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1, 2, 3, macaquinho do português

Se em vez de relativizarmos episódios de racismo quotidiano – tentando justificar o injustificável – questionarmos o sistema que os produziu e continua a reproduzir?

Crónica 74
9 Junho 2022

Depois de ter dado ao mundo o tráfico transatlântico de seres humanos – que a narrativa dos saudosistas românticos insiste em apresentar como "novos mundos"–, Portugal continua a brindar-nos com doses generosas de 'inovação' racista.

Qual empreendedor que vai actualizando a oferta de acordo com as sensibilidades do mercado – agora tão humanizado que não se pode dizer nada –, o país continua a mostrar a sua “raça”.

“Não é o país inteiro, são algumas pessoas malformadas”, canso-me de ouvir e de ler, à medida que tento explicar que o problema começa justamente aí: na mania de pessoalizar o que é estrutural.

E, se em vez de relativizarmos episódios de racismo quotidiano – tentando justificar o injustificável –questionarmos o sistema que os produziu e continua a reproduzir?

Pensemos nisto: porque é que ocorre a um autarca (Antonino Sousa) recuperar uma tradição que tem por nome “Baile dos Pretos”, e se move ao ritmo de versos profundamente racistas?

Porque é que um município (Penafiel) entende que contestar uma celebração carregada de insultos como este “O Preto é o rei dos matos/Imperador de macacos/Não posso levar avante/Pretinho andar de Sapatos”,  é puritanismo e efeito do politicamente correcto?

Do mesmo modo, porque é que um futebolista português (Rafael Ramos), sob investigação no Brasil por injúria racial – na sequência de uma denúncia apresentada por outro jogador, a quem terá chamado de macaco –, alega que, em Portugal, esse “não é um comentário preconceituoso”? Pormaior: o mesmo futebolista começou por dizer que tudo não passou de um mal-entendido, negando o uso da palavra macaco. Então, porque é que em tribunal argumentou que desconhecia a conotação racista que “macaco” tinha no Brasil, escudando-se em pretensas diferenças culturais.

Mais: como pode um protagonista do desporto-rei desconhecer a coreografia de guinchos e esbracejares vinda das bancadas com o propósito de enxovalhar jogadores negros, equiparando-os a macacos? Vemo-la em Portugal e por todo o mundo, e, há cerca de oito anos, até tivemos um caso famoso de arremesso de uma banana contra o futebolista Dani Alves.

Aconteceu em Espanha, que, mesmo estando muito longe de ser um exemplo no combate anti-racista, não deixou a situação passar impunemente: o agressor racista começou por ser identificado e detido e acabou erradicado pelo próprio clube. Como seria em Portugal? Não precisamos de teorizar sobre o assunto, porque prática é coisa que não nos falta.

Note-se que nem mesmo o amplamente mediatizado caso Marega produziu qualquer mudança no sistema, que continua a satisfazer-se com umas mensagens de conteúdo anti-racista em algumas jornadas, uns pedidos de desculpa envergonhados de adeptos-agressores e alguns euros de admoestação aos clubes. Acrescente-se que o episódio só ganhou projecção porque o atleta – a despeito da insistência dos colegas para continuar em jogo –abandonou o relvado após mais de 70 minutos a ouvir insultos racistas, incluindo os clássicos sons e gestos de macacos.

Aconteceu em 2020, e poderia ter marcado um antes e depois no combate ao racismo nos recintos desportivos. Mas Portugal demonstrou, uma vez mais, que a estrutura racista que o sustenta está em boa forma.

Veja-se mais um caso: Cíntia Martins, futebolista negra de 14 anos, reagiu a insultos racistas provenientes da bancada e acabou expulsa, enquanto quem a chamou de macaca continuou a desfrutar do seu ódio, sem qualquer “marcação”.

Aparentemente, o árbitro não se apercebeu das agressões, vomitadas no início do ano, e assinaladas à margem do jogo porque o treinador da atleta as denunciou nas redes sociais.

Em cada um desses episódios, encontramos a normalização da violência racista, e a prática reiterada de desumanizar pessoas negras, equiparando-as a macacos. Tão enraizada em Portugal que já faltou mais para Rafael Ramos convocar a “tradição” de Penafiel em sua defesa. E tão enraizada que, em 2016, os ataques de inspiração símia dirigidos a Renato Sanches – na partida entre Benfica e Rio Ave –, não mereceram qualquer menção nos relatórios dos árbitros ou dos delegados da Liga.

Foi preciso um jornal divulgar imagens das agressões verbais para se iniciar uma investigação, encerrada um ano depois com o pagamento, pelo clube de Vila do Conde, de uma multa de pouco mais de 500 euros. Um valor que continua a render juros para a impunidade de grupo.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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