Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

Shuggie Bain: o político feito íntimo

A devastação causada pelo thatcherismo continua a marcar a política escocesa, mais de 30 anos depois de abandonar o poder. Shuggie Bain mergulha-nos no drama humano vivido na Escócia quando as políticas da Dama de Ferro se abateram sobre o país. Uma história com a ubiquidade e intemporalidade das coisas que pertencem ao seu tempo e ao seu lugar.

Recensão
25 Maio 2023

Douglas Stuart fez uma pequena maldade a Hugo Gonçalves e a todos os seus muitos tradutores pelo mundo. O narrador de Shuggie Bain, o seu romance de estreia, expressa-se num inglês elegante e escorreito. Os diálogos, no entanto, são em Scots. Não haveria nunca maneira de o escritor e tradutor português contornar esta dificuldade de forma a reproduzir um efeito bastante importante para o romance.

A tradução ágil e inteligente de Hugo Gonçalves consegue encontrar registos adequados para cada situação, mas o português é sempre português. O Scots, no entanto, não é inglês. As personagens não falam a mesma língua do narrador e a nossa história é a de um povo traído por um governo quinhentos quilómetros a Sul.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Shuggie Bain é Glasgow

Shuggie Bain é a história do protagonista que lhe dá o nome, mas também da sua mãe: Agnes. Acompanhamos o protagonista ao longo dos anos, mas quem marca o princípio e o fim da narrativa é ela. A ação começa quando os seus problemas se agravam, ainda é Shuggie uma criança pequena, e acabam com a sua morte, cuja óbvia inevitabiidade não retira nem um pouco de coração ao romance.

Agnes é pobre. Agnes é alcoólica. Agnes é abusada pelo marido. Agnes acreditava poder vir a ser muito mais e o confronto com a crua realidade da Glasgow de Margaret Thatcher puxa-a para um abismo que se vai tornando mais profundo e escuro, conforme tenta esgravatar a sua saída.

Agnes e Shug (o violento e sedutor pai de Shuggie, protestante) vivem com os pais da primeira (católicos) num edifício de habitação social numa Glasgow abandonada, cruel, pobre, a tentar resistir às agruras impostas pelo thatcherismo. Eis aqui a cidade, descrita desde o interior do táxi de Shug:

“Shug pisou o acelerador. A cidade estava a mudar; podia vê-lo na cara das pessoas. Glasgow perdia o seu propósito, ele era testemunha. Via-o através daquela divisória de vidro. Também o confirmava no dinheiro que deixava de fazer a cada dia. Ouvira dizer que a Thatcher já não queria trabalhadores a sério. O futuro, para a chefe do Governo, era a tecnologia e a energia nuclear e a saúde nas mãos dos privados. Os dias da indústria tinham acabado e os ossos dos Estaleiros Clyde e dos Caminhos-de-Ferro Springburn jaziam na cidade como dinossauros em decomposição. Os bairros estavam cheios de rapazes trabalhadores a quem havia sido prometido o ofício dos pais e que agora não tinham qualquer futuro. Os homens perdiam a sua masculinidade.”

Já muito se escreveu sobre o impacto das políticas do governo conservador de Thatcher sobre a Escócia, portanto vou-me cingir às parangonas: o desemprego explodiu de 1.1 milhões no começo do seu governo para mais de 3 milhões em 1986 (período deste romance). A desindustrialização da Grã-Bretanha e a sua transformação numa praça financeira para o capitalismo global, situação que ainda hoje alimenta as poderosíssimas desigualdades entre Londres e o resto do país, fez-se durante este período. E fez-se à custa dos trabalhadores. A pobreza infantil no Reino Unido atingiu, durante os anos do thatcherismo em que este romance se passa, níveis escabrosos. Duplicou. Ainda não recuperou hoje os níveis pré-Dama de Ferro.

Image
Shuggie Bain

O mundo de Agnes Bain é este. Os empregos não existem. A maioria das suas amigas tem os maridos em casa, a definhar no sofá, cultivando o alcoolismo, a depressão e o sofrimento. Agnes é (ou era) bonita, sonhadora, tinha uma vida pela frente. Tudo isso desapareceu quando o futuro de uma geração inteira de glaswegians se fechou com as fábricas, as docas, as minas e a indústria pesada. Agora, o seu marido Shug faz noites a conduzir um táxi para conseguir trazer algum dinheiro para casa e todos os outros partilham aquele espaço exíguo, dia após dia. 

