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ILiteracia ou ILusionismo?

A Iniciativa Liberal não apresenta propostas concretas porque não as tem ou não as quer dizer. Mas o seu programa é simples: cortar no que for preciso. Promete a todos a redução de impostos, mas as suas políticas cortam nos serviços públicos enquanto as empurra para privados mais caros.

Crónica 74
7 Março 2024

Numa entrevista recente, o Observador perguntou ao líder da Iniciativa Liberal como pretende reduzir a despesa pública – uma das grandes bandeiras do partido para financiar o choque fiscal. As respostas de Rui Rocha só podem ter duas justificações: um grau de impreparação e desconhecimento fora do comum ou uma vontade de esconder os cortes que o partido tenciona mesmo efetuar. Vale a pena olhar com atenção para a entrevista.

“Jornalista: E seria onde esse ajustamento [da despesa pública]?

Rui Rocha: Ainda há dois dias estive em Loures na obra do metro, que supostamente ia ser financiada a fundo perdido e já vai numa conta de 500 milhões de euros entre empréstimos e financiamento direto do Orçamento do Estado. Sei que isso é one-off, que não é despesa permanente, mas, seguramente, em 123 mil milhões de euros…”

Jornalista: Mas o que é que ia fazer no metro?

RR: É uma despesa que depois aparece no Orçamento do Estado e que é apresentada inicialmente como despesa que é financiada a custo zero. Não pode haver derrapagens, têm que ser aproveitados os fundos europeus quando estão disponíveis e não pode haver este tipo de derrapagens. Eu sei, até no programa do Ricardo Araújo Pereira se falou dos lápis, do economato, tudo isso… A ideia é: é possível ou não olhar para 123 mil milhões de euros de despesa e dizer ao Estado que tem que fazer um ajuste de 2,8%?”

Ou seja, Rui Rocha começa por referir a obra do metro de Loures, mas quando o jornalista pergunta o que é que tenciona fazer, foge à pergunta e não explica como reduziria o gasto (talvez para não admitir que cortaria no investimento nos transportes públicos). A seguir, assegura que o corte da despesa "não é, obviamente, nos lápis", como chegou a sugerir durante a campanha eleitoral, e vira-se para a Saúde. Assim que o refere, arrepende-se e diz que não vai "entrar por aí" por ser um "tema tão sensível que não vale a pena"... admitir que quer cortar?

“Jornalista: Se calhar é possível, convinha que soubesse onde. Porque, de facto, se é nos lápis…

RR: Não, não é apenas, obviamente, nos lápis. Há dados que dizem que na saúde, por exemplo, 20% do orçamento é desperdício, mas nem vou por aí porque creio que a saúde é um tema tão sensível que não vale a pena. Seguramente noutros ministérios, noutras atividades, há um conjunto de despesas, de custos intermédios, de desperdícios que é possível recuperar. E é essa a pergunta que nós queremos fazer ao Estado.”

Depois, Rui Rocha adota um discurso mais vago sobre custos intermédios e desperdícios. Começa por garantir que o partido tem "uma ideia concreta", mas é incapaz de referir um único exemplo, acabando por admitir que é "difícil termos uma ideia absolutamente direta".

“Jornalista: Já houve muitos candidatos em eleições a dizer que podiam cortar nas gorduras no Estado e nos consumos intermédios e depois isso é sempre impossível porque, inevitavelmente, uma estrutura tem sempre gastos. É impossível ter um desperdício zero. Mas se não tem uma ideia concreta vai ser difícil.

RR: Nós temos uma ideia concreta, mas quem tem os dados concretos também, devo dizer, sobre a despesa do Estado são as Finanças. Há alguma opacidade no Estado e, portanto, é difícil termos uma ideia absolutamente direta de que vou chegar à rubrica tal…”

Face à ausência de resposta, o jornalista confronta o líder da IL com o facto de fazer depender a promessa de baixar impostos de uma redução da despesa que não explica. Novamente, Rui Rocha anda às voltas e não é capaz de dar uma resposta minimamente concreta. As respostas que se seguem são, aliás, confrangedoras.

“Jornalista: O Estado é constituído também por pessoas e serve pessoas, portanto, essa contenção vai acabar por afetar as pessoas.

RR: O que nós dizemos é que será em ineficiências.

Jornalista: No fundo, vai ser sem sacrifício nenhum, é o que está a dizer às pessoas.

RR: O que nos parece é que 2,8% é uma ordem de grandeza tão diminuta que seguramente não é necessário afetar as pessoas.

[…]

Jornalista: Compreende que haja algum ceticismo quando a IL faz depender a compensação para o corte fiscal que propõe do combate às ineficiências e depois não consegue especificar que ineficiências são essas, onde é que se vai buscar esse dinheiro.

RR: Acabei de dar um exemplo.

Jornalista: Um exemplo micro.

RR: Não é tão micro quanto isso. Tudo aquilo que se faz hoje na saúde tem um grau de ineficiência muito grande.

