Em Pinhal de Negreiros, a praceta do Bairro dos Trabalhadores tem sempre esta faixa exibida. Este grupo faz parte dos lesados pela insolvência de 2013 | Foto de Rafael Medeiros
Em 2013, a cooperativa Bairro dos Trabalhadores, em Azeitão, declarou insolvência. Deixou várias famílias em risco de perder as casas que já tinham pago. O empréstimo concedido pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana à cooperativa não foi saldado. Fomos conhecer de perto esta falha no sistema, que por enquanto não tem solução à vista.
A história pode ser resumida de forma simples. O enquadramento começa na década de 1980, quando a Cooperativa de Habitação e Construção Económica Bairro dos Trabalhadores construiu dois bairros através de um empréstimo bonificado do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). Em 2013, a cooperativa declara insolvência. Deixa uma dívida de 535 mil euros ao IHRU. Deixa também uma série de moradores que ainda não tinham concluído as escrituras das casas, tornando-se ao mesmo tempo credores e parte da dívida.
A responsabilidade parece óbvia: a administração da cooperativa devia acarretar com as consequências do não cumprimento, visto haver provas do pagamento total das prestações das famílias pelas casas durante 25 anos. Mas os contornos jurídicos e processuais não são assim tão simples. Os moradores são também cooperantes, apesar de não estarem informados sobre os possíveis problemas ou incumprimentos da administração da cooperativa.
A partir do momento em que foi declarada insolvência, o IHRU começou a trabalhar no sentido de recuperar o valor em dívida, doa a quem doer, e sem tirar juros. Em 2015, os habitantes dos dois bairros foram surpreendidos pela colocação dos imóveis numa venda em leilão público. Desde aí, tem sido uma luta para assegurar que as casas não são leiloadas (voltou a acontecer em 2021) e que a classificação dos moradores deixe de ser a de credores subordinados (ou seja, os últimos a ser pagos) no caso da insolvência.
A par desta constante incerteza quanto à mudança de decisões judiciais, têm sido anos de apelo ao IHRU para criar alguma flexibilidade e os moradores não serem prejudicados. A instituição tem-se mostrado intransigente, esquecendo talvez qual é a sua função primordial, como gestores do parque público português habitacional. É que neste caso, não se trata apenas de proprietários que pagaram as suas casas e podem perdê-las. São famílias que vivem num contexto de precariedade e exclusão social, e que deviam ser os primeiros a ser ajudados numa situação como esta. Até porque, com todo o esforço, pagaram aquilo que lhes foi exigido.
No caminho de Lisboa para Azeitão, Diogo Duarte faz mais uma vez o enquadramento do processo, que não é fácil de entender. O Setenta e Quatro pediu para visitar os dois bairros e vamos com este guia local, que durante a viagem descreve como tem sido o percurso desta luta. Podemos dizer que é quase um porta-voz da causa, e também o tradutor da linguagem jurídica pouco percetível pela maioria dos lesados.
“Em 2013 eu nunca tinha pensado em cooperativas”, conta-nos. Sabia que estava a chegar a altura em que os pais “iam conseguir acabar de pagar a casa”, e tratar finalmente da escritura, mas nunca pensou ter de mergulhar tão a fundo nas questões jurídicas da estrutura de uma cooperativa e acesso aos direitos dos moradores.
Depois de anos de crise, para aquele grupo de moradores, seria o momento “em que iriam ter algum descanso”, em que o esforço de pagarem as amortizações seria recompensado.
Ao longo dos anos, a vida desta família teve momentos difíceis. Um deles foi em 2008 e parecia não ter fim. A mãe não podia trabalhar por ter problemas de saúde, o pai trabalhava por conta própria e estava numa situação muito precária, não encontrava trabalho em Portugal e acabou por ir para Angola, onde tinha familiares que podiam ajudar a encontrar trabalho. Após algum tempo, a situação financeira estabilizou-se, as amortizações da casa foram pagas e em 2012 estavam prontos para a escritura, tal como outros moradores cujo empréstimo era por 25 anos (começara em 1987).