Quando Shug começa ostensivamente a trair Agnes, esta encontra-se perante o mesmo dilema que quase toda a gente à sua volta: o que fazer senão a autodestruição? Numa das cenas mais tocantes da primeira metade do romance, pega fogo à cortina do quarto enquanto dança com o seu filho Shuggie. Quando as chamas crescem, agarra-se a ele, a única réstia de valor e inocência que ainda tem.

“Agnes usou o outro braço e puxou-o para perto de si.

— Chhh. Porta-te como um menino grande, vá, pela mamã. — Nos seus olhos havia uma calma de morte.

O quarto ficou dourado. As chamas trepavam as cortinas sintéticas e alcançavam o tecto. Fumo negro elevava-se como se fugisse do fogo voraz. Shuggie podia ter sentido medo, mas a mãe estava completamente calma e o quarto nunca fora tão bonito. As labaredas projectavam sombras dançantes e os padrões do papel de parede ganhavam vida como se fossem milhares de peixes de fumo. Agnes agarrou-se ao filho e juntos, em silêncio, viram toda aquela beleza inédita.

Agnes haveria de ser salva pelo marido, pelo menos desta vez.

Não há (quase) nada que a pobreza não coma

Uma das grandes vitórias de Shuggie Bain como literatura, e de Douglas Stuart como criador, é conseguir equilibrar a crueza e dificuldade da vida destas personagens com a luz da sua humanidade. Em momento nenhum este livro se lê como um folhetim político ou uma visão altaneira e lamechas sobre personagens tratadas com condescendência. Stuart dá-nos personagens tridimensionais, com sonhos, ambições, criatividade, força e inteligência. Coloca-as num ambiente real, cheio de memória e personalidade. Deixa-as viver. Deixa-as tentar. Deixa-as lutar naquelas ruas enquanto elas se fecham e deixa o pequenino Shuggie crescer naquela comunidade enquanto ela recrudesce e o ódio e a violência vão ganhando espaço.

Com o decorrer da narrativa, Shuggie e a família saem da casa dos avós. O pai deixa a família por uma das suas amantes. Shuggie cresce e vai para a escola, arranja problemas próprios. Agnes arranja outro homem. Arranja um emprego. Deixa a bebida (ou assim o crê).

Conforme esses eventos se vão desenrolando, a real tragédia do romance vai ocupando o seu espaço em segundo plano. A cidade em que Shuggie cresce é uma Glasgow abandonada numa Escócia deixada à sua sorte pela gélida experiência de engenharia económica dos governos daquele período. Foi na Escócia, perante o crescente sentimento de revolta e raiva destas pessoas, que Thatcher nos brindou com uma das suas frases mais infames: “There is no such thing as society.”

A morte de Agnes e o definhar da vida de Shuggie são inevitáveis. Isso é claro para o leitor desde o início. É a nossa emocionante tarefa vê-los a debater-se contra um contexto esvaído, procurar opções onde elas não existem, alternativas que desapareceram. Vemos a ambição desaparecer e compreendemos porque a antiga primeira-ministra britânica se transformou numa figura de ódio para os escoceses. Mas a arte de Douglas Stuart está aí. Por muito que em Glasgow chova do princípio ao fim do livro, é na interioridade das personagens que está sempre uma nota de sol, conforto, amor e compreensão.

Shuggie Bain é uma leitura dura, mas de enorme coração. O pequeno Shuggie, quer compreenda quer não a luta da mãe, nunca a abandona. O laço que os une sobrevive a tudo, à decadência do Reino Unido, da Escócia, de Glasgow, da sua família. Alimentada por esse vínculo entre os dois, esta história de sofrimento ganha corpo e reconfigura-se numa história luminosa da humanidade que nunca soçobra perante a injustiça imposta pelos salões do governo. Nada o exemplifica melhor que a simetria entre a cena do incêndio recordada acima e as últimas frases do livro: as personagens estão a dançar.

“— O quê, Tu, a dançar? Com esses sapatinhos de escola? Não me fodas — disse ela. — Não acredito que o Shuggie Bain saiba dançar.

Shuggie estalou a língua, reprovando o que ouvira. Libertou-se do braço dela e avançou uns passos. Moveu a cabeça, cheio de si mesmo, e fez uma pirueta, uma só, sobre os sapatos engraxados.”

A tradução portuguesa do romance aqui citada segue a antiga ortografia, ao contrário do texto da crítica.