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28 anos sem Alcindo e sem Justiça - o “dia da raça” ao virar da esquina*

A morte de Alcindo continua a ser reduzida a uma nota de rodapé. O julgamento do activista anti-racista Mamadou Ba, sentado no banco dos réus, processado por um neonazi, mostra-nos isso. “Por todas as vítimas mortais e aquelas que estão vivas, mas continuam a lutar com as sequelas da noite de 10 de Junho de 1995, não podemos fugir à responsabilidade de nomear os seus carrascos, custe o que custar."

Crónica 74
21 Setembro 2023

Até ali conhecia bem os preconceitos e insultos. Sabia que espaços e pessoas evitar, e também estava familiarizada com as ‘corridas de obstáculos’ para estudar e trabalhar. Estava igualmente a par da caixa de impossibilidades e incapacidades em que me enfiavam.

 Mas não tinha noção de que poderia ser assassinada ao virar da esquina apenas por ser negra. O dia 10 de Junho de 1995 – para sempre marcado pelo bárbaro homicídio de Alcindo Monteiro – forçou essa tomada de consciência.

Lembro-me de, a partir daí, me sentir insegura, desprotegida, e condenada a uma existência marcada pela hipervigilância, experiência que registei nas páginas de um dos diários adolescentes que ainda hoje conservo.

Esquecer Alcindo Monteiro para mim nunca foi uma possibilidade, embora o seja ainda para demasiadas pessoas, conforme tenho observado nas intervenções anti-racistas que venho realizando em escolas. 

Incapazes de reconhecer a imagem ou o nome da denominada “Vítima perfeita”, os estudantes demonstram muitas vezes interesse em saber mais, exactamente como aconteceu com Miguel Dores, realizador do documentário “Alcindo”. 

O trabalho estreou em 2021 e, desde então, tem percorrido várias cidades portuguesas e internacionais, numa trajectória que vai passar pela Bienal BoCa, e que, espero, contribua para inscrever o 10 de Junho de 1995 na memória colectiva. 

Enquanto esse dia não chega, a morte de Alcindo continua a ser reduzida – quando muito – a uma nota de rodapé, conforme evidencia o julgamento do activista anti-racista Mamadou Ba, sentado no banco dos réus por nos fazer lembrar o que não pode ser esquecido: os nomes dos racistas que, em matilha, cometeram o crime.

"Ao contrário de uma das figuras principais do assassinato de Alcindo, o hammerskin Mário Machado, João Martins tem conseguido, salvo raras exceções, passar pelos pingos da chuva do escrutínio público", publicava, a 14 de junho de 2020, o dirigente do SOS Racismo no seu Facebook, assinando as palavras que o Ministério Público (MP) considera merecedoras de condenação judicial.

Honra por encomenda

Para a procuradora, o texto do activista “é susceptível de colocar em causa a honra” e o “bom nome” de Mário Machado, cadastrado nazi que interpôs a acção judicial contra Mamadou. “Ele [Machado] é um cidadão português. Não tem direito a sentir-se ofendido quando o ofendem publicamente?”, questionou a magistrada, em dia de alegações finais.

O momento, vivido na passada quarta-feira, 20, relançou, na sala de tribunal, uma discussão que marca este processo desde o debate instrutório: que honra tem um criminoso de carreira, que colecciona acusações e condenações em casos de extrema violência, professa o ódio como ideologia, e a 10 de Junho de 1995 saiu à rua para “caçar pretos”, como forma de assinalar aquele que para si é “o dia da raça”?

“Não há honra susceptível de ser ofendida”, declarou desde esse primeiro momento Isabel Duarte, advogada de defesa de Mamadou Ba, posicionamento reforçado ao longo do julgamento, iniciado a 10 de Maio, e cuja leitura da sentença ficou marcada para 20 de Outubro, às 11h.

Pede o Ministério Público que o activista anti-racista, reconhecido internacionalmente pela defesa dos Direitos Humanos,  seja condenado pelo crime de difamação, publicidade e calúnia, de alguém que defende apaixonada e abertamente a “morte de comunistas, pretos, paneleiros e mouros?”, conforme assinalou Mamadou na suas alegações finais.

“(…) à armadilhada pergunta de saber se toda e qualquer pessoa tem direito à honra, a minha resposta é, obviamente, inequívoca, e é não. Quem atenta à dignidade humana não constrói a própria honra. Pois não tenho dúvida alguma que não se pode gozar de honradez alguma pelo exercício da violência. Quem deliberadamente mata ou cuja acção ou ideias levam propositadamente à morte, não tem honra nenhuma a defender ou a preservar. E as instituições, nomeadamente o sistema judicial, não podem servir para apagar a memória dos crimes contra a democracia como é a violência racial. A honra não é nenhum atributo genético, é um compromisso ético. Quem não a tem e nada faz para a ter, não merece nem pode ter honra nenhuma”.  

Firme na defesa da nossa democracia, o dirigente do SOS Racismo sublinha que “é doloroso ver a aceitação, por parte do Ministério Público, de um processo de manipulação política da extrema-direita, cuja existência em si é uma afronta à nossa ordem constitucional”. 

Reiterando o carácter sistémico do julgamento, o activista sublinha que este processo não é entre si e um criminoso neonazi, “mas sim um processo do sistema de justiça contra si próprio, que se deve confrontar com a contradição de defender alguém que quer destruir a própria democracia ao serviço da qual está a justiça”.

Com a combatividade a que sempre nos habituou, Mamadou Ba sublinha ainda que “por todas as vítimas mortais e aquelas que estão vivas, mas continuam a lutar com as sequelas daquela trágica noite de 10 de Junho de 1995, e ainda pelas vítimas actuais do racismo quotidiano, não podemos fugir à responsabilidade de nomear os seus carrascos, custe o que custar”.

Sem meias-palavras nem “meias-verdades”.

*Título da conversa que vou moderar no próximo dia 1 de Outubro, às 18h30, no âmbito da programação Bienal BoCa x Lisboa Criola
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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