“Está quase” era a resposta que recebiam quando falavam da escritura. Houve até moradores que foram ao IHRU perguntar se estava tudo bem, porque a cooperativa não parecia cooperar nas respostas. Fechava-se cada vez mais, até ao dia em que declarou insolvência, em janeiro de 2013. Foi um choque para todos. No caso da família do Diogo, este não tem dúvidas que foi a causa de um ataque cardíaco fatal que lhe levou o pai pouco depois da notícia cair como uma bomba. “Sempre foi uma pessoa saudável e muito ativa, tinha acabado de fazer exames, estava tudo bem, não tenho dúvida nenhuma que foi por isto, ou isto contribuiu. Ele ficou muito abalado”, diz ao Setenta e Quatro.
Depois de anos de crise, para aquele grupo de moradores, seria o momento “em que iriam ter algum descanso”, em que o esforço de pagarem as amortizações seria recompensado. Muitos não conseguiram recuperar do choque da notícia, muito menos quando logo depois receberam em casa publicidade das leiloeiras em que os imóveis para venda eram as suas próprias casas.
Estamos quase a terminar a viagem quando o Diogo ainda nos conta como foi parar ao Bairro dos Trabalhadores de Pinhal de Negreiros (o segundo é em Vendas de Azeitão) em 1987, quando tinha dois anos. Provavelmente foi através de contactos de amigos ou familiares que se juntaram ao projeto, não sabe bem. “Na altura a solução de cooperativa era mais ou menos comum”, conta, “e nós tínhamos família nos prédios”.
Diogo frequentou a escola em Azeitão e depois em Setúbal. A seguir entrou no curso de Antropologia na Universidade Nova de Lisboa. Mestrado e doutoramento terminados, atualmente colabora como investigador em projetos pontuais (ligado ao Instituto de História Contemporânea) e escreve sobre música. Até há pouco tempo, trabalhou também numa organização de apoio a pessoas sem abrigo. Foi nessa altura que se mudou definitivamente para Lisboa – os horários exigiam uma maior disponibilidade.
Até 2013, o seu foco era a vida académica, estava um pouco afastado das lides da comunidade onde cresceu, onde “podia brincar na rua à vontade”. Este acontecimento, e a morte do pai, mudou-lhe a direção, desde aí que grande parte do seu tempo é dedicado a esta causa, a ajudar “estas pessoas que não perceberam o que estava a acontecer, estavam simplesmente a sofrer e desesperadas.”
Ao chegar ao Bairro dos Trabalhadores, perguntamos se todos os prédios fazem parte da cooperativa, porque são idênticos num conjunto grande, mas o Diogo diz que são apenas duas fileiras, de frente para um jardim bem arranjado, com alguns bancos, uma relva impecavelmente aparada e uma faixa que exibe as palavras “Atenção. Casas habitadas que não estão à venda”. Soubemos depois que esta faixa foi oferecida por uma pessoa que tem uma gráfica, em solidariedade com os habitantes.
Assim que saímos do carro, as pessoas começam a sair do prédio. Uma, duas, três, quatro… dezasseis pessoas e um papagaio. Não foi imediatamente evidente, mas estes moradores saíram das suas casas para nos cumprimentar, para responder ao que fosse preciso, para dar a cara por uma luta que está explícita naquela faixa. Na verdade, não estávamos à espera daquela receção, pensávamos que seriam uma ou duas pessoas, mas entre os vizinhos foram passando a palavra sobre a visita de uns jornalistas, e de repente ali estamos, rodeados por parte de uma comunidade que é nitidamente bastante unida por esta causa.
“Nós fomos enganados pela cooperativa, até ao último minuto. Eles é que gastaram o dinheiro e o IHRU consentiu”, diz a dona Glória.
É difícil escolher com quem falar, sente-se alguma inibição nas palavras, mas queremos começar por conhecer o papagaio do senhor João. Chama-se Bebé, e segundo o seu tutor, “é um residente, e está indignado porque lhe querem roubar a casinha. Se pudesse falar dizia que não quer sair daqui.” Desloca-se livremente entre os edifícios e árvores. Dorme na casa do senhor João, mas de manhã vai para o café, para ir ter com o “padrinho”, o senhor Vitaliano, e fica por ali durante o dia. À noite volta para casa. É assim há anos, faz parte da rotina.
