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“É aqui a guerra” de 2022?

Aquilo que vemos, todos os dias, na Ucrânia, quase em tempo real, é a destruição e a humilhação dos mais frágeis. Que a guerra existe, que ceifa milhares de inocentes, ninguém duvida. Mas nós só vemos o que as máquinas de propaganda querem que vejamos.

Crónica 74
2 Junho 2022

O jornalismo é das profissões mais escrutinadas no mundo. Diariamente e a toda a hora, milhões de mensagens jornalísticas chegam ao Espaço Público com o propósito de atingirem o alvo – cada um de nós. Bill Kovach e Tom Rosentiel escrevem que o jornalismo alimenta a nossa necessidade de informação; precisamos dela para podermos tomar decisões livres e nos autogovernarmos.

Mas, o jornalismo hoje, para ser útil e cumprir a sua função, tem de distinguir-se de uma miríade de informações por filtrar que circulam na rede. Tantas vezes, nos mesmos canais de distribuição, mensagens jornalísticas rivalizam com informações promovidas por interesses ocultos, disfarçadas de mensagens jornalísticas. Essa mistura pantanosa redobra o trabalho do jornalista. Não lhe basta produzir mensagens credíveis, legitimadas com o selo dos valores jornalísticos.

O jornalista hoje, mais do que em qualquer outro período da história, tem de travar uma batalha dura contra a desinformação e a mentira, muito mais apetecíveis, na maior parte das vezes, do que a verdade. As fontes produtoras de mentira, amparadas pelos profissionais da propaganda, diariamente se agigantam, sobrepondo-se à verdade jornalística.

É neste ambiente, modelado pela fácil distribuição da mentira, que o jornalismo, sob permanente escrutínio do publico, tenta elevar-se, distinguindo-se. Esse desafio, de tão complexo, transformou-se na derradeira batalha do jornalismo: ou cai exangue, ou se reergue.

A cobertura jornalística da guerra da Ucrânia é um dos lugares onde essa batalha pela sobrevivência do jornalismo se trava.

A guerra é, como nos alertava Martha Gellhorn, “uma horrível repetição” de todas as guerras; em cada uma, o sofrimento liberta-se como “doença endémica”. Muda a geografia, muda o lugar, mas a guerra tem sempre esse tónus bárbaro de humilhação e destruição dos mais frágeis.

Nas tantas guerras que decorrem longe dos olhos do mundo, mata-se e morre-se em silêncio. E quem não vê (e nós não vemos), não sente.

A guerra da Ucrânia, ao contrário, entra-nos diariamente em casa. Todos temos a certeza de lhe conhecermos os contornos. Porque o jornalismo está lá.  

Fui uma vez à guerra. Há muitos anos. A Jugoslávia estava a desfazer-se e eu fui, sozinho, cobrir a libertação da Croácia. Tinha 23 ou 24 anos, uma enorme inexperiência profissional e uma incapacidade tremenda para ver para lá do meu pequeno mundo. Na guerra recomenda-se o oposto do que eu tinha. Para não ser carne para canhão, aliei-me a outros jornalistas, que estavam aliados aqueles que julgávamos representarem o lado certo da guerra. Andei por lá uns dias, mais do que gostaria, menos do que teria sido necessário para perceber aquilo que, de facto, por lá se passava. Afinal, a guerra era-nos oferecida de bandeja. Só tínhamos de seguir os militares que estavam do lado certo e que nos levavam aos sítios que para eles eram os certos.

Um dos dias fui parar a uma aldeia mínima, mesmo colada à fronteira da guerra. Entrámos em casa de um jovem que falava inglês e que nos explicou que, do lado de lá da fronteira, tinha um grande amigo, que agora era inimigo. Só nos falou dessa intransponível e amarga distância. Não pudemos conhecer o amigo. Estava do lado errado da guerra; e a esse, os nossos escudos protetores, não nos levaram. 

Aquilo que vemos, todos os dias, na Ucrânia, quase em tempo real, é a destruição e a humilhação dos mais frágeis. Que a guerra existe, que ceifa milhares de inocentes, ninguém duvida. Mas nós só vemos o que as máquinas de propaganda querem que vejamos.

Chegam-nos, desses confins da guerra, o grito, o choro, a perda, o cansaço, o desespero. Chega-nos a imagem de um país de resistentes, a oferecer o corpo às balas.

Amedronta-me a determinação destas pessoas. Parecem-me escudos humanos à espera da última bala que lhes ceifará o futuro. Estranho quando todos têm o mesmo discurso. Para todos, a própria vida parece muito menos importante do que resistir e ficar à espera da morte.

Do alto do meu pedestal de segurança, a mais de 4 mil quilómetros da guerra, posso dar-me ao luxo de ter dúvidas. 

Porque um dia, há muitos anos, eu estive na guerra e não consegui ver que a guerra me estava a ser servida a la carte. Qual Raúl Solnado que, num dos seus mais irresistíveis quadros de humor, batia à porta da guerra, também eu, no arranque da década de 90 do século passado, deixei que a guerra me batesse à porta para me contar apenas aquilo que ela me quis contar. Como tantos outros, limitei-me a ser caixa de ressonância da guerra.   

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