua a ser mitigada a necessidade de intervir nas raízes estruturais da profunda desigualdade social em que nos encontramos, a mensagem que nos transmitem é clara: se és ou foste, durante toda a vida, um trabalhador assalariado, ou se te encontras numa posição de pobreza extrema, falhaste no tal objetivo de vida comum.  

Crónica 74
19 Outubro 2023

“Desenvolver competências de literacia financeira”, “aprender a viver em tempos de crise”, “workshops de cozinha económica” ou “como gerir o orçamento familiar” – a intervenção social reveste-se de projetos como estes. A crise de 2008 amplificou-os ao mesmo tempo que os discursos sobre empreendedorismo proliferavam e nos alertavam para aquele objetivo de vida comum que afinal todos tínhamos, mas alguns de nós ainda não tinham descoberto: ser patrões.

O valor mínimo das pensões do regime geral da Segurança Social é de 291,48€. O valor do Rendimento Social de Inserção são 209,11€. O salário mínimo nacional líquido são 676,40€. Enquanto isso, a mensagem transmitida é clara: se és ou foste, durante toda a vida, um trabalhador assalariado, ou se te encontras numa posição de pobreza extrema, falhaste no tal objetivo de vida comum. E por isso procura mais receitas até 5,00€, precisas de estudar gestão doméstica.

A hegemonia do capitalismo ocorre em vários níveis e em dimensões tão básicas quanto a forma como nos vestimos, o que comemos ou como nos relacionamos. No mesmo sentido, a educação financeira vem procurando contribuir para uma uniformização de valores, comportamentos e normas sociais que retroalimentam essa hegemonia.

Na intervenção psicológica perde-se a conta aos sentimentos de falha, de inutilidade e incompetência que vêm habitando as narrativas de quem chega. A culpa porque no início do mês se comprou um livro, o questionamento de que “talvez não devesse ter ido visitar os meus pais, os transportes estão tão caros” ou as aspirações que, entretanto, se perdem na espuma dos dias pautados pela apologia da meritocracia daqueles que nos vendem que saímos todos da mesma casa de partida.

Enquanto continua a ser mitigada a necessidade de intervir nas raízes estruturais da profunda desigualdade social em que nos encontramos, vão-se fazendo contas ao orçamento mensal do Sr. Fernando que paga uma renda de 200,00€ com uma reforma de 350,00€ e no qual não cabe o último medicamento receitado. Esforçam-se em esclarecer estas pessoas sobre como funciona o universo mágico das finanças, como devem planear devidamente os seus gastos (onde se inclui o número de banhos quentes por semana, o aquecedor das noites frias ou a ventoinha de agosto), em sensibilizá-las para práticas de consumo responsável e ainda cultivam o tal mindset empreendedor.

Nesse meio-tempo, publicitam discursos motivacionais sobre “como o dinheiro não importa”, coincidentemente proferidos por quem já perdeu a conta ao tanto que tem. Continuam a individualizar responsabilidades, a contar a estória de que o sucesso ou fracasso financeiro depende das opções pessoais de cada um. Lá está: do livro, da alface iceberg ou do concerto a que não se devia ter assistido – “quem não tem dinheiro, não tem vícios”.

Mas foi a gestão privada da TAP a colocar a companhia à beira da falência, e foram o BPP, o BPN e o BES que precisaram de ser salvos - por todos nós. Talvez a educação financeira seja necessária, sim. Em cada Cantina Social, em cada Centro Comunitário ou de Alojamento Temporário haverá doutores sobrequalificados dispostos a partilhar os seus conhecimentos sobre como sobreviver ao mês com tão pouco dinheiro – podiam chamar-lhe “Desvendar os mistérios da riqueza com três tostões: workshop de flik flak”.

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