Aproveitamos o espírito de assembleia geral ao ar livre para tirar uma fotografia de grupo, antes que o frio de janeiro os faça recolher novamente. A seguir, ouvimos algumas histórias. Um dos moradores já habituado a falar com os meios de comunicação – houve interesse pontual em 2013 e 2015 – é o senhor Diamantino. “Foi a própria cooperativa que nos alertou sobre a situação, e começou a pedir a nossa documentação, para enviar para o tribunal, para reclamarmos dos nossos créditos”, conta.
O processo foi entregue, com a decisão do administrador da insolvência, uma entidade independente exterior à cooperativa. A decisão foi meramente burocrática, mas deixou 41 famílias em pânico. “Recorremos da decisão”, diz Diamantino, e “esperámos oito anos por uma sentença final”, que foi proferida em novembro de 2021, e que converte o estatuto dos habitantes como credores garantidos em vez de subordinados. Boas notícias, não fosse o IHRU recorrer.
Foram oito anos de desgaste emocional, de stress e medo de perder a casa. Os moradores são na sua maioria idosos, alguns já com problemas de saúde, e estiveram todo este tempo à espera, sem saber o que os esperava. De vez em quando, surgia um pormenor que aumentava a angústia. “As casas já estiveram em leilão mais do que uma vez”, diz este morador, “incluindo o ano passado”. Recebiam em casa as cartas das leiloeiras com as próprias habitações como objeto de venda. O leilão é uma etapa processual prevista nos casos de insolvência, mas que neste caso não poderia acontecer, porque havia uma contestação sobre a graduação de créditos ainda por resolver. O leilão é uma realidade a que esta situação não escapa, a questão é decidir quem tem o direito de retenção. Se forem os moradores, fica tudo resolvido.
“Nós compreendemos o IHRU, que entende que a cooperativa tem uma dívida sobre eles, mas nós não temos culpa. Sabemos que tentaram entrar em acordo com a cooperativa, mas nós não sabíamos disso”, diz ainda, tranquilamente, o senhor Diamantino. Nem todos conseguem manter a sua calma. A dona Glória, por exemplo, não consegue aceitar a impunidade da cooperativa. Para ela, é claro como água que a culpa é deles, mesmo que essa responsabilidade seja agora irrelevante. Sente-se revoltada. Chegou a pagar um mês a mais, em julho de 2012, em dinheiro, como sempre fazia.
“Disseram-me que era para a escritura”, conta, “e eu de olhos fechados, paguei. Enganaram-me o tempo todo. Só tinha a terceira classe, como toda a gente aqui, tenho baixa escolaridade, não sabia que era preciso anualmente acedermos a uma assembleia. Durante anos não fizeram assembleias”. E explica as abordagens da cooperativa: “propuseram duas ou três vezes que comprasse a casa antecipadamente, mas eu não podia pedir ao banco. Então disseram para eu pedir aos meus filhos, mas eles estavam no princípio de vida, eu não queria estar a sacrificá-los”.
Acabou por optar fazer o pagamento a 25 anos, tal como estipulado no contrato, e foi uma das vítimas do processo. “Nós fomos enganados pela cooperativa, até ao último minuto. Eles é que gastaram o dinheiro e o IHRU consentiu”, diz, “com que intenção é que facilitaram a cooperativa, isso é que eu gostava de saber”. Já lá vão dez anos que terminou de pagar a casa que ainda não é dela. Tal como os outros moradores, vive numa permanente inquietação. “Não consigo dormir à noite”, diz-nos, já com as lágrimas a sair dos olhos.
Os dois bairros construídos pela cooperativa somam 109 casas. Alguns cooperantes (68) conseguiram antecipar o pagamento total e tornaram-se proprietários (e por isso perderam a bonificação). São 41 as casas que se encontram nesta contenda, “sendo que a cooperativa construiu cerca de mil fogos ao longo da sua existência, que é onde está o crédito dos bancos”, como explica o Diogo. No caso dos dois bairros em questão, o crédito foi apenas do IHRU, através de hipoteca. E pela lógica da instituição, as casas são agora sua propriedade.
