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A Economia é para quem?

A cobertura jornalística desempenha um papel determinante no debate económico. Muitos jornalistas têm menos conhecimentos de Economia do que se supõe e a análise das opções orçamentais é tudo menos objetiva. As ideias de que "aumentar a dívida pública é mau" e "cortar impostos é bom” são assumidas como verdades universais, quando não o são.

Crónica 74
27 Abril 2023

A economia é um dos principais destaques do debate público. Percebe-se que assim seja: nas últimas décadas, a maioria das discussões sobre as opções a tomar em áreas tão diversas como a provisão de educação ou saúde, os apoios sociais ou o acesso à cultura, são frequentemente feitas com base em argumentos económicos. As teorias económicas têm enorme impacto na forma como trabalhamos, como decidimos o que queremos produzir e como fazê-lo, como distribuímos os recursos produzidos – entre salários e lucros –, como lidamos com as dívidas e como definimos as prioridades de governação do país.

A forma como é feita a cobertura das principais tendências económicas (inflação, dívida, crescimento, impostos ou salários) e das opções orçamentais dos governos tem grande probabilidade de marcar os termos em que se desenrola a discussão e de influenciar a opinião pública. Embora isso talvez aconteça menos hoje do que há uns anos, por causa da ascensão das redes sociais, a cobertura jornalística continua a desempenhar um papel determinante no debate.

É por isso que é importante ter atenção à forma como esta é feita. Um relatório recentemente publicado sobre o jornalismo económico da BBC, que cobriu mais de 11 mil peças transmitidas pela estação britânica em televisão, rádio ou formato online, contraria algumas ideias comuns: embora possam não ter um viés partidário sistemático, muitos jornalistas têm menos conhecimentos de Economia do que se supõe e a análise que fazem das opções orçamentais é tudo menos objetiva.

De acordo com o relatório, a cobertura jornalística é frequentemente feita com base em hipóteses como "aumentar a dívida pública é mau", "cortar impostos é bom", que são assumidas como se se tratassem de verdades universais. Isso reflete-se na forma como algumas opções são apresentadas como inevitáveis, dando a ideia de que um governo “será obrigado a” tomar certas medidas. Raras vezes se reconhece a natureza contestável de determinadas visões e a incerteza associada à evolução da economia e aos resultados de determinadas políticas.

Além disso, a cobertura deste tipo de assuntos nem sempre é feita com a preocupação de chegar a um público vasto e os jornalistas parecem focar-se demasiado no estrato social em que se inserem. Isso contribui para reforçar a ideia de que o debate económico é demasiado complexo para quem não é formado na área, afastando boa parte das pessoas da discussão e prejudicando especialmente os grupos sociais com menores rendimentos e menos acesso a livros, revistas e outras fontes de informação.

Em Portugal, este tipo de estudo foi feito pelo Observatório das Crises e Alternativas em relação às narrativas prevalecentes no período em que o país esteve sujeito ao programa de ajustamento da troika. Ideias como a de que “gastamos acima das nossas possibilidades” e “precisamos de cortar despesas para resolver o problema de endividamento”, associadas à ideia de que “não há alternativa” a cumprir o que “os mercados ditam”, foram transmitidas como verdades inquestionáveis apesar de todas serem manifestamente parciais e contestáveis (como foi feito aqui ou aqui).

Este problema está longe de ser exclusivo do jornalismo. O debate económico é feito de hipóteses e estas variam consoante o posicionamento de cada um. No entanto, o ensino de Economia nas faculdades é quase exclusivamente focado na corrente teórica dominante na disciplina – a síntese neoclássica/neo-keynesiana –, apresentada como visão única e definitiva da disciplina, ao mesmo tempo que se omite a existência de perspetivas alternativas. É expectável que isso acabe por se refletir no comentário económico e na cobertura jornalística.

Há vários fatores que contribuíram para esse afunilamento da disciplina, mas é difícil ignorar os motivos políticos: a teoria dominante é aquela que convive melhor com as relações de poder e as desigualdades típicas das economias de mercado. O economista Ha-Joon Chang, que se tem dedicado a desconstruir ideias feitas sobre a Economia e a torná-la mais acessível para todos, considera que “a reticência da teoria neoclássica em questionar a distribuição de rendimento, riqueza e poder subjacente à ordem socioeconómica tornou-a mais aceitável para a elite dominante”.

Além da falta de representatividade racial e de género entre quem estuda e ensina Economia, as desigualdades económicas também se fazem sentir: um relatório da Royal Economic Society (RES) sobre o perfil socio-económico dos estudantes universitários no Reino Unido conclui que as desigualdades de classe se manifestam de forma mais expressiva nos cursos de Economia, que têm a maior percentagem de alunos provenientes de escolas privadas e a menor percentagem de alunos de contextos mais desfavorecidos. A conclusão da RES é que “a Economia pode ser considerada uma disciplina elitista”.

Não é realista esperar que exista imparcialidade na avaliação de políticas que afetam de forma diferente grupos sociais diferentes. As opções orçamentais são isso mesmo – opções –, baseadas nas prioridades de cada governo, pelo que existem argumentos a favor e contra e medidas alternativas disponíveis. E existe incerteza na evolução de boa parte dos indicadores económicos, como o crescimento do PIB, a inflação ou a dívida. Era bom que isso fosse reconhecido mais vezes por quem estuda, ensina, comenta e reporta assuntos económicos.

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