Albufeira de Santa Clara | Imagem de Diogo Dias Coutinho
É o maior concelho do país, mas não é o único onde a escassez dos recursos hídricos é uma realidade próxima. A albufeira de Santa Clara está a ficar sem água. Odemira pode servir de exemplo para o resto do território nacional pela forma como está a ser ignorado o problema.
Perto de São Teotónio, numa zona rural com alguma densidade populacional, não existe fornecimento básico de água.
Para pedir acesso à água que circula no canal junto à localidade de Serro na Vinha tem de se contactar a Associação de Beneficiários do Mira (ABMira), e foi isso que Joana Silva (nome fictício) fez em outubro de 2020. A primeira resposta, por e-mail, veio a branco, e a segunda, passados cinco dias, depois de chamar a atenção para a ausência de conteúdo, foi a de que "na presente campanha não estão a ser aceites novas captações".
Joana voltou a insistir, já em 2021, e a resposta foi de que a "Associação de Beneficiários do Mira fornece água bruta aos prédios rústicos beneficiados pelo Aproveitamento Hidroagrícola do Mira. Os fornecimentos para prédios rústicos fora do Aproveitamento estão sujeitos a autorização anual, sendo sempre fornecimentos a título precário, sujeito às disponibilidades hídricas da albufeira. No presente ano não são autorizados fornecimentos a título precário."
E assim, desta forma, deixam Joana sem outra hipótese. Se quiser, pode fazer um furo ou ter um poço para captar água subterrânea. E se quiser furar a terra, tem de pedir à Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que tem cerca de cinco mil pedidos em anos secos. Ou então não pedir, simplesmente fazer, sem licença.
Nos contactos que esta cidadã estabeleceu, nunca lhe foi dito que a ABMira não é responsável por autorizações de captação ou fornecimento de habitações.
No entanto, para esta investigação, a APA garantiu ao Setenta e Quatro que a "ABMira fornece água exclusivamente para rega agrícola ao perímetro do Mira, que se localiza maioritariamente na região Alentejo (concelho de Odemira) e no concelho de Aljezur (Algarve)". Disse ainda que "a entidade responsável pelo fornecimento, em Alta, de água para consumo humano ao concelho de Odemira, é exclusivamente a empresa Águas Públicas do Alentejo, nomeadamente utilizando captações localizadas em canal de rega da ABMira".
O que começou com um simples pergunta sobre a distribuição dos recursos hídricos para consumo doméstico de uma parte do maior concelho do país (e um dos mais secos) transformou-se num enorme ponto de interrogação. E esbarrou em respostas institucionais contraditórias.
A APA é a autoridade máxima na gestão de recursos hídricos e subsequente fiscalização, e a informação que nos fornece é contrária à que a ABMira pratica e afirma praticar. Em resposta a algumas questões enviadas por e-mail, a ABMira diz que a "área beneficiada pelo Aproveitamento Hidroagrícola do Mira é de 12000 hectares abrangendo 2333 prédios rústicos, na sua totalidade ou parcialmente, com o objetivo de irrigação de campos agrícolas". Mas não só, diz também que para ser beneficiário das águas geridas pela ABMira, seja para prédios rústicos, indústria ou agricultura "de acordo com o art.º 6.º do Decreto Regulamentar n.º 84/82, de 4 de novembro, de um modo geral, podem ser beneficiários os empresários agrícolas, proprietários, possuidores, arrendatários, usufrutuários ou utilizadores autorizados pelo proprietário de um prédio com área beneficiada."
A dúvida mantém-se, e a APA, contactada para este artigo, surpreende-se com o facto de, afinal, a ABMira não fornecer ou autorizar captação de água apenas para agricultura.
A nós, surpreende-nos algo mais caricato: porque é que um morador tem de pedir fornecimento de água a uma associação que gere os beneficiários de aproveitamentos hidroagrícolas?
E como se explica que parte da população do Alentejo ou Algarve para ter água a sair da torneira tenha de furar o solo pelos seus próprios meios, pois o serviço vigente na distribuição de água já tem um destino para este recurso, que é de todos?
Por enquanto, 30% da população de Odemira não tem acesso à rede pública. Mais ou menos o mesmo que acontece a um terço da população mundial.
O caso da ABMira e dos canais adjacentes da albufeira de Santa Clara é o mais grave no que toca à escassez de água no país, com o nível a baixar todos os anos, sendo hoje menos de 50%. No entanto, este flagelo atinge todo o sul de Portugal, e no futuro também outras albufeiras espalhadas por todo o território nacional poderão ser afetadas, assim como as diferentes proveniências de água, seja superficial ou subterrânea.
A gestão das águas tem dois aspetos que são habitualmente tratados de forma distinta, a origem (bacias hidrográficas), e a distribuição.
Se olharmos para a situação do Alentejo e Algarve vemos duas situações preocupantes. Por um lado, habitantes que ainda não têm água da rede pública e pequenos horticultores e locais de turismo que são considerados utilizadores precários - ou seja, nunca sabem se terão água no ano seguinte e em que quantidade. Por outro, vemos o perímetro de rega aumentado em diversas regiões, beneficiando as grandes estruturas, que acabam sempre por ser as mais facilitadas no labirinto das burocracias.
A falta de regulação no sector agrícola é outro aspeto que lesa a gestão de recursos hídricos no país. Qualquer pessoa pode comprar ou arrendar terreno para explorar da forma que melhor entender, sem qualquer tipo de triagem ou consulta ao Ministério da Agricultura ou à autarquia. Em Portugal não há uma entidade oficial com competências para licenciar explorações agrícolas.
Se arrendarmos ou comprarmos 100 hectares de terreno para plantar abacates, a disponibilidade hídrica é quase imediata, mas se quisermos ter água em casa, o processo é tão complexo que acabamos por usar um poço ou fazer um furo, intervenção com custos elevados e vulnerável às contaminações das águas subterrâneas. Por fim, é vulnerável também à finitude da água disponível nos lençóis freáticos.
Diferentes ministérios têm sob a sua tutela distintas entidades responsáveis pela distribuição de água no país. No entanto, a APA é a autoridade máxima no que diz respeito à gestão de recursos hídricos, e é uma instituição sob a tutela do Ministério do Ambiente e da Ação Climática.
Significa isto que exerce funções de "execução da política nacional dos recursos hídricos, de forma a assegurar a sua gestão sustentável, bem como garantir a efetiva aplicação da Lei da Água e demais legislação complementar". Deve também "assegurar a protecção, planeamento e ordenamento dos recursos hídricos" e emitir títulos de utilização e fiscalização do cumprimento da sua aplicação, entre várias outras competências. Em resumo, todo o planeamento, licenciamento e fiscalização dos recursos hídricos.
A Lei da Água, aprovada em dezembro de 2005, é um tratado de desenvolvimento sustentável. Se seguissemos os padrões ali assinalados, seríamos um país com uma distribuição de água equitativa, sem desperdícios e que assegurava o ambiente aquático nas reservas superfíciais e subterrâneas.
Um dos princípios desta lei é o "do valor social da água, que consagra o acesso universal à água para as necessidades humanas básicas, a custo socialmente aceitável, e sem constituir fator de discriminação ou exclusão". O documento refere ainda itens relacionados com a dimensão ambiental deste bem essencial, com o seu valor económico, com o princípio da gestão integrada e com o uso "razoável e equitativo das bacias hidrográficas partilhadas".
Seria garantido, também, que os níveis disponíveis não são ultrapassados pela taxa média anual de captação. Até 2011, quando a APA assumiu essas funções, o organismo do Estado responsável pelo cumprimento desta lei foi o Instituto da Água, dividido em administrações regionais.
A administração dividiu-se em diferentes entidades que seguem critérios distintos e têm ritmos discrepantes. Têm também interesses específicos, pouco articulados entre si. A água é, portanto, um bem público que está ser gerido para fins privados por entidades (como as associações de regantes), que beneficiam as grandes instalações agrícolas.
O Alentejo é a região com maior prevalência de secas e é também a que tem a maior superfície de regadio. Segundo dados da Direção-geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), as áreas infraestruturadas com regadio são (em hectares) de: 10 038 no Norte, 31 636 no Centro, 22 458 em Lisboa e Vale do Tejo, 162 334 no Alentejo e 13 175 no Algarve.
Das 59 albufeiras monitorizadas pela APA, segundo dados do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos, "32 apresentam disponibilidades hídricas superiores a 80% do volume total e 4 têm disponibilidades inferiores a 40% do volume total." Entre elas, a do Barlavento e de Mira.
As regiões com mais área de regadio são também aquelas em que albufeiras estão abaixo dos 50%.
Numa entrevista ao Expresso em maio de 2021, Carla Lúcio, da ABMira, explicava que "devido às baixas reservas da albufeira de Santa Clara, há necessidade de limitar o fornecimento de água para a campanha de 2021 por beneficiário inscrito", e dizia ainda que o abastecimento para as casas devia ser feito pela rede pública, em vez de ser dos canais da água.
O IGAMAOT, serviço central da administração direta do Estado, com direção exercida em conjunto pelos Ministérios da Modernização do Estado e da Administração Pública, do Ambiente e Ação Climática e da Agricultura e Mar, publicou um relatório de avaliação das atividades de rega do Mira (nos municípios de Odemira e Aljezur) em 2018. Este documento considera logo à partida "que a inexistência de um regime jurídico de licenciamento da agricultura intensiva (AAI) - ou sequer de qualquer definição deste conceito - pode comprometer o regime de salvaguarda instituído pelo Plano de Ordenamento do PNSACV."
E aponta quais as fragilidades mais acentuadas, entre elas os factos relacionados com a água: "salienta-se que não foram elaborados os protocolos de colaboração (...) entre o ICNF e as entidades com jurisdição na matéria, referentes à implantação e gestão de monitorização da qualidade da água, do sistema da composição química do solo e da divulgação das condições específicas a respeitar na prática da fertilização e proteção fitossanitária para as diversas culturas."
Falamos aqui da utilização das águas para regadio e das consequências de um aumento de perímetro, mas na verdade o problema é mais amplo: grande parte do regadio em Portugal é privado, com água captada através de furos, tanques, charcas, barragens ou nascentes (segundo estudo da Fundação Calouste Gulbenkian sobre o "Uso da Água").
Muitas vezes não se sabe muito bem de onde vem e existem poucos contadores, à semelhança da maioria dos utilizadores de regadio público. A fiscalização torna-se difícil para uma situação tão complexa.
Neste cenário de escassez e de destruição da natureza (os ecossistemas que podiam ser o veículo para criar mais recursos hídricos), pequenos proprietários podem perder o direito a ter água, porque estão classificados como "precários" - critério vago que varia consoante a a distância do perímetro de rega. Isso é, já de si, um sinal de que a distribuição não é equitativa e tem falta de transparência. Mas o mais grave é no futuro não haver água para beber.
As duas grandes albufeiras do Alentejo são Santa Clara e Alqueva, e ambas são geridas por entidades ligadas ao Ministério da Agricultura. À partida, este é um processo com conflito de interesses. Foram criadas apenas com o intuito de fornecer água para regadio (como explicou recentemente na Assembleia o ministro do Ambiente), no entanto a sua existência causa um enorme impacto ambiental - com influência nos rios e ecossistemas adjacentes -, e a sua subsistência é igualmente a garantia de água para uso doméstico de parte da população.
Da albufeira de Santa Clara, 85% da água é para agricultura, 15% para uso doméstico e indústria. Neste momento, a capacidade desta albufeira está a 50%, como tal, a água tem de ser retirada através de um sistema elevatório.
No mesmo artigo em que a jornalista Carla Tomás refere este problema de escassez versus riscos da agricultura intensiva, a resposta da ABMira é que "o problema é a redução das afluências de água à albufeira", ou seja, a falta de chuva. E que nada tem a ver com o consumo anual agrícola médio.
No entanto, os números que apontam não coincidem com os que estão disponíveis nos relatórios da ABMira. Tem havido um constante aumento de volume de água disponibilizado para a agroindústria. É o chamado stresse hídrico, em que a procura excede a oferta.
Perante dados tão óbvios de escassez, é viável um sistema de cultivo intensivo? Segundo Gonçalo Leal, presidente da DGADR, tudo é compatível desde que realizado "com práticas adequadas", uma vez que na agricultura protegida ou sob coberto "a contabilização dos inputs é muito criteriosa, não havendo por norma desperdícios de recursos". Ou seja, a rega gota-a-gota e "as modernas práticas de diagnóstico (...) permitem aferir quais as necessidades reais da cultura" e fornecer só o necessário. Afirma igualmente que o consumo de água na agricultura não aumentou. No entanto, a água desce. Provavelmente, por "falta de chuva".
Se consultarmos o Portal do Clima, veremos como os cenários climáticos para o Alentejo e o Algarve são muito mais acentuados do que no resto do país nos dados de aumento de temperatura e diminuição de precipitação. Vivemos um clima mediterrânico nestas regiões. A falta de chuva afeta os solos e leva a um défice nas albufeiras. Muito depressa a escassez de água atinge toda a população.
Quanto a uma reversão das projeções climáticas, pouco há a fazer, porque já é certo o impacto do que temos feito até agora. Podemos sim, adaptarmo-nos a esta realidade, questionando a forma como o solo e os recursos hídricos estão a ser geridos.
"A água é um recurso biológico, se não protegemos os sistemas que permitem a sua produção, temos um problema", explica-nos Helena Freitas, investigadora na Universidade de Coimbra na área de biologia e ecologia e membro da Mission Board para as Alterações Climáticas da Comissão Europeia.
"Do ponto de vista do quadro legal e da União Europeia acho que recuámos nos últimos anos, não sei se haverá alento para recuperar. Não havendo pressão europeia, nós tendemos a descansar. Esse é um dos problemas, por outro lado temos também uma falta de diálogo entre a agricultura e o ambiente. Desresponsabilizam-se mutuamente", diz. E reforça a ideia de que temos cada vez menos água no sistema, com albufeiras menos alimentadas, perdas a montante e problemas a jusante.
Segundo o Plano Nacional de Regadio (2019-2022) vai haver haver um aumento do regadio público, com a expansão da área beneficiada do Alqueva, a albufeira que se prevê como medida SOS para a escassez vivida na albufeira de Santa Clara, através de ligação entre as duas.
Em resposta à pergunta sobre as medidas que vão tornar o Plano Agrícola Comum "mais verde", o Ministério da Agricultura diz ao Setenta e Quatro que se vai contar "com 9 721M€ de fundos comunitários para os próximos sete anos, que visam promover a melhoria da sustentabilidade económica, social e ambiental do sector, e permitir assegurar a resiliência e a vitalidade das zonas rurais, assente em atividades produtivas suportadas no princípio de uma “gestão ativa” do território, baseada no conhecimento e na inovação, em que o solo seja visto como o principal ativo dos agricultores e produtores florestais."
A única conclusão a que podemos chegar é que o sector da agricultura em Portugal se vai tornar ainda mais exigente em termos de recursos hídricos e que, segundo diversos especialistas, a disponibilidade e gestão desse recurso não é suficiente. Que resposta vão ter as outras entidades governamentais responsáveis pela gestão e ordenamento do território?
Após a exposição da situação desumana dos trabalhadores recrutados para trabalhar nas estufas, conhecida por todos desde há anos, a única resolução até ao momento foi um novo decreto-lei que visa melhorar as condições de habitação, no sentido de continuar a receber os migrantes sazonais. Simplifica-se assim o "cumprimento de deveres" das empresas, com vista a aumentar as instalações de novas áreas urbanas, ou de alojamento temporários amovíveis (para uma previsão de 40 mil trabalhadores).
Na teia complexa já aqui descrita, muitas das contradições são vividas internamente, entre ministérios. A agricultura é um sector que exige a disponibilidade hídrica para o seu funcionamento, o Ambiente é a entidade que avalia essa disponibilidade.
A taxa de crescimento de perímetro de rega tem sido de 150 hectares ao ano, segundo Mário Encarnação, do movimento Juntos pelo Sudoeste. Sabendo que chove cada vez menos, é natural que a preocupação seja precisamente essa disponibilidade hídrica. Este geógrafo refere a insustentabilidade deste tipo de exigência. "A tecnologia pode ser eficiente", diz, "mas se multiplicarmos por mil... Um ano chuvoso não aumenta consumo, mas o ano seco aumenta o consumo. A água evapora, os sensores dizem que é preciso mais água". E a chuva nunca vai ser suficiente para acompanhar as necessidades.
A organização Juntos pelo Sudoeste formou-se com o objetivo de alertar o Estado para a resolução de conselho de ministros 179/2019. No decorrer da sua luta, entraram em diálogo com algumas identidades. Mário recorda-se do encontro com a autarquia onde se falou do limite de extração de água da albufeira, a partir do qual só seria para consumo humano. Perceberam que isso "não está definido".
Em geral, no país, esse plano de reserva estratégica mínima está definido, mas na albufeira de Santa Clara não está, segundo este geógrafo residente no concelho de Odemira. E refere que "entre Agosto de 2019 e Janeiro de 2021 se esteve continuamente a bombear água, com o nível abaixo da cota 114."
Para esta organização, preocupada essencialmente com o impacto ambiental das estufas no Parque Natural, a gestão do recurso hídrico é lacónica, e "daí a necessidade de melhorar a eficiência, fazer um planeamento, e perceber que determinadas áreas de culturas não são possíveis." No final, estas soluções "são boas para todos", explica Mário Encarnação, incluindo para a ABMira, porque fica assegurada a disponibilidade hídrica para o futuro.
Também para a APA, o essencial é uma legislação "que pode ser ágil", e articulada entre as "autarquias, o Instituto de Conservação da Natureza, a Agricultura e a APA", como explica André Matoso ao Setenta e Quatro.
"O regadio deve ser feito respeitando tudo. Há limites, não pode ser em qualquer lado e de qualquer maneira. Se o Estado português quer apostar na agricultura, tem de haver alguma estrutura a que se dirijam as pessoas que querem investir, para saber se é recomendável fazer ali o tipo de agricultura que pretendem. O Ministério da Agricultura devia estar disposto a ajudar a quem queira fazer vinha, quem queira fazer agricultura biológica, citrinos ou cereais..." E acrescenta que "a atividade agrícola em Portugal não tem qualquer licenciamento", e que isto "merecia mais reflexão. Somos um país burocrático, se quisermos fazer um alpendre para não chover à porta de casa, tenho de ter pareceres, mas comprar 70 hectares de terreno e pôr lá o que me apetecer, ninguém licencia, nem a Câmara, nem a Direcção-Geral da Agricultura. Não há fiscalização. Não há uma política de controle no bom sentido, até de aconselhamento."
O governo já percebeu há muito tempo que esta crise não tem precedentes. A crise da água. O fim da água. A inexequibilidade das barragens e a falta de estruturas que assegurem a disponibilidade para consumo humano.
Em março deste ano, o Ministro do Ambiente e da Ação Climática afirmava no 15º Congresso da Água que este é um bem que deve ser gerido como um "recurso circular". Mas então, como se pode fazer isso?
Para o Ministério da Agricultura, o fim deste recurso não parece ser um problema. Para este organismo, a agricultura intensiva é perfeitamente compatível com a disponibilidade hídrica, porque se rege segundo tecnologias avançadas, pouco exigentes sob o ponto de vista hídrico.
Afirmam que "os consumos de água para regadio nas regiões do Alentejo e do Algarve têm vindo a decrescer, como resultado de uma ocupação cultural menos consumptiva e da utilização de sistemas de distribuição e de métodos rega com maior eficiência hídrica (rega por gravidade para rega sob pressão)". Além disso, continua, "em 2017, as culturas regadas mais representativas foram o olival (35%), o milho (12,5%) e o arroz (12,6 %), sendo que o olival tem uma dotação média de aproximadamente 3 100 m3/ha.ano [sic], o que representa cerca de um terço das necessidades de rega do milho."
Torna-se difícil explicar a descida da cota na albufeira de Santa Clara. É usada essencialmente para a agricultura, no entanto isso não é um problema. "Em maio de 2021, a Direção da AB Mira elaborou uma proposta de limitação do fornecimento de água na campanha do corrente ano, proposta esta que será apresentada à assembleia geral a realizar proximamente.
Uma das medidas propostas passa por manter as captações precárias nos canais de rega, mas limitando o fornecimento de água a título precário a 1 000 m3 por utilizador", refere ainda o Ministério da Agricultura. Os tais precários, título vago - porque significa que estão fora do perímetro de rega -, vão ficar sem água. A ABMira entrega cerca de 3,5 hm3/ano aos serviços municipalizados de Odemira, para abastecimento urbano. Será também esse valor suficiente no futuro?
A verdade é que a água está a faltar para os pequenos horticultores, mas para as empresas de estufas por enquanto esse recurso é, por enquanto, assegurado. Quando deixar de o ser, as empresas simplesmente vão-se embora. A disponibilidade não é suficiente para a procura e a gestão está a ser feita apenas numa direção. Habitantes que há mais de 20 anos tinham (e pagavam) o fornecimento para os seus cultivos deixam de ter água ainda este ano.
Nas estratégias de adaptação às alterações climáticas, o Ministério da Agricultura defende o regadio é uma das medidas "mais promissoras", e que "o regadio baseado em estruturas de armazenamento intersazonal de água confere maior resiliência da agricultura a esses curtos episódios de seca". E conclui: "neste contexto, não é surpreendente que as regiões mais áridas sejam aquelas onde o regadio se tem expandido mais."
Em relação à regeneração dos solos após as fases do cultivo intensivo, dizem que "não é sinónimo de de destruição de solo agrícola, seja qual for a atividade". "Em Portugal", defendem, "as maiores ameaças à sustentabilidade dos solos agrícolas residem na expansão desregrada da construção urbana, na poluição do solo com origem em despejos urbanos ou industriais (lixeiras, parques de sucata, despejos ilegais de óleos, lamas industriais ou urbanas) e erosão."
Enquanto parte do mundo tenta convencer os agricultores a destinar território à plantação de novas árvores (a Irlanda, por exemplo), outra parte aposta na desflorestação e na agricultura intensiva. Num país como Portugal, onde as alterações climáticas vão ter um impacto severo, adotar o sistema de agrofloresta teria benefícios não só em termos de mitigação (para absorção de dióxido de carbono), como na gestão de recursos hídricos e na fertilização dos solos.
Certas regiões estão em risco de ficar sem água, e Odemira será uma das primeiras. Outros países da Europa não terão esse problema, porque chove na estação mais quente. Mesmo no caso de países em que grandes superfícies de agricultura ocupam o território, como em Inglaterra, por exemplo, nunca chegam aos nossos 75% do total de água utilizada na agricultura.
Alguns tipos de agricultura não são compatíveis com os objetivos apoiados por Portugal nos parâmetros do Pacto Ecológico delineado pela União Europeia. Quando se abre mão de dezenas de hectares para expansão de estufas, estamos a ir precisamente no caminho contrário. Seria grave em qualquer lado, porque vivemos globalmente uma crise climática, mas Portugal, no contexto europeu, é especialmente afetado por esta negligência quando se trata de terrenos no Alentejo e no Algarve.
É neste sentido que o movimento Juntos pelo Sudoeste, tal como outras organizações, deixa o seu alerta, assinado em petição em março e discutido em plenário na Assembleia da República em junho: a insustentabilidade de uma área tão vasta coberta por plástico (de 1600 campos de futebol, pode triplicar para 4800) e a carência de água em ecossistemas essenciais à região, tanto em termos de mitigação (com o corte de fornecimento para caudais), como em termos de sobrevivência da população.
Para José Alberto Guerreiro, presidente da Câmara de Odemira, a questão da escassez de água não está diretamente ligada à prática da agricultura intensiva. No entanto, vê neste setor grandes preocupações "sociais e ambientais", face "aos regimes em vigor do PNSACV e Rede Natura", para os quais "deveriam ser exigíveis níveis de controlo prévio das iniciativas agrícolas ao mesmo nível de outros tipos de projetos, aplicáveis noutras atividades económicas".
Em declarações ao Setenta e Quatro, o autarca do mais amplo e mais seco concelho de Portugal afirma que a solução devia passar pela "definição de um modelo de certificação local de todas as atividades, que incluem obrigações ambientais, sociais e económicas". E desta forma também se resolvia o aspeto da exploração humana e recrutamento pouco transparente que decorre naquela região há vários anos, e que tem vindo a crescer.
A plantação de abacates em 128 hectares na localidade de Barão de São João, alvo de uma contraordenação da APA, continua a funcionar, sem terem ainda sido repostas as árvores arrancadas e reduzido o número de abacateiros (os tais que precisam de 60 litros de água por dia cada um). O caso irá para tribunal, vai demorar, e o proprietário mantém-se impávido.
Esta exploração teve um parecer positivo da DGADR e autorização de captação subterrânea pela APA. Tudo isto se mantém também. Sobre este exemplo, o presidente da DGADR diz ao Setenta e Quatro que "desconhece o processo em questão, não tendo jurisdição em regadios individuais". Entretanto, esta produção causa impacto nos aquíferos de Almádena, em Odiáxere, ao pôr em causa o futuro do abastecimento público daquela região, porque se trata de uma reserva.
Não só o parque natural está a ser parcialmente destruído, como não há garantias de disponibilidade hídrica para a população.
Temos por um lado agricultura intensiva, que por muita tecnologia que se use, a poupança na eficiência provavelmente nunca irá compensar a exigência hídrica, temos por outro lado agricultores que não usam ainda sistemas gota-a-gota e optam pelo alagamento, alguns deles sem pagar a água que utilizam, e temos ainda as perdas de água nos canais do Mira, construídos na década de 1960: o canal condutor tem 38 km, terminando em dois reservatórios. Desses reservatórios iniciam-se dois canais secundários, o Canal de Milfontes, para Norte, e o Canal de Odeceixe, para Sul. No final, tudo vai parar ao mar, continuamente.
Sobre estas perdas, Gonçalo Leal afirma que "a flexibilização da disponibilização de água e o atual custo da mão-de-obra mudaram a metodologia de distribuição que, com a mesma infraestrutura, implica agora perdas de água relativamente elevadas, devidas sobretudo ao desequilíbrio entre a oferta e a procura de água no sistema de distribuição – a água não utilizada perde-se no final dos canais e regadeiras."
Em 2020, a Fundação Calouste Gulbenkian publicou um estudo (aqui já referido) sobre o uso da água em Portugal, que integrava uma equipa transversal a várias áreas. O acesso a este recurso fundamental tem sido progressivo na história da Humanidade, e Portugal tem tido o seu ritmo nas questões de infraestruturas e saneamento, muitas ainda por resolver.
A limitação deste recurso, causada por vários fatores, entre eles as alterações climáticas, mostra que este processo tem sido demasiado lento, quando temos ao dispor as ferramentas e o conhecimento para evitar uma distribuição desequilibrada, o desperdício e a falta de reutilização das águas.
O estudo olhou, sobretudo, para o sector que mais utiliza este recurso, a agricultura. Nele referem que "o World Resources Institute, numa projeção para 2040, classifica Portugal com risco elevado de stresse hídrico, ou seja, risco elevado de ter de gerir falta de água com qualidade, na resposta às necessidades do país. Um cenário que não é homogéneo no território português, estando o Sul mais vulnerável à escassez." É precisamente esse Sul, que aqui abordamos, a região que mais precisa de medidas de gestão sustentável, que garanta a disponibilidade hídrica para toda a população.
O modelo agrícola que predomina é ultrapassado e contraproducente. Não tem em conta o stresse hídrico que certas regiões já estão a viver. Este estudo revelou que uma grande parte dos agricultores (61%) diz que não paga a água que utiliza. Outra parte paga, mas utiliza a mais, ou seja, pratica um tipo de cultivo muito exigente na rega, mesmo quando esta é feita gota-a-gota, com os novos métodos que aos poucos vão sendo implementados.
A pergunta que deixamos é: o tipo de agricultura praticada no país é compatível com um cenário de escassez de água?
O ciclo da água leva o seu tempo. É um bem que nunca se perde, mas necessita de ecossistemas saudáveis para continuar a funcionar e para se regenerar. "O clima e a atividade humana influenciam e pressionam o ciclo de cada bacia hidrográfica que, em situações de desequilíbrio, é interrompido enquanto ciclo local", refere este estudo. Ou seja, não faltam avisos sobre uma das grandes ameaças do impacto antropogénico em Portugal: falta de água.
Outro impacto será o aumento de temperatura, muito acentuado no sul do país. Está tudo ligado, e resolvendo a gestão hídrica, estamos também a contribuir para um solo mais nutrido e mais fresco, com mais árvores, benéficas para a saúde humana.
Desenvolvem-se campanhas de poupança da água junto da população, criam-se sites na Internet e ações de formação - tornámos este assunto uma questão de ética moral, incutindo aos consumidores a necessidade de gerir bem os seus gastos. Num sentido educativo/pedagógico, é sem dúvida esse o caminho: individualmente, há uma série de hábitos que podem reduzir a nossa pegada hídrica, desde o facto de não manter a torneira aberta até aos produtos que se escolhem num supermercado. Mas este passo civilizacional tem de ser acompanhado por todos os sectores.
Estamos a ensinar novas gerações a não desperdiçar um recurso tão valioso, mas por outro lado estamos longe de encarar esta escassez na área que mais precisa de água: a agricultura.
Desenvolvemos tecnologias que permitem a reutilização de águas residuais, mas permitimos que se plantem hectares e hectares de abacates, quando cada árvore necessita de 60 litros de água por dia.
Para Helena Freitas, muitos destes problemas se resolviam com "uma taskforce entre a agricultura e a APA. Como uma unidade orgânica mista, em que não se trabalhe em silos." Para esta investigadora, o facto de não se ter mantido a organização prevista na Lei da Água de 2005 é uma lacuna.
"Altera-se os circuitos da lei e os circuitos de gestão, mas nunca protegemos os consumidores", explica. "A solução seria voltar a gerir ao nível das bacias hidrográficas. Recuperar o que já tivemos" e também recorrer às soluções de base natural, "o grande programa que temos de agarrar", e que está previsto pelo Novo Pacto Ecológico Europeu.
Numa lógica "todos podemos contribuir", talvez o melhor passo seja na nossa postura como consumidores: não escolher produtos alimentares que exijam muita água e produtos químicos na sua produção, como os abacates, os tomates chérie, os frutos vermelhos provenientes de estufa ou carne produzida de forma intensiva, e reduzir o consumo de produtos que exigem recursos hídricos, como o papel e vestuário não sustentável. Ou seja, que não se cumpra uma série de procedimentos que correspondem a medidas de boas práticas, seja na mão-de-obra, nos materiais ou na produção.
No referido estudo da Fundação Gulbenkian diz-se que "se no quotidiano o cidadão comum revela preocupar-se com a água não sendo, contudo, muito consequente nos seus comportamentos, nas escolhas de consumo alimentar o uso da água é mesmo um 'não problema'".
Por isso podemos concluir que sim, de facto todos podemos contribuir, principalmente no nosso papel como consumidores com uma consciência ambiental mais abrangente. O bom e saudável nem sempre é sustentável, nomeadamente do ponto de vista de recursos hídricos. Mas as mudanças dos nossos hábitos de consumo não é suficiente.
As mudanças só se dão com alterações nas políticas públicas, na fiscalização e na capacidade governamental de avaliar o impacto ambiental, social e económico a longo prazo. Passa também por encontrar novas soluções integradas na gestão das águas superficiais e subterrâneas.
Até à data de publicação, o Setenta e Quatro não obteve respostas às questões enviadas ao Grupo Águas de Portugal.