Porquê esta persistência do IHRU? “Há uma questão técnico ou jurídica, que a meu ver não é muito rigorosa e não tem sequer a ver com a relação do IHRU com este tipo de construções, e os leva a tentar reclamar a propriedade das casas, seja porque querem aumentar o seu parque habitacional, seja porque têm que reaver a dívida a qualquer preço e na impossibilidade de ser a cooperativa a pagar querem que sejam os moradores”, diz Diogo. E acrescenta: “acho também que são burocratas que têm isto em mãos e ignoram a dimensão social e política da questão. Fui falar com deputados e secretários de Estado, e a informação que eles têm é sempre dos técnicos do IHRU”.
O IHRU "alimenta a confusão entre os sócios cooperantes e a administração da cooperativa”, como se os moradores soubessem o que estava a acontecer, explica Diogo Duarte.
Como se trata de uma instituição pública, com autonomia administrativa e financeira de nomeação direta, nas mudanças de governo, outras pessoas ocupam os cargos. Alteram-se as decisões em relação ao caso consoante a corrente política. “Mas os burocratas não mudam”, explica Diogo. Reclamarem as dívidas “é legítimo”, diz, “o que é estranho é a insistência do IHRU ao longo destes anos, quando já tiveram margem política para poder resolver isto de uma forma que não ponha em causa o direito à habitação. Parte da dívida são juros, sendo habitações sociais podia haver pelo menos essa sensibilidade”.
“Se os moradores soubessem o que se passava, tinha-se pago diretamente ao IHRU”, diz Diogo, já a caminho do segundo bairro, a quatro quilómetros de distância do de Pinhal de Negreiros. “O IHRU sabia que a cooperativa não entregava dinheiro há muito tempo.”
“As pessoas são na maior parte idosas, não querem andar a fazer especulação imobiliária com casas que não valem nada. Iam vender as casas e iam para onde? As casas estão avaliadas em 40 mil euros”, explica Diogo, apontando esse como o valor que é reclamado pelos moradores/credores.
“Já houve uma altura em que tentei ser mais diplomático com o IHRU e não resultou”, conta, “deixaram de nos responder. Desde 2015 a postura tem sido de sistemática austeridade”. Além disso, “alimentam a confusão entre os sócios cooperantes e a administração da cooperativa”, como se os moradores soubessem o que estava a acontecer. “Sempre disseram que queriam uma solução, para decidir como ajudar as pessoas, mas quando insistimos em saber qual é, percebemos num comunicado que divulgaram publicamente que as casas seriam incluídas no parque habitacional da IHRU e, ou ceder as casas por 13 mil euros a cada morador, que é a dívida que eles reclamam dividida por toda a gente, ou ficarem com a propriedade das casas e alugá-las segundo as modalidades de arrendamento social.”
O Bairro dos Trabalhadores em Vendas de Azeitão é composto por mais casas do que o primeiro que visitámos. O mesmo espírito de comunidade é sentido numa praceta que forma um retângulo. Também tem árvores, relva e uns bancos. É fácil imaginar a vida daqueles vizinhos e a proximidade que foram tendo ao longo de cerca de 30 anos.
O Setenta e Quatro não teve uma receção tão grande em Vendas, apesar da maior das casas da contenda serem deste bairro, mas assim que chegamos começam a aparecer alguns moradores. Forma-se um pequeno círculo. Contam que o edifício em frente era a sede da cooperativa, eram vizinhos, viam-se diariamente. Agora esse edifício pertence à Câmara, foi uma forma de pagamento das dívidas da cooperativa ao município.
Uma das moradoras que nos recebeu, a dona Fátima, foi a primeira a habitar o seu prédio. Pedimos para conhecer a sua casa. Por coincidência, também tem um papagaio, o Tico. Nos dois bairros, conseguimos acertar nas únicas casas que tinham papagaios (o senhor João também mostrou a casa dele). O marido não tinha ido ao largo, já se encontra muito doente, com 84 anos e um coração que tem dado alguns problemas. Quando entramos no apartamento e explicamos ao que íamos, começou a enervar-se com o tema. “Os meus tempos estão quase a acabar, mesmo que vá parar a uma cadeia não me interessa, só quero justiça, não desisto, andámos 25 anos a pagar uma casa”, disse. A dona Fátima é mais otimista. “A esperança é a última a morrer”, diz, “esta sentença é mais uma tentativa”.
Cá fora, o grupo falou sobre o facto de não terem recebido por carta a decisão do tribunal, deferida em novembro. Sabiam do conteúdo porque as reuniões em assembleia têm servido para os esclarecer, e houve uma recentemente, com a presença do advogado. Apesar das notícias serem boas, a incerteza mantém-se com o recurso do IHRU. O processo jurídico não é fácil de entender, e mesmo com uma decisão favorável, a palavra venda deixa sempre em pânico a maior parte das pessoas. Mas a venda será sempre inevitável, devido à natureza do processo, resta saber em que moldes.
Um senhor, também chamado João, mostra-nos os recibos de amortização dos 25 anos. A maior parte dos moradores, na década de 1980, juntaram-se à cooperativa precisamente pela possibilidade de ter uma casa própria, para a qual pagariam mensalmente um valor mais acessível do que uma renda. Tiveram até a oportunidade de escolher a tipologia que preferiam. Tudo parecia correr bem durante esses 25 anos.
No bairro das Vendas, um dos moradores tem uma filha advogada. Sorte de todos. Sem apoio jurídico este caso estava perdido há muito tempo. Juntamente com um colega, José Carlos Cardoso, que tem avançado com este processo praticamente pro bono, conseguiram impugnar as vendas em leilão. Conseguiram também pedir recurso à decisão de 2015.
Após oito anos de espera, caso o IHRU não tivesse pedido recurso, as notícias seriam boas, finalmente. A venda seria favorável aos moradores. Deixam de ser credores subordinados (os últimos da lista) para serem garantidos, recebem o valor que pagaram à cooperativa e não foi pago ao IHRU, e com isso mantêm as casas.
“Este processo tem uma vertente jurídica e uma vertente social, e de alguma forma também política, diz o advogado José Cardoso.
O advogado José Cardoso explica ao Setenta e Quatro que isto se pode resolver se o IHRU tiver “uma posição que permita alguma flexibilidade em termos processuais”, e “que no fundo digam que é possível fazer um acordo, nem que seja as pessoas pagarem uma quantia simbólica, consoante as suas possibilidades e situação económica. É ter esta consciência social, desistir do recurso e aceitar a decisão da juíza”.
“Este processo tem uma vertente jurídica e uma vertente social, e de alguma forma também política. Juridicamente aquilo que estas pessoas têm é o direito de continuar a residir nas casas até que os créditos que têm sobre a insolvência sejam satisfeitos”, explica José Cardoso. Daí a impugnação do leilão. E têm também direito a receber de volta aquilo que pagaram.
Se forem as primeiras a “ser ressarcidas pelo produto resultante da venda da casa, não têm de efetuar um depósito. Se a casa for a hasta pública, oferece-se os 40 mil euros e já não tem de se pagar esse montante”, explica ainda o advogado.
Mas o IHRU não parece querer abdicar da sua posição como credor privilegiado. Em resposta ao Setenta e Quatro, a instituição diz: “A salvaguarda da habitação é fundamental para o Instituto e não é posta em causa pelo recurso da sentença recentemente proferida (que resulta de uma apreciação da matéria de facto e de uma interpretação e aplicação das normais legais que o IHRU entende não serem corretas), recurso esse que não podia deixar de existir tendo em conta as responsabilidades do Instituto, o impacto direto na recuperação do seu crédito e a necessária salvaguarda desses dinheiros públicos.”
