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Aconteceu alguma coisa?

É genuíno afirmar que, durante este tempo, o mundo ficou um sítio pior. Assim como é genuíno perguntarmo-nos, perante todo este descalabro moral, social, ambiental e humano, se valerá a pena continuar a subir a um palco, esculpir uma pedra, gritar 3, 2, 1 acção, pintar uma tela, encher de música uma sala de espectáculos, escrever um poema.

Crónica 74
27 Novembro 2023

Serve esta crónica, escrita na reta final da temporada de mais uma peça de teatro, para fazer um exercício de reflexão acerca do tempo, o real e o fictício, o distendido e o comprimido.

Em termos reais, uma obra de teatro ocupa muito mais tempo na vida de um ator que os 70 minutos que o público presencia no palco (que era a duração desta peça, “Um Homem Inofensivo”, de Luís António Coelho, encenada por Álvaro Correia para o Teatro Aberto, com o Renato Godinho e eu). Fazendo uma linha de tempo desta peça específica, o convite foi feito em março, os ensaios começaram em junho, tiveram uma pausa estival de fim de julho até fim de agosto, altura em que recomeçaram os ensaios até à estreia, a meados de setembro, culminando na última representação, no fim de novembro.

Imaginemos então que, durante este período em que estive em cena, entre 15 de setembro e 26 de novembro, eu tinha ficado dentro do teatro o tempo todo. Imaginemos que o Teatro Aberto tinha sido a minha casa, sem contacto com o exterior e que no fim da última representação, e antes de voltar ao mundo real, eu perguntava: aconteceu alguma coisa?

Aconteceu a guerra da Ucrânia ter-se tornado em mais uma dessas guerras sem fim à vista, como tantas a que tristemente nos habituamos a ver como pano de fundo, diariamente no menu das notícias, já não como prato do dia, mas como especialidade da casa, sempre à disposição.

Aconteceu o calor que veio para ficar, consequência direta das alterações climatéricas, e que já pôs a medalha de “ano mais quente de sempre” no peito suado de 2023 (destronando 2022, que tinha destronado 2021, que por sua vez tinha destronado 2020 e por aí fora).

Aconteceu os protestos contra a inação dos Estados relativamente a estas alterações climatéricas transformarem-se cada vez mais em ataques pintados a ministros (compreensível), ataques pintados a obras de arte (questionável) e ataques pintados a lojas de luxo, como aconteceu na Gucci em Lisboa e em relação a isto, faço só uma pergunta: porquê a Gucci? Porque não os bastiões da fast-fashion como a H&M ou a Zara, ambas com muito maior culpa no cartório?

Aconteceu os americanos terem começado a maratona de fundo que culminará na eleição do seu próximo Presidente, e o mundo pasmar por ser muito possível que Trump, apesar de tudo, das acusações, processos, provas e mais provas de wrong-doing, será provavelmente e mesmo assim, o sucessor de Biden.

Aconteceu o Alzheimer do (ainda) “dono disto tudo” Ricardo Salgado ou como o diagnóstico médico de um mal padecido no presente se prepara para anular responsabilidades financeiras, morais e sociais do passado.

Aconteceu um ano de extrema-direita em Itália, com Giorgia Meloni por um lado a surpreender os analistas políticos com o seu “bom-senso” relativamente à posição italiana na guerra da Ucrânia ou nas relações com os Estados Unidos, mas por outro a fazer mais discretamente o que foi para lá fazer, e a revisão constitucional que se avizinha e que visa aumentar ainda mais o seu poder é prova disso.

Aconteceu Espanha enfiar-se num imbróglio de todo o tamanho com Sánchez a ter de amnistiar os independentistas catalães para fazer uma geringonça a la española, abrindo com isso o resto das caixas de Pandora que faltava abrir e criando uma atmosfera de crispação tal em que Isabel Ayuso, a Presidente da Comunidade de Madrid, se achou no direito de lhe chamar “hijo de puta” em pleno Congresso. Sim, leram bem. "Filho da puta". E assim vão nuestros hermanos.

Aconteceu o 7 de outubro e com ele uma voz, a de António Guterres, que falou corajosamente no seu papel de Secretário-Geral das Nações Unidas sobre o conflito israelo-palestino, pondo em evidência que o mundo não se consegue entender nem na defesa dos direitos humanos mais básicos e que o valor de uma vida é muito mais subjectivo do que gostaríamos de crer.

Aconteceu a Argentina sentar no poder um homem que é o sonho tornado realidade de qualquer anarco-capitalista ultra-libertário e o futuro tornado pesadelo dos argentinos.

Aconteceu a extrema-direita alcançar a vitória nos Países Baixos e com ela lá se foi de vez a imagem da ex-Holanda como exemplo a seguir para as democracias europeias, já para não falar na dor de cabeça que isto vai ser para Bruxelas.

Aconteceu a demissão de António Costa…

Aconteceu tudo isto enquanto os dois meses e pouco que uma peça esteve em cena. E é genuíno afirmar que, durante este tempo, o mundo ficou um sítio pior. Assim como é genuíno perguntarmo-nos, perante todo este descalabro moral, social, ambiental e humano, se valerá a pena continuar a subir a um palco, esculpir uma pedra, gritar 3, 2, 1 acção, pintar uma tela, encher de música uma sala de espectáculos, escrever um poema. Para responder, recorro ao que disse o artista JR sobre a sua mais recente colaboração artística*: “Nestas últimas semanas temos visto tanta escuridão à nossa volta e perguntamo-nos: qual é o sentido de dançar? Qual é o sentido de criar? O nosso papel, enquanto artistas, é o de trazer de volta a luz. E não se vence a escuridão com escuridão. Vence-se a escuridão com luz, mesmo que seja ínfima.”**

Portanto a resposta é sim, vale a pena. Porque como bem vimos durante o desespero pandémico, sem arte, sem cultura, seja ela alta ou baixa, não somos nada, nem ninguém, só seres agachados com medo do desconhecido. Foi a cultura que nos salvou. E é a cultura que nos continuará a salvar, aconteça o que acontecer.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“Lazarus” de David Bowie

* “Chiroptera”, o espectáculo colectivo do artista JR, do coreógrafo Daniel Jalet e do músico Thomas Bangalter

** no original: “Ces derniers semaines on a vu tellement d’obscurité autour de nous . On s’est demandé: à quoi bon danser? A quoi bon créer? Mais notre rôle en tant que’artistes est toujours de ramener vers la lumière. On ne chasse pas l’obscurité par l’obscurité. On chasse l’obscurité par même une infime lumière.” JR

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