Jornalista: Há instantes disse que não queria mexer na saúde por ser sensível.

RR: Quando estava a falar da questão dos consumos intermédios, porque acho que isso tem que ser muito bem avaliado, porque também há sítios onde faltam depois consumíveis básicos e é uma questão sensível.”

As respostas dadas até agora sugeririam que o problema da IL é de desconhecimento e ignorância sobre o funcionamento do Estado. No entanto, face à insistência do jornalista, Rui Rocha acaba por destapar o véu sobre a visão da IL para os serviços públicos: “RR: Nos últimos anos foram admitidos cerca de 90 mil funcionários, nos governos de António Costa — 90 mil funcionários a mais do que havia quando iniciou funções. Para uma legislatura, aquilo que estamos a dizer, se com esta média de saída de 20 mil funcionários, 15 mil por ano, estaríamos a dizer que reduziríamos cerca de 40 mil funcionários públicos até o fim da legislatura. Sempre com este mecanismo da reforma, não estando aqui em causa nenhum tipo de negociações antecipadas e outras questões.”

Novamente, o líder da IL parece arrepender-se e diz que o corte do número de funcionários públicos não inclui médicos e professores, mas não é capaz de identificar as áreas onde pretende cortar e o impacto que isso terá na qualidade dos serviços prestados pelo Estado. Nada bate certo: mesmo que prometa contratar mais médicos e professores, a IL também promete apostar nos privados com cheques-saúde e ensino pagos pelo Estado, aumentando a procura dos privados e a sua necessidade de contratar profissionais... ao público. Mesmo assumindo que os médicos caem do céu, não é possível contratar mais médicos (pagos pelo Estado) para o setor público, contratualizar mais serviços (pagos pelo Estado) com os privados e reduzir a despesa do Estado.

Era importante saber que funcionários públicos é que a IL pretende despedir, visto que não só não é verdade que Portugal tenha funcionários públicos a mais, como é um dos países da União Europeia onde com menor percentagem de funcionários públicos no total do emprego.

O entrevistador vira-se para a proposta de redução do número de ministérios. Torna-se difícil perceber onde seriam reduzidos custos, uma vez que o líder da IL não avança nenhuma proposta concreta porque "isso exige estudo". Merece pontos pela honestidade.

“Jornalista: E em relação ao número de Ministérios: a IL quer reduzi-los. Quer acabar com quais ministérios?

RR: Por exemplo, não há razão para o Ministério da Habitação existir fora das Infraestruturas. No outro dia falei até da Agricultura dentro da Economia porque é um ministério autónomo, mas sem nenhum poder e sem nenhum tipo de capacidade política. Eu falei até de integrar a Agricultura na Economia, mas poderia estar também no Ambiente.

Jornalista: Mas é só integrar ou é integrar e acabar com estruturas intermédias?

RR: Do ponto de vista dessas estruturas intermédias, temos um caminho que tem a ver com a descentralização. Por exemplo, na Agricultura foi muito polémica a questão das direções regionais, é uma articulação que está em curso. É possível hoje travar um comboio que está em curso no sentido de fazer, de prometer ou de assumir desde já que há uma redução estrutural de todos os departamentos intermédios? Creio que é preciso ser transparente nessa matéria: isso exige estudo, portanto não quero…

Jornalista: Mas o objetivo de redução de ministérios é meramente na cúpula, ou seja, ter apenas um responsável que junta várias pastas e o resto é tudo igual, ou se o vosso objetivo é, por um lado, retirar o Estado de algumas áreas, por entenderem que não faz sentido ter um ministério para as regular, e, paralelamente a isso, a tal diminuição do peso do Estado e destas estruturas intermédias. É só uma questão cosmética de haver um ministro que é responsável por duas áreas e o resto fica tudo igual?

RR: Como princípio não me parece mal — mas desejavelmente, sim, isso há-de levar a uma reestruturação. mas, par ser totalmente transparente, isso não está estudado com um grau de certeza para que eu possa comprometer-me com uma redução de 10, 15, 30 estruturas.

Jornalista: Portanto, é meramente proclamatório.

RR: É uma proclamação de um caminho que nós queremos ter, mas que é uma proclamação importante do ponto de vista de que a cúpula também tem que ter essa responsabilidade de não fazer proliferar estruturas que não são necessárias.”

Nem vale a pena perder muito tempo com as contas que o partido apresenta para sustentar o seu programa: o crescimento económico milagroso que surge assim que se reduz (pela enésima vez) a taxa de IRC em Portugal não tem a mínima credibilidade. O aspecto novo e mais importante da entrevista é mesmo o da visão da IL sobre o Estado. O partido não apresenta propostas concretas porque não as tem ou não as quer dizer. Mas o programa é simples: cortar no que for preciso. A promessa de reduzir impostos a todos tem um reverso da medalha. A IL acena com poucas dezenas de euros para a maioria das pessoas, que recebe salários médios ou baixos e já paga pouco (ou nenhum) IRS, enquanto corta nos serviços públicos e as empurra para privados mais caros.

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