Não respondeu, a tempo do fecho da edição, às questões sobre a solução concreta que mantenha os moradores nas casas, nem ao facto de estes não terem sido avisados pelo IHRU da situação da cooperativa em 2012. Diz apenas que “o Instituto tem procurado definir uma solução para que, se vier a adquirir as habitações no processo de insolvência, os cooperadores possam permanecer nas habitações”, mas não refere de que forma.
No entanto, podem ser lidos os comunicados que foram publicados sobre esta questão aqui (de 2014, em que apresentam a sua versão dos factos) e aqui (de 2015, em que refere que será dado um apoio aos moradores, que afinal não aconteceu – antes pelo contrário. Num destes comunicados, encontra-se um quebra-cabeças, difícil de entender. Diz o texto que: “Assim, desde 1997 que TODOS [maiúsculas do IHRU] os moradores conheciam a situação da Cooperativa e a possibilidade de adquirirem as respetivas habitações amortizando a respetiva dívida. A prova deste facto é que entre 1997 e 2009 foram vendidos aos respetivos moradores 68 dos 109 fogos financiados. Somente 41 moradores não adquiriram as respetivas habitações”.
As perguntas ficam no ar: Se TODOS os moradores soubessem do incumprimento desde 1997, teriam continuado a pagar as amortizações à cooperativa? Houve até quem propusesse pagar diretamente ao IHRU, numa das idas ao instituto. E o que leva a querer ao IHRU que os 41 moradores podiam ter pago a amortização na totalidade, tal como os outros fizeram?
Após oito anos de espera, caso o IHRU não tivesse pedido recurso, as notícias seriam boas, finalmente.
Os terrenos onde se encontram estes bairros pertencem à Câmara Municipal de Setúbal. Apesar do Direito de Superfície não alterar a decisão judicial, André Martins, atual presidente da Câmara, mostrou solidariedade com os moradores lesados pela insolvência.
Na sua página pessoal no Facebook, felicitou a decisão do tribunal em novembro, e referiu que “Importa, agora, que o IHRU, um dos intervenientes neste processo, assuma, definitivamente, que os moradores do bairro visados nesta decisão judicial e que sempre cumpriram as suas obrigações, devem, finalmente, poder usufruir em segurança das casas que quiseram comprar e pelas quais pagaram durante 25 anos”. E solicitou um encontro com representantes dos moradores. Declarou, depois disso: “disponibilidade como presidente da Câmara Municipal de Setúbal, para prestar a estas pessoas o apoio que esteja ao meu alcance. No atual estado deste processo, exige-se uma solução política que permita, definitivamente, resolver o problema destas pessoas que já deviam ter garantida, de pleno direito, a posse das casas que compraram”.
Ao longo dos anos, desde que assumiu esta missão, Diogo Duarte falou com todas as bancadas parlamentares, e reuniu com a secretária de Estado anterior (com a atual, ainda não conseguiu). Foi percebendo quais os direitos de acesso aos órgãos decisores e de que forma podia podia chegar a instâncias superiores. Foi assim que acabou por ser ouvido pela Comissão Parlamentar para a Habitação. E foi aí que ouviu uma das respostas que mais o chocou. Um deputado do CDS, num desses encontros, disse algo como "põem-se a brincar ao coletivismo, agora pagam”. Noutra ocasião, a secretária de Estado entrou na sala e a primeira frase que Diogo ouviu foi “bem, estamos aqui a perder tempo”.
Existe boa vontade política por parte de alguns deputados – as deputadas Eurídice Pereira (PS) e Paula Santos (PCP), em especial, acompanharam de perto o caso e desenvolveram esforços para obter respostas concretas, por diversas vezes. No geral, toda a gente concorda que é terrível tirar casas a pessoas que as pagaram, mas “no plano da concretização nunca acontece nada”, como explica Diogo. Quando se chega a uma instância de decisão, entra-se num tipo de entropia, habitualmente justificada pela preservação do erário público. Um beco sem saída, aparentemente, que poderia ter ficado resolvida agora, com a sentença de novembro.
Depois de oito anos à espera, quanto tempo mais vai passar até estes moradores saberem se têm direito ou não às suas casas?
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