Índice

Desventuras das iniciativas liberais em educação

A ideia de que os pais possam escolher a escola dos filhos com cheques-ensino é uma ideia naturalmente sedutora. Mas também é ilusória. A alegada "liberdade de escolha" das famílias traduzir-se-á numa maior "liberdade de escolha" dos melhores estabelecimentos de ensino para selecionar os seus alunos, de modo a terem os melhores resultados e posições mais favoráveis nos rankings.

Crónica 74
1 Fevereiro 2024

No início dos anos 90, a Suécia adotou um sistema de "cheques-ensino" (vouchers), permitindo que escolas privadas passassem a ser financiadas pelo Estado, recebendo para o efeito um montante por aluno baseado no valor médio dos custos operacionais das escolas. A medida levou ao surgimento de "escolas independentes" (friskolor), tendo os pais passado a poder escolher as escolas dos filhos, fomentando a competição entre elas, no pressuposto de que a concorrência melhoraria o sistema educativo no seu todo.

Esta aventura liberal foi objeto de aclamação internacional, tendo levado por exemplo o conservador britânico Michael Gove, secretário da Educação de David Cameron (2010-2014), a adotar as friskolor como modelo para centenas de novas escolas no Reino Unido. Na Suécia estima-se que, atualmente, as escolas privadas que beneficiaram desta política tenham inscritos cerca de 15% do total de alunos entre os 6 e os 16 anos e 30% dos alunos dos 16 aos 18 anos. E que, em termos de rede, representem cerca de 18% do total de escolas do ensino básico e 36% do ensino secundário.

Recentemente, porém, e recusando a ideia de que se trata de casos meramente pontuais, a ministra da Educação sueca, Lotta Edholm, declarou ao The Guardian que as friskolor foram um "fracasso generalizado", assinalando a redução dos padrões de qualidade e a inflação das notas dos alunos. Em junho de 2023, um relatório do maior sindicato de professores da Suécia tinha já alertado para as consequências de o sistema educativo sueco se ter tornado num dos mais mercantilizados do mundo, gerando piores resultados, incrementando a segregação e granjeando a insatisfação dos próprios alunos. Propondo uma reforma do modelo, a ministra Lotta Edholm assegurou que passará a "deixar de ser possível obter lucros à custa da qualidade da educação".

A ideia de que os pais possam escolher a escola dos filhos, através da atribuição de cheques-ensino (ao invés de financiar uma rede pública de escolas que garanta o acesso de todos a uma educação de qualidade) é uma ideia naturalmente sedutora. Tão sedutora, porém, quanto ilusória. De facto, levada à prática, a alegada "liberdade de escolha" das famílias traduz-se, isso sim – dado o incentivo para que as escolas concorram entre si – numa maior "liberdade de escolha" dos melhores estabelecimentos de ensino para selecionar os seus alunos, de modo a obterem os melhores resultados e posições mais favoráveis nos rankings.

Mas é mais que isso. Tal como na saúde, a privatização da educação através da atribuição de vouchers, com o desvio de recursos estatais, essenciais para garantir e melhorar os serviços públicos, é geradora de dinâmicas de divergência cumulativa, com as melhores escolas a serem capazes de atrair os melhores profissionais, desencadeando e acentuando fenómenos de segregação e de maior desigualdade de oportunidades.

Na campanha eleitoral que se avizinha, e de forma mais ou menos dissimulada, assistiremos uma vez mais ao regresso do canto de sereia da direita em torno da "liberdade de escolha", com o argumento de que é indiferente se a provisão é assegurada pelo público ou pelo privado. Os sinais são claros, com a nova/velha AD a prometer o reforço dos Contratos de Associação, a IL a prometer escolas em competição pelas preferências das famílias e o Chega a ir, evidentemente, pelos mesmos caminhos.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt