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Antídoto contra a sabedoria convencional

A sabedoria convencional austeritária diz-nos que os salários reais tendem a convergir, por magia do mercado, com a produtividade, mesmo que essa convergência aconteça quando os trabalhadores já estão mortos e enterrados. O pensamento do economista John Kenneth Galbraith continua a ser um antídoto contra a sabedoria convencional.

Crónica 74
20 Julho 2023

Se o britânico John Maynard Keynes (1883-1946) foi o principal economista da primeira metade do século XX, o norte-americano John Kenneth Galbraith (1908-2006) foi o principal economista da segunda metade, ou pelo menos o principal a não ganhar o prémio que passa por Nobel em Economia. Atribuído pelo Banco Central da Suécia, este prémio serviu sobretudo para consolidar academicamente o neoliberalismo, sendo esta uma forma de economia política contra a qual este keynesiano-institucionalista lutou até ao último sopro.

Este ano, a editora Actual editou um dos seus livros, A Sociedade da Abundância, publicado originalmente em 1958 e alvo de reedições, com alterações aqui e ali, até 1998. Numa ciência económica desmemoriada, graças à limpeza curricular de quase tudo o que possa colocar os estudantes de licenciatura a pensar criticamente sobre o mundo que os rodeia, e num panorama editorial dominado por iniciativas liberais, é sempre bom ver um livro social-democrata destes nas livrarias. Oferece-nos uma elegante caixa de ferramentas, afiadíssimas pela ironia e por um estilo exemplar de escrita. Atente o leitor na serventia de três ideias centrais do pensamento de Galbraith.

Em primeiro lugar, Galbraith abordou o papel social e político das ideias económicas, referindo-se a uma “competição persistente entre o que é certo e o que é meramente aceitável”. Às ideias, aceitáveis pelos poderosos e por regra incorretas, chamou Galbraith de “sabedoria convencional”.

Da sabedoria convencional faz ainda hoje parte a hipótese de que os salários reais tendem a convergir, por magia do mercado, com a produtividade, mesmo que essa convergência aconteça quando os trabalhadores já estão mortos e enterrados. É muito aceitável para os patrões que assim se pense. Economistas convencionais como Ricardo Reis podem ir para a televisão e para os jornais afiançá-lo.

O que é certo, no entanto, é que temos mais de quatro décadas de desfasamento entre a estagnação salarial e a produtividade, nos EUA, e duas décadas, em Portugal. O que é certo é que a convergência só se deu na história do capitalismo em condições institucionais muito específicas. Estas foram marcadas por uma relação de forças mais favorável a quem trabalha, cristalizada em diretos sindicais e laborais, o que Galbraith designou noutro livro por “poderes compensatórios”, entretanto enfraquecidos. A sabedoria convencional tem horror a reconhecer que o poder perpassa toda a economia. É nos lugares onde se trabalha que muito se decide, incluindo a decisiva “segurança”, conceito social que continua a ser tão fundamental hoje como em 1958.

Em segundo lugar, Galbraith teve a ousadia de destruir o mito liberal da “soberania do consumidor”, através do que designou por “efeito de dependência”: “os desejos são cada vez mais criados pelo processo pelo qual são satisfeitos”. É preciso ser economista convencional para ter dificuldade em lidar com factos básicos da experiência humana, mas aqui estamos na era dos algoritmos e dos mastodontes empresariais que gastam milhares de milhões a condicionar os consumidores e, de caminho, a criar um ambiente saturado de mensagens publicitárias condicionadoras.

Em terceiro lugar, Galbraith denunciou o contraste espontâneo no capitalismo, na ausência de investimento e de planeamento público assertivos e socialmente apoiados, entre “a atmosfera de opulência privada e de miséria pública”. Da poluição à degradação da infraestrutura pública da vida civilizada, há um viés favorável à sobreprodução de bens privados e à subprodução de bens públicos, de resto alimentada por uma sabedoria convencional austeritária.

Esta sabedoria convencional, esta economia que mata, é responsável em Portugal, entre tantos outros crimes, por estarmos décadas atrasados na introdução da ferrovia de alta velocidade ou na ligação ferroviária de todas as capitais de distrito, ao mesmo tempo que continuamos a assistir à promoção assoberbada, publicitária e não só, do transporte privado que arruína as nossas cidades, os nossos pulmões e a nossa posição comercial externa.     

Se começarmos a pensar com Galbraith, de repente deixamos de ver a relação entre o setor público e privado como uma relação de dependência do primeiro em relação ao segundo. É ao contrário, na realidade. Só o setor público pode criar o que tem mais valor para a maioria: escolas e bibliotecas públicas, parques, praças e jardins públicos, ligações de transporte rápidas e ambientalmente sustentáveis, uma infraestrutura pública universal de saúde e de cultura, água potável ou um ambiente sadio. E tudo o que é socialmente útil pode ser pago, já que a restrição não é financeira, mas sim de repartição de recursos reais criados pelo concurso do setor público e do privado, numa economia mista. Tão simples, que a mente, intoxicada pela sabedoria convencional, pode bloquear. O pensamento de Galbraith continua a ser um antídoto contra a sabedoria convencional.

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